EnglishEspañolPortuguês

ENTREVISTA

'Animais não são coisa ou bem. São seres com capacidade de sofrer', diz juiz federal

19 de março de 2024
10 min. de leitura
A-
A+
Foto: Divulgação

Na discussão sobre a adequação do Código Civil brasileiro ao século 21, o direito animal pode ser considerado um dos temas de maior avanço jurídico. A proposta, encampada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, é de que os animais sejam tratados como sujeitos de direito e não mais na condição de coisas ou bens semoventes.

Indicado pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe) para compor como membro-consultor a comissão de juristas que discute a atualização e revisão do Código Civil, o juiz federal Vicente de Paula Ataíde Junior, de Curitiba, defende que os animais sejam tratados como seres sencientes, que detêm capacidade de sofrer e de experimentar conscientemente o mundo a sua volta. “É o que singulariza os animais’, afirma o magistrado que é pós-doutor de direito animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Segundo o magistrado, a Constituição coloca o Brasil em um patamar de vanguarda na defesa dos direitos dos animais, ao proibir que sejam tratados com crueldade. Falta, no entanto, adaptar essa visão do constituinte ao Código Civil. Mas hoje, quando se comemora o dia nacional dos bichos, há motivos para otimismo.

A Comissão de Juristas de Reforma do Código Civil discute a mudança da natureza jurídica dos animais. Qual a proposta de mudança da Comissão?

Não há no Código Civil brasileiro uma disposição que defina a natureza jurídica dos animais. Afirma-se, tradicionalmente, que animais são “bens semoventes”. No entanto, em muitos aspectos, temos muitas dificuldades para continuar afirmando que animais são bens, coisas ou simplesmente propriedade. Em primeiro lugar, a Constituição de 1988, ao proibir a crueldade contra animais, valorizou os animais por uma característica que lhes é inata: a “senciência” ou capacidade de sentir e de sofrer. Isso nos permite dizer que o nosso constituinte reconheceu que os animais possuem um valor intrínseco, uma dignidade que lhes é própria (já afirmada, aliás, em julgamentos recentes, tanto no STF, como no STJ). Em segundo lugar, as ciências cada vez mais nos surpreendem com descobertas sobre características animais que antes imaginávamos ser exclusividade dos seres humanos. Hoje podemos falar em intencionalidade, afetividade, consciência, danos e distúrbios psicológicos envolvendo animais. Tudo isso acaba distanciando cada vez mais muitas espécies animais da configuração de objetos. Em terceiro lugar, não há como negar que a sociedade brasileira cada vez mais enxerga os animais com os olhos da inclusão, ou seja, percebe que esses seres vivos sencientes podem participar, de alguma forma, da nossa comunidade moral, recebendo um tratamento mais empático e diferenciado em relação ao passado.

Qual a consequência na interpretação da natureza jurídica dos animais?

A Comissão de Juristas, como não poderia ser diferente, dada a sua missão renovatória das instituições civis, está sensível e aberta à necessidade de uma requalificação jurídica dos animais, de forma a sintonizar o Código Civil com a realidade do século 21. Nos primeiros relatórios parciais apresentados, a Comissão já sinalizou essa abertura, destinando um artigo específico, na Parte Geral, para melhor qualificar os animais. Nessa proposta, inspirada no Código Civil português, decidiu-se por remeter o estatuto jurídico dos animais para uma lei própria, o que nos pareceu de todo adequado (um “Estatuto dos Animais”). No entanto, a primeira redação apresentou três problemas: afirmou que animais são “objeto de direito”, são seres vivos dotados de “sensibilidade” e que, enquanto a lei especial não vier, aplica-se aos animais o regime jurídico dos bens. Além disso, a localização do artigo (que seria o art. 82-A) ainda seria na seção dos “bens móveis” o que, certamente, atrapalharia a sua adequada interpretação.

A ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, pediu a substituição do termo “sensibilidade” por “senciência”. Qual a diferença entre esses conceitos e por que é importante o reconhecimento da senciência animal?

