Este mês de fevereiro completam-se dois anos que me tornei ativista pelos direitos animais.
Desde que aderi ao movimento tenho insistido na necessidade de os ativistas veganos abandonarem o espontaneísmo e adotarem uma postura mais responsável do ponto de vista profissional e intelectual. Não é porque o ativismo é voluntário que ele pode ser feito com desleixo. Não é porque você tem convicção das suas idéias que não tem o dever de desenvolvê-las filosoficamente para credenciar-se para o debate. Isto é, se queremos realmente que nossas ações em prol dos direitos animais tenham impacto na sociedade, seja na escala micro, das relações pessoais, seja na escala macro, de interferir nos processos de exploração animal.
A questão é recorrente. Vejo isso se repetir há dois anos. Quando suponho que uma fase do amadurecimento do movimento foi superada, ela volta como em ciclos. Lógico que declaro isso tendo como referência, em particular, o ativismo no Rio de Janeiro. O movimento progrediu bastante nos últimos dois anos. Há centenas de pessoas competentes e dedicadas que fazem a diferença para esse progresso. Não obstante, elas se defrontam repetidamente contra um muro de preconceitos, equívocos, mal-entendidos que puxam o movimento para trás. E não estou falando dos onívoros.
A “ideologia” do onivorismo é uma referência constante nos meus textos, pois meus objetivos primários são despertar a reflexão crítica dos onívoros sobre as fragilidades éticas e lógicas dos seus argumentos, e também fornecer subsídios aos vegetarianos para se credenciarem ao debate, pois duas coisas são fatais na luta pelos direitos animais: um vegano sem argumentos e sem saúde.
Entretanto cada vez mais me convenço de que está faltando aos vegetarianos e veganos reflexão crítica sobre si mesmos. Não que eu não soubesse disso há dois anos, mas me surpreendo com esse eterno retorno de mitos e equívocos aos quais as pessoas retornam, prejudicando o movimento quando pensam estar impulsionando-o.
Alguns desses exemplos:
– A defesa do ovolactovegetarianismo como uma “etapa” ou mesmo o “mal menor” em relação ao onivorismo.
– Na mesma linha, a defesa do bem-estarismo como um “mal menor” em relação à exploração sem regulamentação.
– Consequência desta segunda, a ideia de que bem-estaristas e abolicionistas são aliados em prol dos animais e podem e devem dialogar e cooperar – em pé de igualdade. Na verdade, os bem-estaristas são aliados dos exploradores, fato que Gary Francione já demonstrou repetidamente em textos traduzidos para o português – mas que ativistas que se consideram autossuficientes, acham o estudo desnecessário e acreditam que basta a força da convicção para defender uma ideia não leram.
– A lógica do “vale-tudo” em que, para convencer alguém a se tornar vegetariano, deve-se usar não o argumento mais correto, e sim o mais convincente – sem levar em consideração o dano que argumentos falhos podem provocar: desmoralizar o ativista e, logo, a causa como um todo; induzir o interlocutor a atitudes que possam prejudicar a sua própria saúde, no caso de informações nutricionais equivocadas; o abandono do vegetarianismo/veganismo a partir da constatação de que as premissas que levaram alguém a adotá-lo – reforçadas por ativistas que supostamente sabem do que falam – são falsas. Abordei eu mesmo esse tema no meu texto sobre os discursos transversais.
Cada um desses pontos já foi rebatido à exaustão por ativistas sérios, dedicados e que sabem do que estão falando. Além dos textos de Francione, recomendo fortemente os textos da revista eletrônica Pensata (www.pensataanimal.net), particularmente o de Luciano Cunha, que trata dos equívocos do movimento em defesa dos animais. O texto tem sete partes. O link para a primeira:
http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=175:esta-tao-na-cara-i&catid=41:lucianocunha&Itemid=1
Mas a ignorância militante (ou displicência irresponsável) é muito difícil de ser superada. Já ouvi vários tipos de bobagens e irresponsabilidades de veganos. Um tipo que me espanta particularmente é a questão da vitamina B12, devido à sua seriedade. Incapazes – por pura falta de estudo sobre a questão – de responder ao falso argumento de que a necessidade de suplementação desqualifica o veganismo como opção alimentar saudável e natural, alguns veganos preferem dar dicas sem comprovação científica como comer algas ou tomar água de chuva (e se houver seca?) e de cachoeira (claro, tem uma cachoeira a menos de 1 km de todos os domicílios), negar a necessidade de suplementação ou apelar para o “conspiracionismo” (é tudo mentira da indústria farmacêutica).
