Prostrado sobre um tablado de madeira, com patas e focinho queimados, o tamanduá-bandeira move com dificuldade o pescoço para sugar a ração numa tigela de alumínio.
Pela primeira vez o animal consome alimento sem a ajuda de uma sonda desde que foi resgatado, em 7 de setembro, em um dos incêndios que atingem o interior de São Paulo.
Responsável pela dieta no Cetras (Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres) e no zoológico de Ribeirão Preto (SP) há 30 anos, o zootecnista Alexandre Gouvea, 59, diz que a quantidade de animais resgatados de um mesmo desastre é inédita na região.
Entre as cidades mais estruturadas do estado, Ribeirão também recebe animais encontrados nos municípios vizinhos. Da última semana de agosto até a primeira quinzena de setembro, 25 espécimes da fauna local chegaram ao centro mantido pela prefeitura. Atualmente seis estão em tratamento.
Assim como o tamanduá-bandeira, batizado “Esperança” por Gouvea, recebem cuidados no local os filhotes de onça-parda “Benedito” e de cachorro do mato “Mutano”, o macaco-prego “Bento”, o tamanduá-mirim “Bentinho”, além de um bugio, que ainda não recebeu um nome.
Outros quatro, entre eles uma cobra-coral e dois tamanduás, foram reabilitados e levados para reservas em outras áreas do estado. Mas 15 dos animais resgatados já chegaram sem vida ou morreram durante o tratamento.
A perda de vida selvagem é certamente maior. Somente a Fundação Florestal, órgão ambiental da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), recebeu 94 espécimes. Há 40 em tratamento e 53 mortes. Não entram nessa conta todos os animais resgatados por instituições e órgãos municipais sem notificação ao estado.
Ainda não existem dados oficiais da perda de fauna na gigantesca área incendiada. Números parciais do governo estadual apontam para mais de 720 mil hectares incinerados, entre plantações e florestas. Isso representa área equivalente a quase cinco vezes o tamanho da capital paulista.
Tratamentos variados são empregados para salvar os animais recolhidos, mas devolvê-los à natureza pode se tornar impossível para aqueles que requerem tratamentos longos.
É o caso da onça Benedito. Por ter sido resgata filhote, a sussuarana rapidamente demonstra apego aos tratadores e adota comportamento semelhante ao de felinos domésticos. Para que seja devolvido ao habitat, é preciso tirar dele a marca da relação de dependência dos humanos, o “imprinting”, no jargão de veterinários e biólogos.
Há um agravante no caso de Benedito. Ao fugir do fogo, ele foi atropelado e teve uma pata quebrada. A calcificação ocorreu com o membro torcido, prejudicando sua habilidade de caça. “É provável que este animal tenha de viver em cativeiro”, diz Gouvea.
Animais com danos menos graves, como o bugio e o tamanduá-mirim que se recuperam da inalação de fumaça, estão em vias de serem devolvidos à natureza, em locais onde passarão por readaptação e com autorização estadual.
Para o tamanduá-bandeira o caminho é mais longo e incerto. Com fome, Esperança não encontrou alternativa além de escarafunchar o solo quente. O forrageamento em busca de insetos é a principal forma de alimentação da espécie. Isso provocou queimaduras de 3º grau nas patas e no longo focinho – é uma lesão grave, que atinge todas as camadas de tecido.
Sem poder caminhar, ele passa todo o tempo deitado e as sessões de fisioterapia são dolorosas, apesar dos analgésicos. Também recebe aplicações de pomadas cicatrizantes e toma anti-inflamatórios.
Mas há danos ainda difíceis de estimar, como uma possível lesão neurológica devido à falta de oxigenação no cérebro ou causada por infecção, diz o veterinário Pedro Favaretto, do Cetras.
“É difícil avaliar o dano neurológico porque ele possui um cérebro muito pequeno e ao inalar fumaça há queda da taxa de oxigenação”, diz Favaretto. “Pode ter provocando a morte de tecido neurológico, pela fumaça, ou por infecção e, ainda, devido à desidratação”, comenta.
Fonte: Folha de SP