A senciência, ou capacidade de sofrer e de experimentar conscientemente o mundo a sua volta, é o que singulariza os animais. O termo “sensibilidade”, como adotado em países como França e Portugal, não expressa, adequadamente, a característica que separa os animais em relação às plantas e a outros organismos vivos. Essa sugestão da nota técnica já foi acatada e consta do Relatório Geral da Comissão de Juristas, apresentado no Senado, em 26 de fevereiro.

O Ministério do Meio Ambiente defende a retirada da expressão “que são objeto de direito” do texto. O senhor concorda com essa proposta? Qual a diferença?

Essa expressão, de fato, é a que tem gerado maior polêmica e discussão. Mas acredito que já esteja superada. No relatório parcial inicial, constava, como proposta de caput do artigo, que “Art. 82-A. Os animais, que são objeto de direito, são considerados seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica, em virtude da sua natureza especial”. Tirando a expressão “sensibilidade” (melhor seria “senciência”, o que já foi corrigido), o artigo estaria perfeito não fosse a ressalva para afirmar que animais “são objeto de direito”. Isso porque afirmando, categoricamente, que animais são “objetos de direito”, em artigo incluído em capítulo destinado a reger os bens, a qualificação dos animais permaneceria a mesma da atualidade, sem avanços práticos. Além disso, lançaria por terra as pioneiras leis estaduais e municipais que hoje já atribuem aos animais a qualificação de sujeitos de direitos e atribuem a eles alguns direitos fundamentais (nesse sentido são notáveis as leis de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Pernambuco e, mais ainda, as da Paraíba, Roraima e Amazonas).

Que países já admitem que animais são seres sencientes e sujeitos de Direito em suas legislações?

O Brasil tem algo que nenhum país tem: a própria Constituição brasileira reconhece implicitamente a senciência animal ao proibir a crueldade contra animais. Nossas Cortes Supremas — STF e STJ — já afirmaram que animais têm uma dignidade que lhes é peculiar. Falta, de fato, adaptar o Código Civil a esse extraordinário avanço constitucional. À frente do Código Civil estão as várias leis estaduais e municipais que já reconhecem animais como sujeitos de direitos e lhes atribuem um catálogo próprio de direitos. Em termos práticos, muita diferença isso tem feito porque tribunais de justiça, como o do Paraná, em 2021, passaram a permitir que animais pleiteiem seus direitos na justiça, desde que devidamente representados por humanos (como as crianças o fazem pelos seus pais e tutores). Isso tudo quer dizer que o Brasil é muito mais avançado que outros países em termos de direito animal. Não obstante, vários países europeus, mesmo sem contar com todas essas fontes normativas que o Brasil dispõe, já alteraram seus Códigos Civis para dizer que “animais não são coisas” (como Áustria, Alemanha e Suíça) ou que “animais são seres vivos dotados de sensibilidade” (como França, Portugal e Espanha). O Brasil tem a oportunidade atual para se perfilhar aos países com Códigos Civis modernos em relação aos animais, mas pode ir além, como quer a sua Constituição, para afastar qualquer interpretação no sentido de que animais, como seres vivos sencientes, são simplesmente objetos de direito.

Está se tentando equiparar os animais a filhos humanos no ordenamento jurídico? Não seria um exagero?

Nenhuma medida nesse sentido consta da reforma do Código Civil brasileiro. Não me parece que o ordenamento jurídico brasileiro esteja se guiando para essa equiparação. Na verdade, a equiparação é absurda e em nenhum momento houve discussão ou proposta para isso. Os debates caminham no horizonte da necessidade do reconhecimento jurídico (pois já há o científico e o social) de que os animais não podem ser considerados coisas ou bens. E, por óbvio, não se discutem questões absurdas sobre a possibilidade de animais se equiparem a crianças, sobre a possibilidade de casamento de seres humanos com animais ou, ainda, sobre animais terem direito a dirigir ou a votar. A reforma do Código Civil é séria e caminha para o reconhecimento dos animais como seres sencientes e dotados de dignidade, alinhando-se aos avanços do texto constitucional e das mais recentes decisões das Cortes Supremas.