Pode-se mesmo questionar o real grau de comprometimento que ativistas que não se dispõem a aprimorar seus conhecimentos têm com a causa. Nesses dois anos, lamentavelmente, pude constatar que, mesmo num meio supostamente governado pelos princípios e pela ética, há pessoas que promovem intrigas, boicotam e prejudicam colegas e se envolvem no ativismo tendo em vista tão somente a promoção pessoal.
Nesse ponto, quero fazer duas ressalvas. Primeiro: o reconhecimento que muitos ativistas obtêm por meio do ativismo sério e dedicado, que pode trazer benefícios materiais – mas nem sempre é o caso, pois o ativismo exige muitos sacrifícios – é absolutamente legítimo. Tampouco é correto criticar profissionais que colocam seu ofício a serviço da causa, extraindo daí também o seu sustento. Ou será que honesto é apenas o onívoro que decide investir em produtos veganos por uma esperteza mercadológica? O que estou criticando são pessoas que prejudicam a causa em função de seus interesses pessoais, promovendo brigas, criando competição, concentrando poder e responsabilidades, mesmo quando lhes falta competência para tanto. Segundo: não estou defendendo, com isso, que todos os ativistas têm de ser amigos, aliados e agir em conjunto. Aliás, essa mentalidade aliancista é extremamente prejudicial ao movimento, e é especialmente contra ela que me bato constantemente aqui no Rio de Janeiro. Por isso vou falar um pouco mais detidamente sobre ela.
O primeiro efeito da mentalidade aliancista é tentar juntar pessoas com matrizes de pensamento distintos, sob a premissa – nem sempre verdadeira – de que têm um objetivo comum. Aqui no Rio de Janeiro isso tem sido traduzido na estratégia de juntar bem-estaristas, abolicionistas, libertários e espiritualistas em favor da “causa comum” do vegetarianismo.
Consequências? Um discurso incoerente que confunde mais do que esclarece o público. Enorme perda de energia em reuniões, debates, discussões onde matrizes de pensamento que, na verdade, são bastante distintos, jamais vão se entender. A perda de tempo e energia resultantes apenas atrasam nossos empreendimentos e reduzem sua eficiência, prejudicando a própria difusão da causa e, portanto e principalmente, prejudicando os animais. Este é um paradoxo fundamental: o discurso aliancista legitima-se alegando que toda ajuda é bem-vinda e necessária para ajudar os animais, mas o efeito que ele provoca é o oposto do propósito que defende.
Há tempos tenho defendido a estratégia inversa: em vez de um aliancismo que faz tábula rasa das diferenças, declarando-as como empecilhos – e assim apagando as individualidades e identidades diversas – temos que adotar a estratégia de grupos pequenos, agregados a partir de afinidades filosóficas e ideológicas, que cooperem NA MEDIDA DAS POSSIBILIDADES, quando suas opiniões convergirem. Desnecessário dizer que por definição essa minha proposta exclui a possibilidade de alianças com bem-estaristas, pois nós devemos estabelecer o veganismo e abolicionismo como PONTOS INEGOCIÁVEIS. Se alguém não concordar com estas premissas, não devemos nos aliar com eles. Alguns dizem que esta é uma atitude segregadora. Este é um argumento ignorante. A coerência deve ser um princípio basilar de nosso movimento, e ela não supõe o isolamento, mas sim o diálogo. Dialogar, porém, é diferente de cooperar. A cooperação só pode existir quando existem metas comuns. O problema, portanto, e isso é o mais preocupante, é que muitos dos que se dizem defensores dos direitos animais AINDA NÃO VÊM O VEGANISMO E O ABOLICIONISMO como metas fundamentais do movimento.
