Dados da Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides apontam que o consumo de produtos importados à base de canabidiol para uso medicinal no Brasil teve alta de 110% no ano passado, em relação a 2020. E não são somente os seres humanos que podem se beneficiar do uso da cannabis medicinal, segundo pesquisas recentes, o que tem levado cada vez mais veterinários a prescrevê-la a seus pacientes, embora o uso para animais ainda não esteja regulamentado. Em todo o país, grupos de trabalho vêm sendo montados nos Conselhos Regionais de Medicina Veterinária para estruturar a terapia e tentar garantir que ela seja usada com segurança e amparada pela legislação. Enquanto isso, valendo-se de uma brecha jurídica e de liminares na Justiça, profissionais vêm receitando-a. Eles alegam que quem regula a atividade de veterinário é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento — cabendo a fiscalização ao Conselho Federal de Medicina Veterinária — e que o estatuto da profissão permite que adotem qualquer tratamento que julguem necessário.
Atualmente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) só permite que produtos com cannabis industrializados e importados, destinados a humanos, sejam comercializados no país. Óleos e outras apresentações manipuladas estão proibidos.
A neurologista e acupunturista Magda Alves de Medeiros, professora titular em fisiologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e coordenadora científica do grupo de trabalho do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio de Janeiro, explica que, quando o especialista quer que uma fórmula seja manipulada, para determinar qual a quantidade de cada componente com propriedades medicinais da planta Cannabis sativa estará no produto, prescreve o óleo indicado para o animal e faz um termo de esclarecimento para o tutor. Ambos são entregues pelos donos dos animais para as associações que comercializam os óleos.
— Em 2018, a (farmácia) DrogaVet conseguiu importar matéria-prima e começamos a usá-la; a demanda era muito grande. Infelizmente, isso foi proibido logo em seguida. Em 2020, associações de pacientes humanos começaram a fornecer cannabis medicinal para tutores de animais que tinham a prescrição, e o consumo cresceu. Até hoje o acesso é por essas associações, que atendem os tutores em desobediência civil, mas o veterinário precisa justificar o pedido. A Anvisa só permite que profissionais com inscrição no Conselho Regional de Medicina façam a prescrição. Nós (veterinários que prescrevem a cannabis) também estamos em desobediência civil, e é por isso que o Conselho Federal de Medicina Veterinária está pressionando a Anvisa para nos reconhecer e nos dar a autorização e liberdade para atuar— explica.
Entre as associações, apenas a Associação Medicinal Canábica (Amec), em São Paulo, tem permissão, obtida por força de uma liminar, para fornecer cannabis medicinal para uso veterinário. Magda afirma que a substância é benéfica e dificilmente causa efeitos colaterais na maioria dos pacientes, entre gatos, cachorros, cavalos, aves e animais silvestres:
— Existem resultados comprovados, principalmente para dor, displasia, distúrbios cognitivos, alterações comportamentais como ansiedade, dermatites atópicas e dificuldades com o treinamento higiênico. Outro resultado positivo é no controle de crises epiléticas. Profissionais também já estão tratando pacientes com câncer. Neste caso, os estudos ainda estão em andamento e são indicativos.
Caso haja efeitos colaterais, eles são brandos, como diarreia, ansiedade ou sonolência, explica a veterinária Beatriz Hassan, outra adepta da terapia.
— As reações adversas são raras, mas podem acontecer e geralmente estão associadas a casos de superdosagem. Só considero que há contraindicação para pacientes com quadros de síncopes, hipotensão e hipoglicemia ou que estão intoxicados. Caso o animal use muitos medicamentos, as interações precisam ser observadas e é preciso redobrar a atenção — observa.
Um dos pacientes de Magda Alves de Medeiros é o vira-lata Sushi, do casal proprietário da Casa Ueda, no Recreio. O cão, de 4 anos, recebe o tratamento com cannabis há dois anos e meio, comprado de um fornecedor que obteve liminar para preparar o óleo, e seus tutores, Marcelli Bassani e Eric Ueda, não pensam em parar a terapia. Para Marcelli, a cannabis deveria ser desmistificada para se tornar mais acessível.
— Pegamos o Sushi e, dois dias depois, ele começou a apresentar um comportamento mais agressivo e estranho. Procuramos a neurologista, fizemos exames e foi constatado que ele teve doença do carrapato, o que poderia estar afetando a parte neurológica. Hoje, ele é extremamente amoroso, dócil e muito diferente de quando o resgatamos —conta.
