Alguns especialistas relataram que a proteção para o bem-estar de animais são aplicadas de forma inadequada na justiça dos Estados Unidos da América.
O último grande processo ocorreu há cerca de duas décadas, como comenta a porta-voz do departamento de Justiça dos Estados Unidos, Danielle Nichols, que afirma que não tem conhecimento de nenhum processo desde o fracasso do caso Bronx Reptiles, Inc.
O caso em questão, ocorrido em 1995, tratava-se de uma ação penal aberta pelo governo contra a empresa Bronx Reptiles, que comercializava animais selvagens no atacado e os trazia vivos de diversas regiões do mundo. De acordo com registros do processo, o transporte ilegal era feiro pela empresa aproximadamente duas vezes por semana. A transportadora já havia recebido três notificações de violação do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos por remessa desumana e imprópria de animais selvagens antes do processo.
Um fiscal de animais selvagens do Aeroporto Internacional John F. Kennedy, na cidade de Nova Iorque, ao verificar um embarque de animais recém-chegado se deparou com um compartimento, importado pela empresa Bronx Reptiles, repleto de sapos mortos, segundo o fiscal a caixa não tinha água ou qualquer objeto para manter os animais hidratados, e nem espaço para evitar que se ferissem. “Uma maneira anormal de transportar sapos”, “esmagados uns contra os outros”, comentou.
O proprietário da Bronx Reptiles, Bruce Edelman, a principio havia sido condenado a cinco anos em liberdade condicional e uma multa de 10 mil dólares, porém, seus advogados conseguiram reverter a sentença quando argumentaram ao tribunal que Bruce não tinha consciência das importados de animais em condições precárias e, portanto, não poderia ser responsabilizado.
A decisão do tribunal ao reverter a sentença continua impactando esse setor no país até os dias de hoje. A falta de repercussão na justiça ajudou a criar uma indústria em que “sofrimento animal, abuso e ganância humana são a norma”, explica o biólogo especialista em répteis e bem-estar animal, Clifford Warwick.
Segundo um artigo publicado pela Scientific Data em 2020, os Estados Unidos importaram cerca de 3,2 bilhões de animais vivos entre os anos 2000 e 2014, dos quais, 50% eram animais capturados da natureza e destinados a fins comerciais. O país tornou-se um dos maiores importadores de animais selvagens.
Segundo Warwick, ainda falta ao país estabelecer padrões de tratamento humanizado para o comércio desses animais, assim como ocorre na União Europeia, por exemplo, para evitar impunidade aos violadores devido à dificuldades de instaurar ações penais.
Antes, os cientistas priorizavam a proteção da espécie e ecossistemas em detrimento do bem-estar individual de cada animal. Agora, a maioria dos pesquisadores passaram a exigir que o bem-estar individual do animal se torne uma prioridade na conservação da espécie.
O biólogo conservacionista do World Wildlife Fund na Índia, Nitin Sekar, explica que é uma responsabilidade ética dos humanos não machucar os animais independentemente se eles estão bem ou não na natureza.
Em um relato, Warwick explica que durante a jornada dos animais, transferidos do caçador até o exportador, são privados de comida e água, e muitas vezes têm contato com outros animais capturados, aumentando o risco de espalhar doenças, inclusive zoonoses transmissíveis para humanos. Além de precisarem se sujeitar a viagens dentro de sacos ou caixas em uma moto, ou no porta-malas de carros, em estradas esburacadas.
Apesar disso, o transporte de algumas espécies em risco é regulamentada pela Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (Cites, na sigla em inglês), infelizmente, o tratado não abrange a grande maioria de animais, e não têm muito efeito na prática.
Somente na indústria de aquários marinhos, são capturados mais de 41 milhões de animais todo ano, dos quais, dependendo da espécie, podem apresentar uma taxa de mortalidade entre menos de 5% e mais de 90%, de acordo com um relatório da organização Defenders of Wildlife, realizado em 2012.
