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Animais, animais, e outros “bichos”

5 de dezembro de 2011
8 min. de leitura
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Embora não seja uma pessoa religiosa (pelo contrário, sou ateu), sempre nutri certa simpatia pela espiritualidade oriental. Talvez essa simpatia seja justificada menos pelos dogmas religiosos, também lá presentes, e mais pela maior de compassividade que, em geral, dispensa aos animais e à natureza, especialmente quando comparada à nossa tradição religiosa ocidental.
O hinduísmo, nas suas mais variadas vertentes (ortodoxas, que aceitam a autoridade dos Vedas, e heterodoxas, que adotam outras fontes como válidas), por exemplo, é fruto da evolução filosófica secular do vedismo e do bramanismo, e incorpora a moksía como fundamento geral de conduta ligada a um projeto de “purificação” individual. A ahimsã, que poderia ser traduzido como a meta geral de não matar ou lesar (não-violência), representa um dos alicerces fundamentais da moksía e reflete-se numa maneira mais suave e gentil de relacionamento com o mundo natural. A violência, seja ela cometida a outros seres humanos ou a não humanos, está ligada, portanto, a um modo de ser incompatível com o projeto de salvação do próprio ser humano.
Movido talvez por essa admiração, adquiri, recentemente, o livro “A Sabedoria dos Cães”, de Deepak e Ghotham Chopra. Deepak Chopra, nascido em Nova Déli, na Índia, mudou-se para os Estados Unidos nos anos 70, e lá se tornou um médico bem-sucedido, professor universitário e chefe de equipe do Memorial Hospital de Nova York. Nos anos 80 iniciou-se na meditação e tornou-se discípulo do guru indiano Maharishi Mahesh Yogi. Em 1985, fundou a Associação Americana de Medicina Védica e abriu o “The Chopra Center For Well Being”, onde desenvolve os seus próprios programas e cursos para o desenvolvimento pessoal. É autor de mais de 25 livros entre os quais se destaca “As Sete Leis Espirituais do Sucesso”, obra que o alçou à condição de guru de  empresários, personalidades e celebridades norte-americanas.
Quando me deparei com o título relacionado aos cães fiquei curioso para conhecer a abordagem de Chopra.    O livro é, ao mesmo tempo, interessante e paradoxal, e narra a história da vida da família Chopra, com um enfoque especial sobre o seu relacionamento com uma cachorrinha adotada chamada Cleo (por absoluta coincidência, a mais nova componente da nossa família também fora “batizada” com o mesmo nome alguns meses antes).
Logo no início da obra há o relato de uma experiência gastronômica da família em um restaurante onde havia uma enorme vaca de cerâmica da “cow parade”, pintada com desenhos variados: “É claro que era estranho o fato de uma delas estar na entrada de um restaurante mais conhecido pelo abate de vacas e por vender sua carne temperada com alho a preços exorbitantes” (op.cit., p. 58). Deepak então mostra ao neto Krishu como as vacas saem da cozinha, num prato a ser servido a um dos componentes da família. A criança então reage afirmando que não poderiam comer a “vaquinha”. Esta parece uma reação natural de alguém exposto a uma verdade que incomoda, que é inconveniente. As crianças parecem ainda não terem perdido a sensibilidade para perceber este fato.
Interessante notar essa relação da família Chopra com a alimentação, já que, embora Deepak a todo o momento diga que se “esforça” para ser vegetariano, esta sua meta não é, de fato, compartilhada com a mesma intensidade pelos demais. Exemplo claro disto consiste numa passagem do livro onde há um comentário sobre o casamento de Ghotam, filho de Deepak, com Candice, de descendência chinesa. A descrição do banquete não contém juízo de valor algum sobre os alimentos servidos: “os banquetes são tradicionais na cultura chinesa. Como na cultura indiana, a comida não é apenas uma forma de demonstrar a prosperidade da família,mas, quanto maior a sua diversidade, maior a celebração. A família de Candice havia organizado um evento de gala, com vários pratos, open bar e muitos familiares. Enquanto todos se divertiam, aproveitando a sopa de barbatana de tubarão, os dumplings de caranguejo etc, Candice e eu cumprimos nossa obrigação, indo de mesa em mesa, dando as boas-vindas aos parentes que mal conhecíamos e que tinham vindo nos abençoar com sua presença” (op.cit., p. 141).
Em outra situação, os personagens narram sua felicidade me viajar em família para o Colorado, onde “as caminhadas, passeios de bicicleta pela montanha e até mesmo passeios de caiaque ou pescarias” eram os principais atrativos (op.cit., p. 212).
É curioso confrontar esta relativa ausência de preocupação com os animais, ou ao menos em relação a algumas espécies de animais, com a tradição védica hinduísta. Como o próprio Ghotam relata, o Mahabharata, por exemplo, uma das narrativas épicas indianas mais importantes (equivalentes asiáticos da Ilíada e Odisseia no Ocidente), descreve a disputa entre os irmãos Pandava e seus primos rivais , os cem irmãos Kaurava: “No centro da batalha há uma batalha de dezoito dias entre os dois lados da mesma família. Irmãos, pais, filhos, tios, mentores, protegidos, deuses e semideuses se envolvem em uma guerra mítica e terrível, cujo resultado irá determinar o destino do universo.
