Pescadores que atuam em rios e no mar do Espírito Santo relatam que estão encontrando animais doentes e deformados, com a aparência diferente do que era visto antes do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), há quase nove anos. Entre os flagrantes, estão tartarugas com úlceras na cabeça e nadadeiras, peixes com machucados aparentes e ostras cobertas de lama.
Segundo os trabalhadores que atuam em áreas afetadas pelo desastre, há relatos de animais vivos e com mau-cheiro. O material que aparece nesses locais não se assemelha com o encontrado no mangue no período pré-desastre, eles dizem.
Em um vídeo ao qual o g1 teve acesso, um pescador mostra um peixe linguado encontrado em Aracruz, no Norte do Espírito Santo, e aponta a existência de tumores.
Em outro flagrante na mesma região, uma pescadora fala sobre a condição das ostras. Ela diz: ‘Olha, gente, as outras em que estado que está novamente no rio. Olha essas lamas, lamas de ferro, tudo contaminado de novo’.
Os relatos vão de encontro com as informações divulgadas por pesquisadores que, pela primeira vez, constataram a presença de metais provenientes do rompimento da barragem, em todos os níveis de vida estudados na foz do Rio Doce e na costa marinha do Espírito Santo e Sul da Bahia.
Pelo menos 15 metais diferentes foram encontrados em animais, inclusive naqueles do topo da cadeia alimentar, como é o caso de tartarugas e até baleias.
Nos estudos anteriores, a contaminação causada pela lama de rejeitos era identificada principalmente em animais microscópicos e da base da cadeia alimentar. A presença de metais também foi encontrada em aves e toninhas.
Os dados estão no 5° relatório anual dos ambientes dulcícola, costeiro e marinho, ao qual o g1 teve acesso com exclusividade, e detalham as principais conclusões sobre a saúde dos ecossistemas aquáticos monitorados pelo Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA).
Quem vive da pesca, lamenta condição encontrada
Além do impacto relacionado à condição dos animais, os pescadores falam sobre a dificuldade em manter a atividade da pesca e resistência dos consumidores na compra do pescado provenientes do Norte do Espírito Santo.
De família de pescadores, Helena da Silva Vieira Santos, 59 anos, mora em Lajinha, comunidade que fica entre os rios Piraquê-Açu e Piraquê-Mirim, em Aracruz. Durante a vida inteira viveu da pesca, mas nos últimos anos disse que a família tem enfrentado muitas dificuldades para sobreviver dessa atividade.
“As pessoas têm preconceito de comprar nosso pescado. Têm medo de passar mal. Antigamente, nosso rio era saudável, mas depois da descida da barragem tudo mudou. Os nossos rios estão doentes. Minha cunhada que sempre catou mariscos, agora fica com coceira quando entra no mangue. As ostras estão manchadas, a pele está lisa com uma espécie de cobertura de minério, brilha à noite. Eu nunca vi isso antes”, explicou a pescadora.
Um vídeo registrado por pescadores de Aracruz, no Norte do Espírito Santo, mostra uma tartaruga, resgatada no Rio Piraquê-Açu, com várias deformações.
“Nunca vi uma tartaruga assim. Estava cheia de bolotas, parecia vários tumores, câncer, sei lá. Não sei o que era aquilo. Estava toda ferida e fedendo muito. Acho que estava quase morrendo”, disse.
Djalma explicou que no dia do registro, 25 de junho de 2024, ele e um parceiro de pesca saíram de caiaque para pescar de linha, até que a tartaruga fisgou a isca.
“Eu achei que fosse um peixe, mas era uma tartaruga e, por isso, precisava devolver ela pra água. Puxei para tirar ela do anzol. Meu amigo começou a filmar porque estava muito estranha, doente mesmo. Depois que aconteceu o desastre lá em Minas Gerais nosso rio mudou muito, é triste de ver. Hoje, está mais difícil pegar sururu, mariscos, caranguejo. Volta e meia aparecem peixes mortos. Na hora de vender o que pescamos aqui, as pessoas ficam perguntando de onde é de maneira desconfiada”, desabafou o pescador.
O g1 encaminhou o vídeo do pescador capixaba para o biólogo, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e coordenador da Câmara Técnica de Diversidade (CTBio), Frederico Drummond Martins, que disse que a tartaruga que aparece nas imagens tem uma doença causada por um vírus em regiões poluídas, condição que pode estar relacionada com os rejeitos arrastados pelo desastre em Mariana.
“Fibropapulomatose é uma doença causada por vírus, que ataca tartarugas. Ocorre em todo o mundo e está relacionada com regiões poluídas. Como os estudos identificaram uma queda na qualidade da saúde desses animais por causa do rompimento da barragem, essa ocorrência pode estar se intensificando. O Rio Piraquê-Açu está na área impactada pelos rejeitos do rompimento. A imagem é muito forte e mostra que o dano ambiental identificado nos estudos com séries históricos de dados pode ser apresentado em gráficos, mas também é visto e sentido em campo por quem de fato usa o rio”, explicou o especialista.