Alguns juristas acreditam que as mudanças propostas no novo Código Civil podem criar as chamadas “famílias multiespécie” uma realidade no Direito brasileiro. Como o senhor avalia essa visão?

Atualmente, quando se fala na relação de afetividade entre os humanos e os animais de estimação costuma-se falar em “família multiespécie”, querendo com isso falar que os animais de estimação vêm sendo tratados como “membros da família” e não como “patrimônio da família”. Isso é um fato sociológico, que não se pode negar. Mas, até o momento, nenhuma proposta foi acolhida pela Comissão de Juristas para disciplinar, na reforma do Código Civil, as famílias multiespécie. Talvez, de fato, seja melhor deixar o tema para a lei especial (o “Estatuto dos Animais”).

A proposta para o novo Código Civil estabelece que no casamento e na união estável cria-se uma obrigação de compartilhar despesas com os animais doméstico. Qual será a consequência prática nas situações de descumprimento dessa obrigação?

Essa é uma realidade do dia a dia das varas de família e que já vem chegando aos Tribunais Superiores, pelo que necessita de uma disciplina urgente pelo Código Civil. Não há nenhuma dificuldade em se enfrentar a questão, porque não mexe com nenhuma estrutura fundamental do Direito das Famílias. A proposta em debate na Comissão de Juristas, a qual parece já ter consenso, é no sentido de que “devem ex-cônjuges e ex-conviventes compartilhar as despesas destinadas à manutenção dos animais de companhia, se pertencentes ao casal, aos filhos e aos dependentes, bem como as despesas e encargos que derivam da manutenção do patrimônio comum.” (proposta do art. 1.566, § 2º, segundo redação do Relatório Geral). Com a aprovação desse dispositivo (ainda que a expressão “animais de companhia” deva ser substituída por “animais de estimação”, mais presente na sociedade brasileira), pacificar-se-á a jurisprudência e a prática forense sobre o tema, o que é amplamente desejável. Em caso de descumprimento dessa obrigação, segue-se o regime jurídico que já disciplina a situação recíproca dos ex-cônjuges ou ex-conviventes, sem grandes diferenças.

Quando há dissolução do casamento ou da união estável, como fica a guarda dos animais? Há obrigação de pagamento de pensão? E o que acontece quando a obrigação não é cumprida? Pode haver prisão em caso de inadimplência como ocorre com os filhos?

Esse é outro tema que ocupa o cotidiano das varas de família e já foi objeto de precedente do Superior Tribunal de Justiça, em 2018, em recurso relatado pelo Ministro Luís Felipe Salomão (presidente da Comissão de Juristas), no qual se firmou a possibilidade de direito de visitas em caso de guarda unilateral de animal de estimação. Mas, nesse julgamento, muito se discutiu sobre a necessidade do Código Civil regrar melhor essas situações envolvendo animais nas famílias. Parece que agora o tema deve ser enfim pacificado com regra expressa no Código Civil sobre a convivência compartilhada dos animais domésticos, ainda que a redação do Relatório Geral não tenha repetido o dispositivo advindo da Subcomissão de Direito de Família. E não se tratou, na Comissão de Juristas, de pensão alimentícia para animais, ainda que a Subcomissão de Direito de Família tenha proposto dispositivo para estabelecer que “O custeio das despesas com os animais de companhia será suportada, proporcionalmente, entre os tutores, vedada a prisão civil em caso de inadimplemento”. Assim, não deve haver a previsão de prisão civil do devedor do custeio das despesas com os animais de estimação, o que ainda mais deixa claro não haver a intenção de equiparar animais com filhos humanos.

Fonte: Correio Braziliense

    Você viu?

    Ir para o topo