O preço dos frascos varia de R$ 250 a R$ 600, de acordo com a composição do óleo. O mais utilizado é o Full Spectrum, considerado mais efetivo e seguro por ter todos os componentes medicinais da Cannabis sativa. A aplicação geralmente é feita na mucosa oral. A posologia começa com uma dose mínima, podendo aumentar de acordo com a necessidade, mas sempre com o cuidado de se oferecer a menor quantidade possível, e depende da patologia e do tamanho do animal.
— A maconha (Cannabis sativa) tem mais de 500 componentes, e cada cepa tem diferentes quantidades deles. Quando você compra um óleo, não sabe o que tem ali dentro. Por isso também é preciso ter acompanhamento de um profissional — explica Magda.
Expectativa é que pesquisas sustentem liberação da terapia
Veterinária e professora da Estácio, Cristina Pliego diz que, apesar de os estudos clínicos em animais ainda serem recentes, já há comprovação do benefício do uso de cannabis para eles:
— Não é uma receita de bolo; cada animal é único. Geralmente os tutores que optam pelo tratamento são pessoas que já tentaram de tudo e não tiveram sucesso. Tratei um husky siberiano de 2 anos que tinha convulsões e não respondia mais a medicação. Depois que ele começou o tratamento, não teve mais convulsões.
Nem todos concordam. Neurologista e sócio da clínica CRV Imagem, Alex Adeodato acredita que no futuro derivados da planta serão importantes formas de tratamento, mas que hoje não há trabalho na área de neurologia animal que apoie seu uso:
—Um dos problemas que enfrento é que muitos tutores param de dar os remédios e os substituem pelo óleo. Há veterinários utilizando-o de maneira errada. E, como não há fiscalização, ninguém tem responsabilidade pelo que acontece. É preciso que o uso seja legalizado para que seja possível também controlar o produto.
A jornalista Alice Fonseca, tutora de Mao, de 13 anos, optou pelo uso de cannabis há cerca de dois anos, para tratar a epilepsia de seu cão. Conta que ele tomava muitos medicamentos, que causavam vários efeitos colaterais.
—Ele começou a ficar aéreo, sem foco, nem nos reconhecia. Com o óleo, em uma semana o quadro se reverteu. Ele é idoso, e as veterinárias já não tinham mais margem para manobras. Hoje está bem — relata.
Mao é tratado por Beatriz Hassan e Mariana Blanco. As duas fizeram cursos de capacitação para prescrever o óleo de cannabis.
— Ainda existe preconceito, não pelo fato de a maconha ter se popularizado como droga, mas pela questão (da escassez) dos estudos. Acompanho o Mao toda semana e, com a acupuntura e o tratamento de cannabis, ele tem mais vitalidade e qualidade de vida. Suas doenças podem não ter sido curadas, mas ele melhorou. A cannabis também atua no emocional, o que traz benefícios e relaxamento. Muitas doenças são causadas por transtornos emocionais e estresse — assegura Mariana.
A dupla trabalha com oncologistas e garante que muitos já sugerem que os tutores as procurem.
— O câncer é agressivo e multifatorial; não buscamos a cura, mas o aumento da sobrevida. O óleo ajuda na imunidade. Na prática, observamos muitos resultados e trabalhamos com a terapia dose/resposta. Existe preconceito por ser uma terapia nova, e os trabalhos científicos não evoluem pela dificuldade da liberação da substância. Precisamos de mais artigos, mais estudos clínicos específicos. Trabalhamos em conjunto com especialistas — garante Beatriz, que decidiu estudar o uso da cannabis medicinal após tratar a própria cadela, idosa. — Eu tinha uma labradora de 16 anos com restrições articulares que passava o dia inquieta. Com a cannabis, ela ganhou mais qualidade de vida.
Sócia e farmacêutica responsavél da DrogaVet, Roberta Scistowicz conta que quando a farmácia pôde vender produtos como biscoitos, cápsulas, xaropes e pastas à base de canabidiol recebeu retornos muito positivos dos clientes. Agora, seu setor jurídico tenta conseguir autorização para voltar a fazê-lo.
— Os conselhos de farmácia e veterinária estão se movimentando, promovendo eventos sobre a substância e em cima da Anvisa. Estamos esperançosos — conta.
Fonte: O Globo