O biólogo enumerou alguns dos impactos identificados por pesquisadores, desde 2018, quando o PMBA foi implementado. Segundo ele, há alterações na saúde dos peixes, tartarugas, aves e outros organismos, além da perda de diversidade genética das espécies.
No caso das tartarugas, devido ao trabalho realizado há décadas pelo Projeto Tamar, existe uma base de dados robusta em relação animal, sendo mais detectável e concreto identificar anomalias que não existiam antes do desastre.
“Foram encontradas deficiências sanitárias importantes nas tartarugas, sendo uma delas uma conjuntivite, que não existia antes do desastre, e também uma perda de diversidade genética”, disse.
Vale ressaltar que a Praia de Regência, em Linhares, no Norte do Espírito Santo, é uma importante área de desova de tartarugas, especialmente, a Tartaruga de Couro, que é uma espécie ameaçada de extinção, e deposita os seus ovos em poucos lugares no Brasil.
Em relação às baleias, a presença de metais foi constatada no sangue, a partir de biópsia nos animais encalhados, além de relação de deficiência de saúde.
“O nexo causal em animais como a baleia, que rodam o mundo é mais difícil, não é tão linear quando a gente compara, por exemplo, com o que a gente tem de tartarugas. Mas existem correlações estatísticas fortes que sustentam uma evidência de que esse impacto chegou sim às baleias”, afirmou Frederico.
Os peixes são outro grupo bastante impactado, com o aumento dos níveis históricos de turbidez, que ainda não retornaram ao patamar original.
“A gente tem larvas de peixes com anomalias muito importantes, déficit de saúde e alterações nas comunidades. Por exemplo, no Rio Doce houve um favorecimento de espécies exóticas mais resistentes a impactos em detrimento de espécies nativas, mais sensíveis a impactos. O aparelho digestivo do peixe também fica bastante comprometido. Quando você vê as fotos, você vê que ao invés de ter um aparelho digestivo normal, você vê que o bichinho tá doente mesmo”, indicou o coordenador da CTBio.
O oceanógrafo do ICMBio, João Carlos Tomé, lembrou que o metal na água chegou também às toninhas – cetáceo que se assemelha a um golfinho – existentes na costa do Espírito Santo.
“Há alterações de organismos nas toninhas, que têm na foz do Rio Doce, a sua população mais ameaçada no Brasil. Foram detectados impactos significativos na saúde e impactos indiretos, como, por exemplo, a diminuição da comunicação entre eles. Por se comunicarem por som, a alta turbidez do ambiente dificulta que machos, fêmeas e crias se encontrem”, explicou Tomé.
Prestes a completar nove anos desde o rompimento da barragem de Fundão, em novembro de 2015, de acordo com os pesquisadores ainda é possível encontrar lama tanto no curso do Rio Doce como no mar.
João Carlos Tomé observou que os níveis de metais nos ambientes monitorados permanecem acima dos valores pré-desastre.
“Inequivocamente, os estudos estão nos mostrando que os níveis dos elementos não voltaram ao período pré-desastre, alguns mais, outros menos. […] O desastre continua acontecendo, há uma quantidade significativa na calha do rio, que a cada grande período chuvoso é redisponibilizado para a biota, e também presente no mar, ficando mais aparente quando ocorrem as frente frias”, explicou.
Tomé lembrou que, atualmente, a pesca ainda está proibida em algumas áreas da costa capixaba, com base em uma regra de 2016. Mas, segundo ele, precisa ser revista já que a contaminação extrapolou a área delimitada.
Ele disse que pesquisadores se reúnem com órgãos federais e estaduais para que novas medidas sejam tomadas a fim de preservar a biodiversidade e a segurança alimentar da população.
Procurada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reforçou que a pesca foi proibida por decisão da Justiça Federal do Espírito Santo em 17 de fevereiro de 2016. A proibição vale entre a Barra do Riacho, em Aracruz, até Degredo/Ipiranguinha, em Linhares, dentro dos 25 metros de profundidade.
Considerando essa e outras demandas judiciais, a Anvisa publicou a Resolução nº 989/2016, que proibiu o armazenamento, a distribuição e a comercialização de pescado oriundo da atividade pesqueira desenvolvida no mar dessa mesma região.
“A Anvisa, como autoridade regulatória da saúde, tem recebido dados e participado de discussões acerca dos impactos à saúde em decorrência do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG. Atualmente, compomos o Grupo de Trabalho Rio Doce – GT Rio Doce para elaboração de proposta de plano estratégico para medidas de atenção, vigilância e promoção integral à saúde das populações atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão”, disse em nota.
Os últimos dados do PMBA foram submetidos ao referido GT Rio Doce e encontra-se em análise.
