Depois do mico-leão dourado, do panda, da baleia, chegou a vez da onça-pintada. Maior felino das Américas e rainha das florestas brasileiras, a onça-pintada se tornou símbolo de campanhas pela preservação da biodiversidade. Ela consta como “vulnerável” na lista de animais ameaçados de extinção do Ministério do Meio Ambiente. Mas na Caatinga e na Mata Atlântica está à beira da extinção. No Pantanal, a onça é vítima de caçadores e da expansão das pastagens. Só na Amazônia a população é razoável, mas pouco estudada. Aliás, a onça-pintada, um animal naturalmente esquivo e misterioso, ainda tem muitos de seus hábitos desconhecidos. Sem medidas emergenciais, a espécie poderia desaparecer de todo o país – à exceção da Amazônia – nos próximos 100 anos.
O estado crítico da onça-pintada mobilizou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que lançará, ainda este ano, um livro com mais de 200 ações de socorro à espécie, entre medidas de curto e longo prazo. As propostas foram esboçadas desde o fim do ano passado, quando o animal foi tema de um workshop em Atibaia, em São Paulo. A cidade sedia o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), órgão do ICMBio responsável pelo estudo de grandes felinos brasileiros.
Salvar a onça-pintada custará R$ 12 milhões, entre o investimento em pesquisas, criação de novas unidades de conservação e educação ambiental. Outra medida cobrada pelo Cenap é o reconhecimento, em até três anos, do animal como símbolo da conservação da biodiversidade brasileira.
Até agora, porém, a espécie está em risco. Estima-se que restem menos de 13 mil onças-pintadas no país – a conta não inclui o Pantanal. Os pesquisadores são cautelosos ao analisar esta contagem, considerando as dificuldades em estudar um animal que percorre áreas tão grandes e embrenha-se na mata virgem da Amazônia. De certo se sabe mesmo que a onça, de predadora temida, tornou-se caça, perseguida por fazendeiros.
“As pesquisas mais recentes mostram que, no Pantanal e na Amazônia, a situação da espécie não é favorável como se imaginava”, alerta Rogério Cunha de Paula, chefe-substituto do Cenap. “Sem esses biomas, portanto, a onça-pintada ocuparia um estágio ainda pior do que vulnerável. Se não agirmos, vamos seguir o caminho de Uruguai e Argentina, onde este animal já desapareceu.
Predador não é páreo para cidades e pastagens
Um dos maiores problemas da onça-pintada é a falta de um lugar para chamar de seu. Mais da metade (54%) das áreas de habitat desses felinos não existe mais. O desmatamento pode fazer com que a espécie desapareça, em até cinco anos, de algumas regiões. Segundo os pesquisadores, uma maneira de garantir a sobrevivência das pequenas populações do animal, cada vez mais isoladas pela expansão de centros urbanos e outras atividades econômicas, seria interligar as unidades de conservação. O Cenap dedica-se há três anos à construção do Corredor da Onça, uma estrutura que cumpriria este papel na Caatinga.
“É um projeto que precisa ser negociado cuidadosamente, porque a proteção da onça-pintada não pode restringir o desenvolvimento da população humana que vive entre as unidades de conservação”, pondera Rogério Cunha de Paula, do Cenap. “Precisamos do apoio de outros ministérios. Com o projeto, teremos garantida a conservação do felino em uma área de 133 mil de km², que abrange quatro parques nacionais, além de outro ainda em desenvolvimento.”
O escudo para a onça seria mais do que bem-vindo. Das 17 unidades de conservação existentes na Caatinga, apenas três têm manejo apropriado para proteger espécies ameaçadas. Nas outras, portanto, o animal está em risco. A consequência imediata é a fragmentação das populações, o que a expõe ainda mais à caça. Na região de Bom Jesus da Lapa (BA), por exemplo, sobraram apenas três felinos.
O Cerrado tampouco é seguro. Neste bioma, a população de onças-pintadas caiu pela metade em apenas 25 anos – sobraram 949, de acordo com o Cenap. Em poucas décadas, 2 milhões de km² desta região (uma área quatro vezes maior do que a Espanha) foram adaptados à agropecuária. Uma baixa significativa para os felinos e suas presas.
As pastagens já chegaram ao extremo sul e ao leste da Amazônia, onde o número de onças-pintadas é uma incógnita. Como toda a floresta ainda de pé serve de habitat para a espécie, estima-se que mais de 10 mil indivíduos adultos vivam por lá. Mas o relatório da Cenap faz um alerta: se o cenário de degradação ambiental continuar, os felinos ficarão praticamente restritos à área ocupada por cinco unidades de conservação. Neste cenário pessimista, a população de onças-pintadas poderia cair para menos de 3 mil indivíduos.
