Pois então ontem mais um cavalo capotou na maior avenida de Porto Alegre, a Protásio Alves. Exausta, a égua foi surrada pelo carroceiro, que fugiu em seguida, e então populares a colocaram na calçada, para que não fosse atropelada. O fato, corriqueiro nas veias abertas do trânsito da Capital, acabou ganhando espaço em sites, jornais e até telejornais locais. O excesso de violência aplicado aos ‘cavalos do asfalto’ tem revoltado até mesmo aqueles que, habitualmente, fazem vista grossa e sempre tiram da manda o argumento-air-bag ‘ah, mas ele está trabalhando’. Não, não está.
Nesse sistema de revirar lixo nas calçadas e amontoar na periferia tudo aquilo que as zelosas donas de casa conscientes separaram para reciclagem, quem tem trabalho garantido é aquele que puxa carroça, estressado pelo holocauso automotivo, sedento, esfomeado e contando com a própria sorte para não se ferir. Pois um ferro no casco, um corte ou pata quebrada não vão lhe dar salvaguarda para o expediente no dia seguinte. Para o carroceiro, é um subemprego com aura glamourosa de autogestão e ecologia, segundo alguns coletivos de gente que não faz a barba e estuda em universidade federal. Quando o prazo derradeiro para circulação das VTA – veículos de tração animal – se esgotar, vou me divertir descobrindo qual será a nova massa de manobra que esses jovens ‘conscientes’ vão usar para brincar de revolução. Porque os catadores estarão em um beco sem saída, e os universitários já vão estar preocupados em tomar banho, fazer a barba e arrumar um emprego, finalmente.
E quem os colocou contra a parede foi justamente a parcela da população que ideologizou a escravidão que capota no asfalto, e a grande maioria que ignora o que quer que esteja além do para-brisa do próprio automóvel. Algum ganho, alguma melhoria, muita esperança, vieram justamente daqueles que, desconfortáveis em suas cadeiras, começaram a desatar o nó social pelo viés dos equinos explorados até depois da queda. Aqueles que justamente são taxados de não se importarem com os humanos, de só se importarem com os animais, de não se importar com a fome dos filhos dos carroceiros – deco acusatório levantado por quem não percebe a própria indiferença. E o estrago que ela causa.
As carroças não nasceram ontem, mas um cruzamento de variáveis fez proliferar sua presença no corre-corre urbano da Capital gaúcha, e junto toda a verdade não romanceada. Pois lembro de um nome da inteligentzia local, em um programa de rádio, dizendo que as VTA eram cultura, não podiam ser extintas. Claro, quem vive da grana pública da Lei de Incentivo à Cultura não está puxando uma carroça atrelado pels dentes, nem está revirando lixo, sem muitos dentes na boca. Mas não quer ficar mal com o público descolado, então demagogiza um pouquinho, e sai como uma voz dos desfavorecidos. Um poeta do povo. ‘Sou burguês mas sou artista’. Ok, e eu sou o Bozo.
Enquanto isso, os abolicionistas fazem muita articulação e correria para que se prescinda dos cavalos como engrenagem. E também para tirar os animais também da condição de ingrediente.