Mais de quinze metais encontrados em amostras coletadas
O relatório revelou que mais de 15 metais, como ferro, níquel, arsênio, cádmio e alumínio, foram encontrados em amostras de organismos marinhos ao longo da cadeia alimentar, desde o fitoplâncton até grandes cetáceos. Para o biólogo, essa é a consolidação do impacto e a relação demonstrada com o rompimento da barragem.
O oceanógrafo do ICMBio, João Carlos Tomé, explicou que presença de metais em animais maiores era esperado pelos pesquisadores e consequência dos anos de absorção.
“O nível de contaminação foi se acumulando, é o que a gente chama de bioacumulação. Os animais de vida curta morrem rapidamente, vão para o fundo, e o sedimento depois se redisponibiliza para a cadeia. É um processo já conhecido que a gente só está constatando. Os animais de vida longa, a cada ano que passa, vão reacumulando e aumentando a absorção desses metais”, explicou.
O que dizem os envolvidos
Os dados do relatório anual foram apresentados em Vitória, na primeira semana de setembro, durante o 5º Seminário Técnico-Científico de Apresentação dos Resultados do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA). O resultado também vai ser apresentado em Brasília, no dia 27 de setembro, para Ministério Público Federal, Ministério da Saúde, atingidos, entre outras instituições.
Segundo a publicação, no que diz respeito à reversibilidade do cenário encontrado, “a maioria dos impactos (com exceção aos genéticos) identificados apresentam a possibilidade de serem revertidos ao longo do tempo, desde que sejam adotadas medidas adequadas de mitigação, reparação e conservação das condições abióticas e bióticas dos ecossistemas afetados, visando a obtenção de condições semelhantes ou melhores àquelas observadas no período pré-rompimento da barragem de Fundão”.
Tomé reforçou que esse tipo de evento precisa ter um caráter pedagógico para os órgãos públicos.
“Isso de fato é um grande exemplo para o Brasil, é uma lição de como a gente tem que se preparar melhor, de como algo a 600 km da costa afeta o Parque Nacional dos Abrolhos a 1.000 km de distância. É uma lição para gente de que as coisas estão todas interligadas e nós precisamos estar atentos a isso porque temos muito risco à nossa volta. E, como ficou demonstrado, os órgão públicos e a sociedade não estão preparados para esses grandes eventos”, falou.
A Fundação Renova considera que os resultados dos relatórios do PMBA no Espírito Santo devem ser interpretados com cautela e ainda precisam ser integrados a outros estudos realizados no Espírito Santo e em Minas Gerais para preencher lacunas de conhecimento.
Ações integradas de restauração florestal, recuperação de nascentes e saneamento estão acontecendo ao longo da bacia e visam à melhoria da qualidade da água. A bacia do Rio Doce tem pontos de monitoramento hídrico e estações automáticas que permitem acompanhar, desde 2017, sua recuperação e gerar subsídios para as ações de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão.
Os dados podem ser acessados no portal Monitoramento Rio Doce, construído em parceria com seis órgãos ambientais e agências de gestão de recursos hídricos, que formam um grupo técnico ligado ao Comitê Interfederativo (CIF).
O Ministério da Pesca informou que construiu uma proposta para atender os pescadores(as), que está no programa Propesca, que visa diminuir os impactos ao setor pesqueiro e recuperar a atividade. Também está no escopo do programa a diminuição e/ou eliminação dos riscos à saúde da população, seja os pescadores e pescadoras, como a sociedade como um todo.
A Secretaria da Saúde do Espírito Santo informou que integra o Grupo de Trabalho Rio Doce, criado pelo Ministério da Saúde, com profissionais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e as Secretarias da Saúde de Minas Gerais.
O grupo criou um plano estratégico para medidas de atenção, vigilância e promoção integral à saúde, que está em fase de consolidação dos dados para a realização de ações e medidas de saúde. No planejamento, consta a realização de estudos de avaliação de risco à saúde humana, toxicológicos, epidemiológicos, entre outros.
O Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) informou que faz parte da Câmara Técnica de Conservação da Biodiversidade (CTBio) e acompanha, desde o início o PMBA.
Todo ano o Iema, junto com os demais órgãos participantes da Câmara Técnica de Conservação e Biodiversidade (CTBio) emite uma avaliação sobre os relatórios das pesquisas. Entretanto, a avaliação desta última ainda está em andamento.
No âmbito da biodiversidade aquática, os estudos fornecem subsídios para tomadas de decisão para as ações de reparação e compensação que estão sendo ou ainda precisam ser tomadas pelos órgãos competentes.
O Iema ressaltou que participa apenas dos monitoramentos de biodiversidade com foco na conservação das espécies. Questões sobre a saúde humana são acompanhados pelas câmaras técnicas compostas por órgãos relacionados à Saúde (Anvisa e Sesa).
Fonte: G1