Mega polo agrícola do nordeste brasileiro segue intocado por ações para conter mortes de animais selvagens em sistemas de irrigação. Canais e reservatórios perto de áreas protegidas e outorgas de água em zonas prioritárias para conservação inflam ameaças à vida selvagem.
“Ao chegar ao local se pôde sentir forte cheiro de carniça, que, seguido, levou à equipe a um local com a terra revolvida e pedaços de lona semienterrados, levando a crer que se tratava de ocultação de carcaças”.
Até parece uma série de investigação policial, mas a cena é descrita num relatório de agentes federais sobre animais afogados em canais de irrigação no oeste da Bahia. Retirados da água, os restos foram queimados e enterrados.
Na região, um dos maiores polos do agronegócio no país, fazendas têm canais forrados com plástico liso. Tentando atravessá-los ou beber água, os animais caem e agonizam até a morte tentando escapar das escorregadias armadilhas.
Medidas frágeis
O documento obtido pela reportagem lembra que as fazendas foram autuadas e notificadas pelo governo estadual para adotar medidas e conter as mortes. Mas “pouco, ou nada, havia sido feito”, afirma o relatório federal, de junho passado.
Telas para isolar trechos dos canais estavam caídas ou esburacadas. Além disso, podem ser cruzadas por espécies pequenas, como roedores, ou saltadas pelas maiores, como o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus). Com pelagem similar a de raposas, o elegante canídeo só vive na América do Sul.
“Medidas protetoras da fauna não são realmente exigidas e fiscalizadas pelo poder público”, afirma Rodrigo Gerhardt, gerente da Campanha de Vida Silvestre da ong Proteção Animal Mundial no Brasil.
Marcas de animais tentando escapar de um canal de irrigação forrado por plástico. Fotos: ICMBio/Relatório da Operação Inverno 2024
As preocupações não param por aí. As quatro fazendas vistoriadas estão logo ao norte do Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Ele é uma das maiores reservas do Cerrado, a savana brasileira, entre os estados de Minas Gerais e da Bahia.
Três lobos-guará afogados naqueles canais de irrigação, de junho a agosto de 2023, eram até 40% da sua população regional. A espécie corre risco de extinção no Brasil. ((o))eco foi pioneiro ao revelar essas mortes.
As vítimas eram uma mãe e suas duas crias juvenis – Nhorinhá, Formoso e Urucuia. Eles só foram encontrados porque eram rastreados por rádio-colares pela ong Onçafari, que trabalha com pesquisa, conservação e ecoturismo com espécies silvestres.
Vários outros animais também perderam as vidas na água, como os também ameaçados tatu-peba (Euphractus sexcinctus), gato-palheiro (Leopardus colocolo) e caititu (Pecari tajacu), roedores e variadas outras espécies.
Esse cenário letal à fauna selvagem exige medidas enérgicas, afirma Maria Dalce Ricas, superintendente da Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA), ong que busca conciliar produção rural e conservação, desde 1978.
“O que ocorre nas fazendas é ilegal e inconstitucional. É necessário fiscalizar e agir contra a morte de animais silvestres nos sistemas de irrigação de todo o oeste baiano”, alerta.
A reportagem apurou que agentes ambientais federais voltaram a imóveis rurais naquela região baiana, em dezembro, e constataram que seus canais e reservatórios de água seguiam ameaçando de morte animais silvestres.
O Parque Nacional Grande Sertão Veredas é uma das poucas reservas de proteção ambiental mais rígida regional, além do Refúgio de Vida Silvestre Veredas do Oeste Baiano e das estações ecológicas de Rio Preto e da Serra Geral do Tocantins. Todas são indispensáveis à vida selvagem.
Contudo, os animais não ficam restritos a essas e outras áreas protegidas em lei, como as margens de rios e nascentes. Eles perambulam pelo oeste baiano todo, onde casualmente cruzam com reservatórios e canais de água.
Esses “rios artificiais” podem ser um chamariz para a fauna silvestre numa região semiárida onde a vegetação nativa dá lugar a extensas lavouras, sobretudo de milho, algodão e soja – o grão mais exportado por Bahia e Brasil.
As ameaças à fauna crescem porque metade das outorgas de água para irrigação incidem em zonas, mapeadas pelo governo federal, com prioridade extremamente alta para conservação e uso sustentável da biodiversidade.
A análise é da ong Instituto Mãos da Terra (Imaterra) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA), apoiada pelas ongs WWF-Brasil e Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
“É uma situação extremamente crítica para a fauna nativa”, resume Margareth Maia, diretora do Imaterra e doutora em Ecologia pela UFBA.
O trabalho aponta igualmente que faltam programas para resgate, reabilitação e soltura de animais selvagens em licenças estaduais para desmates no polo agrícola, como pedem as leis baiana e federal.
“Prejuízos à fauna silvestre gerados pela supressão da vegetação nativa são negligenciados”, ressalta Maia.
Já para Rodrigo Gerhardt (Proteção Animal Mundial no Brasil), os afogamentos em canais e reservatórios abertos de irrigação evidenciam como as políticas públicas escanteiam a proteção de animais de vida livre.
“Conservar a fauna nativa é fundamental para manter e restaurar florestas e outros ambientes naturais. O que está na legislação ambiental precisa chegar mais aos territórios”, diz o especialista.
Máquina licenciadora
O oeste baiano tem 171 mil km², quase o tamanho do Uruguai ou do estado do Paraná. Fazendas dominam as chapadas dessa porção de Cerrado, bioma que soma 80% do desmate autorizado pelo Governo da Bahia. Lá também há Mata Atlântica e Caatinga.
Na região, 17 bilhões de litros diários de água outorgados só nas bacias dos rios Grande, Corrente e Carinhanha servem quase todos à irrigação, mostra o balanço do Imaterra e UFBA. Eles abasteceriam 100 milhões de pessoas.
Atualmente, Bahia, Minas Gerais e Goiás somam a maior área irrigada com pivôs centrais no país, ou 64% da mancha nacional desses sistemas. Os dados são do MapBiomas, plataforma atenta a mudanças no uso da terra e da água.
Além disso, parece haver facilitação para desmates.
De setembro de 2007 a junho de 2021, o Governo da Bahia permitiu eliminar quase 10 mil km2 de vegetação, no estado todo. No oeste baiano, Imaterra e UFBA acharam supostas irregularidades nas ações de 26 fazendas, como desmatar além do autorizado e até em áreas protegidas em lei.
Para Margareth Maia (Imaterra), a liberação massiva de permissões para supressão de vegetação natural e uso de água pelo governo baiano contribui para ampliar conflitos e danos socioambientais. “Isso é uma política pública estadual”, diz.
Responsável por executar políticas protetoras de água, clima e biodiversidade na Bahia, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) não informou sobre medidas para conter os afogamentos de animais silvestres e nem quanto aos apontados desvios em licenças para desmate e uso de água.
Fonte O Eco