Um exemplo pode clarificar a minha argumentação: durante a ditadura militar, comunistas e opositores liberais aliaram-se, pois sua meta era restabelecer o regime democrático. Naturalmente, com o fim da ditadura, essa aliança se dilui, pois as metas se tornaram distintas: os liberais defendem o regime capitalista, os comunistas querem derrubá-lo. Mal comparando, os defensores dos direitos animais querem criar alianças entre liberais e comunistas, e consequentemente despendem tempo e energia preciosos nesse trabalho improfícuo.
O I Encontro Nacional de Direitos Animais, realizado em maio de 2008, é um bom exemplo da estratégia que tenho defendido: foi concebido como um evento abolicionista, e conseguiu atrair participantes onívoros, ovolactovegetarianos, bem-estaristas, a partir da receptividade e do diálogo, mas sem abrir mão de sua coerência e seus princípios. E foi desse modo que naquele evento muitas pessoas foram atraídas para o veganismo e o abolicionismo. Isso não teria acontecido se uma atitude falsamente democrática tivesse posto pontos de vista distintos em pé de igualdade.
Infelizmente não consegui muitos adeptos para minhas concepções estratégicas na cidade do Rio de Janeiro, e tenho convicção de que este é um dos fatores pelo qual o ativismo nesta cidade está aquém do seu potencial, uma opinião que parece ser comum a todos os ativistas, independentemente das divergências que possam ter em outras questões.
Nós, veganos, temos que começar dando passos pequenos, realistas. O crescimento, a projeção, as alianças serão o resultado natural de um trabalho feito com competência, dedicação e coerência. Nesse ponto gostaria que minha experiência servisse de exemplo: a melhor forma de fazer com que o conjunto e o individual caminhem juntos é fomentar o talento natural dos ativistas, em vez de deliberar tarefas a esmo. Cada militante precisa encontrar seu lugar específico; desse modo, estará fazendo algo prazeroso para si, consequentemente produzindo um trabalho mais eficiente e contribuindo para a causa como um todo.
De dois anos para cá eu mesmo tenho me esforçado enormemente para crescer como ativista, e percebo que ao fazê-lo, além do crescimento individual, contribuo cada vez mais para a divulgação do veganismo e do abolicionismo sobre bases sólidas. A pesquisa, a reciclagem e atualização das ideias são uma necessidade constante que os ativistas que levam suas próprias convicções a sério devem observar.
A primeira e mais fundamental tarefa do movimento pelos direitos animais, felizmente, tem progredido rapidamente: dar clareza aos nossos propósitos. Isso implica a adoção do veganismo e abolicionismo como fundamentos prático e filosófico, respectivamente. A segunda tarefa, a partir daí, é ter clareza de que nem todos aceitarão essas premissas, e termos maturidade para seguirmos adiante sem ceder às ilusões de grandes alianças entre formas de pensamento distintas ou puramente inconciliáveis. Em paralelo, cabe-nos desenvolver estratégias eficientes para levar o veganismo abolicionista ao conjunto das nossas comunidades. Não estratégias que escondam nossas ideias ou enganem o público – como são os discursos transversais e aliancistas. O que nós precisamos é de uma estratégia que seja eficiente e coerente com os nossos propósitos. E este último é o ponto em que milhares de movimentos políticos e sociais – como o nosso – falharam no passado. Ao comprometer suas ideias e princípios, sua coerência, em nome do crescimento, tornaram-se uma sombra do que outrora foram e sacrificaram o fim – a emancipação – em favor do meio – o poder.
Devemos aprender com estas lições do passado: não sucumbir à sedução do poder, nem à ilusão de que o poder acelera o árduo e longo processo da emancipação social. Ao contrário, seu canto da sereia afoga os ideais de libertação sob o oceano de dominação do qual é constituído.