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DESCOBERTA

Animais marinhos ingerem microplástico na Antártida desde os anos 1980, segundo estudo

Pesquisa da USP analisou o sistema digestório de organismos coletados em águas profundas ao redor do continente e encontrou microdetritos em quase um terço deles

14 de janeiro de 2025
Herton Escobar
6 min. de leitura
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Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Animais marinhos estão ingerindo microplásticos nas profundezas da Antártida há pelo menos quatro décadas, segundo um estudo liderado por cientistas do Instituto Oceanográfico (IO) da USP. Os pesquisadores investigaram o conteúdo gastrointestinal de mais de uma centena de organismos coletados de águas profundas do Oceano Austral entre 1986 e 2016, e encontraram microdetritos em quase um terço deles — incluindo fibras de diversos materiais plásticos, como poliamida, poliéster e polietileno.

Um dos achados do estudo é o registro mais antigo da presença de microplásticos no ambiente antártico: uma fibra azul de pouco mais de 2 milímetros, encontrada nas vísceras de um misidáceo (um crustáceo pequeno, parecido com um camarão), coletado em fevereiro de 1986, ao largo da Península Antártica. O fragmento era feito de polisulfona, um polímero plástico resistente a altas temperaturas e muito usado em revestimento de fiações elétricas e de encanamentos, o que levanta a hipótese de que ele seja oriundo de materiais usados na construção das várias estações de pesquisa que existem na região.

O trabalho, publicado em 20 de novembro na revista científica Environmental Science & Technology, reforça uma percepção já bem caracterizada por outros estudos, de que a Antártida, apesar da baixa ocupação e da distância que a separa dos grandes centros urbanos do mundo, não está imune à poluição humana — nem mesmo no fundo do mar. “A ocorrência de fibras na margem continental mais remota do mundo renova as preocupações com a poluição em regiões aparentemente isoladas”, escrevem os pesquisadores.

“A gente sempre esperou que fosse encontrar microplásticos, só não sabia quanto”, contou ao Jornal da USP o biólogo Gabriel Stefanelli Silva, que realizou a pesquisa como parte de seu doutorado no IO, sob orientação do professor Paulo Sumida do Laboratório de Ecologia e Evolução de Mar Profundo (Lamp). As concentrações detectadas são equivalentes às encontradas por outros estudos em organismos do Ártico e de outras regiões com densidade populacional muito maior. “É uma preocupação muito grande porque a gente esperava que a Antártida fosse um ambiente um pouco mais livre desse tipo de contaminação, mas não é”, destacou Silva.

Os pesquisadores analisaram o conteúdo estomacal e/ou intestinal de 169 organismos bentônicos (que vivem fixados ou associados ao substrato marinho) de 15 espécies, incluindo pepinos-do-mar, estrelas-do-mar, ofiuroides (popularmente conhecidos como serpentes-do-mar, apesar de não serem serpentes), poliquetas (vermes) e camarões. Vários procedimentos de segurança foram adotados para evitar a contaminação das amostras com microplásticos do ambiente externo — por exemplo, da roupa dos pesquisadores, dos instrumentos de pesquisa ou do próprio ar do laboratório, já que os microplásticos estão por toda parte. No final das contas, 53 dos 169 animais continham detritos dentro deles, totalizando 85 microfibras (fragmentos de fibras com menos de 5 milímetros de comprimento).

Essas fibras podem ser feitas de materiais orgânicos (algodão, seda ou lã), sintéticos (plásticos) ou semissintéticos (celulose). Fazer a caracterização precisa desse material é complicado. Apenas sete dos 85 fragmentos foram identificados como sintéticos por meio de técnicas de espectroscopia, que permitem investigar as características moleculares de um objeto; mas isso não significa que não haja mais plásticos entre as outras 78 amostras. “O equipamento tem limitações e não foi possível caracterizar todos os polímeros, principalmente em função do formato das fibras”, explicou Silva. “Mas é totalmente possível que haja mais plásticos nas amostras. O que apresentamos no trabalho é uma estimativa bem conservadora.”