No final, é claro, os nobres irmãos Pandava triunfam, massacrando todos os seus rivais, mas também sofrendo baixas consideráveis. Consequentemente, depois de tanta violência e tantas perdas, eles questionam se realmente conquistaram uma vitória. Diante deste dilema existencial que não conseguem resolver, os irmão entregam o reino durante conquistado ao seu último herdeiro vivo – um sobrinho que sobreviveu à guerra – e partem rumo ao mítico reino de Kailash (no limiar do Paraíso) em busca das bênçãos de Deus.
Os cinco irmãos, liderados pelo mais velho, Yudishtra, e sua consorte, Draupadi, avançam na árdua subida. No início, em um dos vilarejos pobres na base da montanha, o grupo é seguido por um cão sarnento que vagava por ali a esmo. Mas, quando iniciam a subida da montanha, e esta se torna mais íngreme, coisas ruins acontecem. O irmão mais novo, Nakula, escorrega no gelo e cai para a morte.
Depois de chorar a perda do irmão, eles continuam a subida em busca de seu nobre objetivo. Então as coisas se complicam de verdade porque, como em um filme de horror, à medida que o grupo seguido pelo cão sarnento avança, os irmãos escorregam para a morte, um a um, inclusive Draupadi. Somente Yudishtra e o cão sobrevivem e chegam ao topo da montanha. É aí que Yudishtra encontra  Indra, rei dos deuses e dos céus. Ele cumprimenta Yudishtra por ter conseguido concluir a subida e di que ele conquistou um lugar no reino dos céus.
Abre a porta de uma enorme carruagem divina e convida Yudishtra para uma viagem para a bem-aventurança eterna. Yudisthtra agradece e dirige-se para a carruagem, acenando para que o cachorro o siga. Mas espere! Indra impede o cachorro e diz a Yudishtra que os cães – e certamente os cães sujos do vilarejo – não são bem-vindos no céu. Yudishtra diz que o cão foi leal e permaneceu a seu lado durante toda a subida e não tem a intenção de abandonar seu fiel companheiro. Indra ficou confuso e irritado. Yudishtra mostrou-se disposto a abandonar seus irmãos e Draupadi durante a subida, mas não o cachorro sujo, mesmo quando lhe é concedida a entrada no céu.
Yudishtra balança a cabeça solenemente. Explica que não deixou seus irmãos ou Draupadi. Eles lhe foram tirados e imagina que deve ter sido algum plano divino que ele desconhece. Insiste que tem fé e acredita que se reunirá aos entes queridos quando for a hora. Com isso, reitera que não prosseguirá se o cão não estiver a seu lado. Lord Indra sorri finalmente. De repente o cão começa a se transformar e se revela como o deus Dharma, que é uma encarnação do próprio Indra. […] Ele explica que todo o episódio da subida da montanha, até a morte dos entes queridos de Yudishtra, e o convite  para entrar nos céus sem o cão eram um teste. E Yudishtra havia passado com honras. Juntos, Yudishtra, Lord Indra e Lord Dharma entram nos céus, onde Yudishtra acaba se reunindo com seus irmãos e Draupadi” (op.cit., p. 147 e 148).
O belo relato de fidelidade do cão muito se assemelha à narrativa da Odisseia onde Ulisses, disfarçado de mendigo, após longa ausência, reencontra seu cão Argos, negligenciado, abandonado e doente.  O único a reconhecer Ulisses é o cão, que morre logo em seguida.
O problema da “A Sabedoria dos Cães” reside justamente nesta eleição do cão como alvo da nossa atenção moral enquanto, paralelamente, negligenciam-se abertamente outras espécies a uma situação de completo descaso ético. Conforme ressalta a Professora Sonia T. Felipe, esta é uma manifestação clara que de um especismo eletivo (escolha de determinadas espécies como detentoras de um estatuto moral diferenciado em detrimento das demais, em tudo suas semelhantes) que não deveria encontrar margem num cenário que tem como pano de fundo o importante princípio geral da não violência.
Ao que tudo indica, a maior parte das religiões, mesmo as de tradição oriental, em maior ou menor medida, encampam, pelo menos no campo da prática, esse escalonamento valorativo entre a humanidade e os demais seres vivos. Essa hierarquia da vida, legado nefasto de um pensamento completamente descomprometido com a realidade biológica subjacente, é algo que deve ser repensado.
As religiões, ao contrário do que o adágio popular prescreve, não estão imunes ao embate ético. A esse respeito cabe fazer menção elogiosa ao artigo “Especismo Religioso” do amigo e Professor Fábio Corrêa Souza de Oliveira, que aborda com profundidade esta questão do relacionamento das religiões com a natureza e com os animais, recém publicado no número 8 da Revista Brasileira de Direito Animal. Um mundo melhor, com melhores relações, depende da reconstrução de nossos valores em todos os contextos, inclusive o espiritual ou religioso.

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