A matéria começa de modo sugestivo: “Atividade hoje proibida, o abate do javali começa a ser defendido como solução para o problema que já tira o sono de ambientalistas do Rio”.
A maior objeção ao extermínio desses animais parece ser, sob a ótica do engenheiro agrônomo Rafael Salerno, não algum tipo de pudor ético quanto ao destino dos animais, mas antes os prejuízos aos “pequenos produtores”.
O javali é um animal de origem europeia e considerado “uma das 100 piores espécies invasoras”, pois se reproduz rapidamente, causa danos à flora e fauna nativos, também é considerada vetor de doenças e, no Brasil, tem poucos predadores naturais.
Em 2005, declara a reportagem, “o Ibama liberou, por instrução normativa, o abate de javalis e porcos asselvajados no Rio Grande do Sul, estado com maior incidência da espécie no Brasil”. A decisão foi revogada no ano passado.
Salerno é taxativo quanto à solução do problema: “Não dá pra entender esta postura do Ibama. Por que o órgão, sabendo que se trata de um animal exótico, invasor, proibiu o abate? Javali não é uma espécie de caça no Brasil. É um animal nocivo e precisa ser abatido”.
Outra matéria ressalta sobre os benefícios econômicos e ambientais da caça de outra espécie de porco selvagem, o “porco monteiro”, no Pantanal. “Como atrai para si o interesse dos caçadores, o porco contribui involuntariamente para a conservação da fauna silvestre”, diz Ubiratan Piovezan, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A liberação da caça renderia, segundo a matéria, até R$ 5 milhões aos fazendeiros da região. Nessa situação, “esse suíno pode ser o grande herói do Pantanal”.
A matéria é instrutiva em alguns aspectos. Em primeiro lugar, nenhuma entidade de defesa animal foi consultada pela reportagem. A pretensa objetividade jornalística desconsiderou, portanto, a principal parte interessada na questão. Isso mostra como os interesses mais fundamentais dos animais não humanos são completamente desconsiderados pela ideologia especista predominante em nossa sociedade.
Em segundo lugar, a matéria mostra a forma como o ser humano se exime da responsabilidade dos danos que ele próprio causa ao meio ambiente, posteriormente classificando certas espécies de animais como “intrusos” e “pragas”. Os javalis foram inseridos no Brasil para fins comerciais, particularmente a venda de sua carne. Os animais são considerados “pragas”, mas o responsável pelos problemas ambientais e de saúde pública é o próprio ser humano, devido à sua ganância e irresponsabilidade.
Em terceiro lugar, é corriqueiro tratar o problema de proliferação de animais silvestres ou abandonados como “pragas” que devem ser abatidas. Na verdade, essa é a solução mais barata e conveniente, e ignora o mais importante: a vida dos animais que são alvo dessas medidas.
Em quarto lugar, fica patente o especismo que atravessa também a corrente dominante do “ambientalismo”. Um ambientalismo que não apenas é conivente, mas partidário do extermínio de animais, que é insensível aos interesses fundamentais dos indivíduos animais, e que corrobora com a inversão lógica de culpar animais não humanos pelos erros cometidos por seres humanos.
A solução para o problema da proliferação de javalis e qualquer outra espécie equivocadamente introduzida pelo ser humano num ecossistema a ela estranho não é o abate e o extermínio. De modo emergencial, é a esterilização, que resolve o problema do controle de população a longo prazo. A solução definitiva, porém, é a proibição da importação de espécies alienígenas. Nenhuma delas é encarada seriamente, porém, por demandar mais trabalho e recursos, ao passo que a criação de tais espécies e a posterior liberação da caça, ao contrário, revertem-se em ganhos financeiros.
Esse é um caso exemplar do especismo que atravessa nossa sociedade, que trata os animais não humanos como coisas, como se não partilhassem conosco do mesmo interesse fundamental à vida, como se não fossem dotados de consciência e sensibilidade. É um exemplo de como esses interesses fundamentais são desconsiderados em benefício dos interesses periféricos do próprio ser humano, que é a geração de lucro à expensa da vida de seres sencientes. É, por fim, exemplo de como ganância e ignorância humana é daninha para indivíduos, espécies e ecossistemas, e como essa responsabilidade é revertida contra aqueles que são as vítimas dessa ignorância, que pagam com suas vidas pela ganância e ignorância humanas.
Os animais não são “pragas”. O único responsável pelos danos causados ao meio ambiente e aos ecossistemas em casos como o acima descrito é o próprio ser humano, que retirou esses javalis de seu ambiente nativo para introduzi-los num ambiente estranho. Os javalis, como qualquer animal, apenas procuram sobreviver e adaptar-se em um ambiente para o qual foram trazidos. Não há justificativa para defender o extermínio em massa desses animais, que são apenas mais alguns dentre as várias vítimas animais da exploração humana.
* Bruno é membro fundador da Sociedade Vegana (Brasil)