E as aves também são vítimas, nos Estados Unidos, as estimativas são de mais de 3,5 milhões de aves que morreram por ano no transporte inadequado, quando ainda era permitido a importação desses animais. Segundo Teresa Telecky, vice-presidente da área de animais selvagens da Humane Society International, apesar dos Estados Unidos terem banido importações de aves selvagens em 1992, não há evidências de que a situação tenha melhorado em lugares onde ainda é permitido.
Em 2009, aconteceu um dos casos que mais se destacam, quando autoridades encontraram cerca de 26,4 mil animais de 171 espécies diferentes em uma batida na U.S. Global Exotics, empresa atacadista de animais selvagens localizada em Arlington, no Texas. De acordo com o relatório sobre o caso, aproximadamente 80% dos animais estavam “extremamente doentes, machucados ou mortos”. Uma investigação secreta da PETA (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais) foi conduzida por 7 meses, causando o fechamento da empresa, porém seu proprietário, Jasen Shaw, pagou uma multa de 15 mil dólares e não foi proibido de comercializar animais selvagens. Os investigadores calcularam que a empresa descartava 3,5 mil de animais mortos por semana.
O maior problema é que não se sabe exatamente qual a porcentagem de animais que morrem ao serem capturados, ou transportados de maneira inadequado, ou em lares privados, pela falta de cuidado apropriado ou por não se adaptarem à vida em cativeiro. E, portanto, é difícil lidar com a questão, em uma escala nacional e global.
Falta de vigilância
O porto de Los Angeles é o que mais movimenta animais selvagens no mundo, ainda assim, o Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos designou apenas seis fiscais em 2020.
Joseph Ventura, um dos fiscais em 2020, contou que devido limitações logísticas, a equipe só consegue dar atenção aos casos mais extremos. “Não conseguimos dar conta de tudo”, disse, “De certa maneira, nós simplesmente liberamos as remessas.”
Não obstante, também existem limitações legais. Sue Lieberman, vice-presidente de políticas internacionais na Wildlife Conservation Society, esclareceu que o Cites (tratado sobre comércio de animais selvagens) exige que remessas de animais vivos devem ser feitas visando minimizar ferimentos ou tratamento cruel, porém seus regulamentos se aplicam apenas ao transporte, e não a como os animais são capturados, armazenados e, por fim, abrigados.
Por isso que Jonathan Kolby, ex-fiscal do Porto de Newark, em Nova Jersey em 2000, precisou autorizar remessas de répteis infestados com carrapatos e outros parasitas, mesmo preocupado com o bem-estar dos animais, e com a possibilidade de transmissão de doenças para dentro do país, já que não não havia base legal para confiscar ou postergar o envio das remessas.
O tratado estabelece que as espécies abrangidas devem ser transportadas seguindo aproximadamente 500 páginas de regras elaboradas pela Associação Internacional de Transportes Aéreos, com associação de 290 companhias aéreas.
Além disso, nos Estados Unidos, regulamentações federais preveem proteções de tratamento humanizado para animais quando eles entram no país, no entanto, críticos alegam que milhares destes animais são negligenciados, especialmente répteis, anfíbios, peixes e invertebrados, já que a lei Lacey Act trata como má conduta a importação de mamíferos e aves selvagens em “condições desumanas e insalubres”.
“Os padrões são muito, muito bons,” relata Telecky. “Se todos os implementassem, o mundo seria um lugar melhor para esses animais comercializados.”
Dificuldade com répteis e anfíbios
É difícil identificar répteis e anfíbios em sofrimento, já que estes não demonstram os mesmos sintomas de enfermidade que os mamíferos, como gemidos, choros e expressões faciais. Assim, a dificuldade para definir se um animal está muito doentes ou precisando de intervenção. O que agrava ainda mais o quadro, é não ter leis ou treinamentos específicos para isso.
As multas são emitidas somente em caso de remessas que justifiquem com clareza que uma ação deva ser tomada, como animais feridos ou mortos. Mas, geralmente é nesse ponto que chega a execução da lei.