“A Amazônia é uma incógnita”, define Ricardo Boulhosa, coordenador-executivo do Instituto Pró-Carnívoros, ONG que participa, com o Cenap, de levantamentos relacionados às onças. “Ainda não sabemos os territórios em que vive a espécie, nem a sua densidade. Estamos preocupados com o Arco do Desmatamento, como é chamada a borda da floresta, uma área muito conflituosa. Ainda sabemos pouco sobre as onças, mas é muito provável que sua situação nunca tenha sido tão arriscada.”
No Pantanal, as onças, não raro, são recebidas a tiros. Em pesquisas realizadas ao longo da década, fazendeiros e peões afirmaram que o número de felinos teria aumentado. No embalo dessa impressão popular (e com a revolta aos ataques dos predadores a animais domésticos), jornais locais sugeriram que os animais fossem caçados.
“O suposto aumento populacional não tem comprovação científica”, ressalta Sandra Cavalcanti, que coordenou estudos com onças-pintadas do Pantanal para o Instituto Pró-Carnívoros. “Naquele bioma, as grandes propriedades têm sido divididas entre membros da mesma família. Áreas antes remotas, onde não era possível chegar de carro, estão sendo mais exploradas. Hoje, porém, há mais contato do homem com estes animais. Isso pode explicar a crença de que existem mais felinos por ali.”
Não há estimativas sobre a quantidade de onças-pintadas em todo o Pantanal. Na área de estudos de Sandra, há, em média, seis delas a cada 100 quilômetros quadrados. Além de monitorá-las, a pesquisadora lidava com julgamentos praticamente imutáveis sobre os felinos.
“Uma questão fortemente arraigada na cultura pantaneira é dar status para quem caça onças”, lamenta. “E ainda temos de nos preocupar com a caça comercial e a esportiva, claramente proibidas e feitas às escondidas.”
A matança clandestina de onças-pintadas atrai até estrangeiros. No início do mês, o Ibama e a Polícia Federal desmantelaram uma quadrilha que organizava safáris clandestinos no Pantanal. O abate a um indivíduo da espécie custava até US$ 1.500. O número de animais mortos pelo grupo e seus clientes ainda é desconhecido.
Mata Atlântica é campo minado para o felino
A Mata Atlântica não traz qualquer expectativa para os felinos que ainda a habitam. Este é o mais isolado dos grandes biomas e o que sofre maior pressão dos centros urbanos. A perda de habitat é tamanha que não há mais de 170 onças-pintadas adultas em toda a Mata Atlântica.
“Se não promovermos conexões dos locais onde há mais onças para aqueles em que sobraram poucas, há grande chance de acelerarmos o desaparecimento da espécie”, alerta Rogério Cunha de Paula, do Cenap. “A Mata Atlântica está isolada, por isso sua situação é bem pior do que a observada nos outros biomas.”
A ocupação humana, as queimadas e algumas atividades econômicas produziram efeitos irreversíveis na Mata Atlântica. Apenas 20,4% deste bioma seriam adequados hoje para servir de habitat a uma onça-pintada. É um índice bem menor do que o registrado na Amazônia (84,9%) ou no Cerrado (40,7%), por exemplo.
Uma das regiões mais emblemáticas do bioma é o Alto Paraná, onde a população de felinos caiu 90% em 15 anos. As várzeas do Rio Paraná, habitat mais propício para as onças-pintadas por lá, estão dando lugar a usinas hidrelétricas. Já são 26 represas, com reservatórios de mais de 100 quilômetros quadrados cada.
O Cenap, junto à ONG americana Panthera e ao Instituto Pró-Carnívoros, desenvolveu um software para calcular a longevidade das diversas populações de onças-pintadas do Brasil. Para estimar as chances de sobrevivência da onça, considerou fatores como o número de filhotes, a quantidade de animais caçados e o índice de atropelamentos.
O estudo qualificou como urgentes as áreas que, se não receberem operações substanciais, podem perder suas onças em cinco anos. Uma delas vai da Costa Verde fluminense ao norte de Santa Catarina.
“Essas simulações facilitam a tomada de algumas medidas”, explica Ricardo Boulhosa, coordenador-executivo do Instituto Pró-Carnívoros. “Se constatarmos, por exemplo, que atropelamentos são frequentes, podemos reivindicar maior sinalização nas estradas.”
Outra alternativa, segundo Rogério, seria a construção de passagens subterrâneas sob rodovias, solução já adotada nos EUA.
“É uma forma de interferirmos na vegetação natural e em estruturas já existentes sem trazer risco aos animais”, ressalta. “Precisamos lembrar que as medidas discutidas têm a vantagem de não proteger unicamente as onças-pintadas, e sim todo o meio em que ela está inserida.”
Fonte: O Globo