Um dos principais objetivos científicos da pesquisa era determinar como os diferentes métodos de alimentação influenciam a ingestão de microdetritos por animais bentônicos na Antártida. Os organismos com maior quantidade de fibras presentes foram os pepinos-do-mar e os ofiuroides, que podem capturar partículas de alimento tanto do sedimento quanto da água. Os pesquisadores levantam a possibilidade de que esses organismos possam ser usados como “sentinelas” da presença de microdetritos em ambientes de mar profundo da Antártida, assim como já é feito com mexilhões e outros moluscos filtradores para monitorar essa contaminação em águas rasas de regiões tropicais, por exemplo.

Outros estudos já encontraram fibras no sistema digestório de vários outros animais da Antártida como pinguins, focas, peixes e moluscos, mas as espécies bentônicas seriam as melhores indicadoras da presença e da quantidade desses microdetritos no sedimento marinho.

Poluição plástica onipresente

A poluição plástica é classificada pela Organização das Nações Unidas como um dos maiores problemas ambientais do planeta atualmente. Todos os objetos de plástico se decompõem fisicamente com o tempo, quebrando-se em fragmentos cada vez menores, que são chamados de microplásticos (quando têm menos de 5 milímetros) e nanoplásticos (quando se tornam microscópicos). Esses detritos plásticos — grandes ou pequenos — não são biodegradáveis e permanecem por séculos no ambiente, podendo liberar substâncias tóxicas, contaminar alimentos e ser ingeridos por animais, incluindo seres humanos. Microplásticos já foram encontrados em vários tecidos humanos, como sangue, placenta e cérebro (bulbo olfativo).

As fibras sintéticas são uma das formas mais comuns de microplástico. Elas são geradas, principalmente, nos processos de lavagem e degradação de tecidos sintéticos, como roupas de poliéster e poliamida — que são os polímeros mais comuns na Antártida.

Não há como saber exatamente de onde vieram os fragmentos encontrados no trato intestinal dos animais: se saíram da estação de pesquisa mais próxima ou viajaram milhares de quilômetros desde algum ponto distante do planeta, carregados por correntes oceânicas ou pelo vento. “É provável que estejam vindo tanto de atividades de turismo quanto de pesquisa na própria Antártida, porque muitas das bases não têm um sistema próprio para tratamento de efluentes”, avalia Silva. “Essa é uma das origens possíveis, mas há trabalhos recentes que mostram que essas fibras podem ser carregadas por milhares de quilômetros na atmosfera.”

A baixa temperatura e alta densidade das águas ao redor da Antártida criam uma espécie de barreira oceanográfica conhecida como Convergência Antártica, ou Frente Polar Antártica, que dificulta a entrada de organismos e detritos flutuantes de outras áreas do oceano, mas parece não ser muito efetiva contra os microdetritos (incluindo microplásticos) – que podem passar tanto por cima quanto por debaixo dessa barreira.

Considerando que a construção de estações de pesquisa na Antártida — e a produção global de plásticos — se intensificou a partir da década de 1950, é provável que a contaminação do ambiente e da biodiversidade por microplásticos na região tenha começado bem antes de 1986, segundo os pesquisadores. A Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF) do Brasil, que fica na Ilha do Rei George, ao largo da Península Antártica (dentro da área abrangida pela pesquisa), foi inaugurada em 1984. A base possui sistemas para reúso de água e tratamento de esgoto convencional, mas não existem tecnologias estabelecidas, ainda, para a filtragem de microplásticos e outros microdetritos.

Atualmente, há mais de 70 estações de pesquisa na Antártica, mantidas por mais de 50 países. A ocupação total varia entre 1 mil pessoas no inverno e 5 mil pessoas no verão. Apenas metade dessas estações, aproximadamente, possuem tratamento de esgoto, segundo um estudo publicado em setembro deste ano por pesquisadores argentinos na revista Marine Pollution Bulletin.

“Como profissionais que têm a sorte de trabalhar no campo da investigação polar, devemos humildemente considerar como a nossa própria pegada ecológica impacta o ecossistema antártico”, escrevem os pesquisadores brasileiros no estudo da Environmental Science & Technology.

Fonte: Jornal da USP

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