Na década de 1990, o Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, tentaram implementar regulamentações que definiam princípios para o transporte humanizado de répteis e anfíbios, com um novo conjunto de diretrizes buscando a proteção de milhões de animais importados. No entanto, o Serviço desistiu da iniciativa após campanhas protestando contra as mudanças. Antes de começar o processo da adoção legal da nova regulamentação, a indústria de animais de estimação, principalmente membros do Pijac, começou a pressionar oficiais para não adotarem as novas diretrizes.
“O Pijac não queria as regulamentações fossem aplicadas porque os importadores não queriam, pois aumentaria o custo de transporte dos animais,” explica Bruce Weissgold, um consultor independente de comércio de animais selvagens, que na época fez parte da iniciativa. “Eles acharam que aumentar o preço dos animais para cobrir esses custos afastaria os clientes usuais das lojas de animais de estimação.”
Por outro lado, Likins, da Pijac, relatou que “não existe documentação histórica para comentar sobre a mentalidade ou as ações tomadas por membros ou funcionários do PIJAC 25 anos atrás.”
Mesmo assim, em 1997, a Associação Internacional de Transportes Aéreos adotou diretrizes parecidas com as esboçadas pelo Serviço, mas sem regulamentações federais. Apesar disso, a maioria dos comerciantes de répteis estadunidenses cujas remessas passam por Los Angeles obedecem de forma voluntária essas diretrizes, conta Ventura.
De acordo com Frank Kohn, biólogo especializado da Cites, o governo continua com interesse em regulamentar o transporte humanizado de répteis e anfíbios, mas existem outras prioridades no momento.
Mudanças à frente
O biólogo conservacionista Sekar disse que a tendência está crescendo – mesmo que de maneira lenta – e despertando o interesse do público em melhorar o bem-estar desses animais, acompanhando o crescimento de evidências científicas que animais têm pensamentos e sentimentos.
Segundo ele, o número de de compradores e vendedores que estão mudando os hábitos ainda é pequeno, já que o lucro das vendas pode ser reduzido se forem impostos altas regulamentações visando o bem-estar animal.
Em contrapartida, o ex-vice-presidente executivo e conselheiro geral do Pijac, Marshall Meyers, que hoje participa do Painel Consultivo do Conselho de Animais Vivos da Iataos diz, representando a indústria de animais de estimação que “Queremos cuidado humanizado e boas práticas de veterinária e ciência,”, e completa: “Nós não nos opomos às regulamentações, contanto que elas sejam baseadas em dados confiáveis.”
O que falta, na verdade, é vontade política nos Estados Unidos. “Na minha opinião, tudo se resume a medo de controvérsias, falta de imaginação, uma relação ruim entre interesses internacionais e programas de execução da lei, e uma carga de trabalho pesada em outras áreas” contou Weissgold. Mas neste ano, existe uma forte pressão ao presidente Joe Biden para melhorar a cooperação internacional em assuntos relacionados ao comércio de animais selvagens.
“Os Estados Unidos se afastaram do multilateralismo em muitas frentes, e essa é uma das muitas questões que apontam para a necessidade crítica de melhorar a colaboração entre governos,” esclarece Lieberman, que diz que regular o comércio de animais vivos é uma parte importante na prevenção de futuras pandemias.
Uma das sugestões para a mudança é uma “lista positiva”, similar as implementadas na Holanda e Bélgica. A ideia é permitir somente a comercialização de animais que possuem amplas evidências científicas de que podem ser comercializados de maneira segura, sem danos ou sofrimento, a partir de uma lista de espécies.
Diferentemente da Holanda e Bélgica, a pressão é que a lista se estenda para todas as espécies, não somente aos animais mamíferos exóticos. O apelo acontece tanto na União Europeia, quanto nos Estados Unidos.
Além diss, Telecky frisa “Se você se importa com o bem-estar animal e com a preservação, não compre um animal selvagem”. Ela explica que os próprios consumidores podem fazer a diferença e encoraja as pessoas que compram animais exóticos a sempre perguntarem qual a origem do animal, e se eles foram criados em cativeiro ou capturados na natureza.