“Para que eu não cometa o erro de desconsiderar qualquer criatura, faço questão de mencionar os animais domésticos, as feras e os pássaros”
Shmuel Yosef Agnon é considerado um dos nomes mais importantes da literatura hebraica moderna. Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1966, o escritor israelense se destacou pela produção de contos e romances que abordam os conflitos espirituais da humanidade e o choque entre tradição e modernidade. Também recorrente em suas obras é o vegetarianismo, definido pelo próprio autor como uma filosofia de vida que preza pelo respeito aos animais.
“Para que eu não cometa o erro de desconsiderar qualquer criatura, faço questão de mencionar os animais domésticos, as feras, e os pássaros. Jó nos disse há muito tempo: ‘Quem nos ensina mais do que os animais da terra, e nos faz mais sábios que as aves do céu?”, discursou Agnon na cerimônia de premiação do Nobel de Literatura de 1966.
Shmuel Yosef dizia que os animais são a maior fonte de aprendizado da humanidade. Uma das lições foi materializada pelo escritor em “O Conto da Cabra”, publicado originalmente em 1925. Na história, que para os ocidentais pode trazer lembranças da parábola “O Lenhador e a Raposa”, um senhor fica maravilhado ao experimentar o peculiar leite de uma cabra. Segundo ele, é tão maravilhoso que tem o sabor do céu, do paraíso.
Ao perceber que o animal sempre desaparece por período inexato, o homem conversa com o filho, crente de que o gosto do leite tem relação com as viagens da cabra. O jovem então decide segui-la. O percurso que parece durar horas, mas pode significar até dois dias, termina em uma caverna, uma passagem para um paraíso inimaginável chamado Terra de Israel.
Extasiado, e ciente de que a véspera do sabat anteciparia a escuridão, ele se vê incapaz de retornar para casa. Preocupado, prende um bilhete na orelha da cabra e pede que ela a entregue a seu pai. Quando vê o animal chegando sozinho, o homem entra em desespero e pragueja a cabra, a quem responsabiliza pelo sumiço do filho. Movido por surto momentâneo, a entrega a um açougueiro. Depois que o animal é assassinado, o bilhete cai da orelha da cabra.
“Ai do homem que rouba de si mesmo a sua própria fortuna, e ai do homem que reivindica o bem com o mal”, gritou o velho arrependido, batendo as mãos na própria cabeça. O luto durou dias. O homem se debruçou choroso sobre o animal e se recusou a ser consolado. Na história, o leite é também uma metáfora dos caminhos e dos descaminhos do homem.
Um autor de gênio inquestionável, Agnon é apontado como um dos maiores contadores de histórias do século 20. Está entre os autores de língua hebraica mais elogiados e influentes da literatura. Sua escrita chama atenção pela forma como ele aborda os conflitos da humanidade e o resgate da tradição. Combinando realidade e surrealismo, Shmuel Josef sempre tratou com muita personalidade de questões filosóficas e psicológicas que até hoje transparecem atemporais.
A perda da inocência no mundo moderno, a turbulência espiritual vivenciada por quem se viu obrigado a deixar a própria casa, a pátria e, em alguns casos, até a fé, serviram de inspiração para o escritor judeu. Exemplo disso é a obra “Um Convidado para a Noite”, publicada em 1938. Autobiográfica, a história apresenta um narrador anônimo que retorna à Galícia depois de muitos anos, reencontrando sua cidade natal em estado de desolação. Para escrevê-la, Agnon se inspirou em uma visita que fez a Buczacz, onde nasceu, lugar que ele chamava de “a cidade dos mortos”.
Além de colocar em discussão o velho e o novo mundo que surgia, suas histórias sempre foram ternas, dotadas de um requinte onírico que leva o leitor a questionar se suas narrativas são reais ou fantasiosas. Em “Hakhnasat Kallah,“O Dossel Nupcial”, sua obra mais famosa, reconhecida como uma das pedras fundamentais da literatura hebraica moderna, Shmuel Agnon protesta contra o hábito judaico de servir carne no sabat. Faz isso com sutileza.
“Ele recebeu o sabat com doce canção e cantou melodiosamente sua santificação com vinho de passas. A mesa estava bem distribuída, com todos os tipos de frutas, feijões, matérias verdes e boas tortas…mas de carne e peixe não havia qualquer sinal”, escreveu na página 222.
Para o escritor israelense, o silêncio em face da injustiça equivale à cumplicidade. Sua defesa do vegetarianismo significava reprovar os maus-tratos contra os animais. Por isso, ele usava a sua literatura como forma de ampliar a percepção humana em relação à sensibilidade animal e às questões éticas que permeiam o direito à vida, independente de espécie.
Agnon publicou seu primeiro conto aos 18 anos
Shmuel Yosef Agnon nasceu em Buczacz, então Império Austro-Húngaro (atual Ucrânia), em 17 de julho de 1888. Criado em uma família bem diversificada, que incluía comerciantes poloneses judeus, rabinos e acadêmicos, Agnon não chegou a ingressar em uma escola. Recebeu educação de seu pai, que o ensinou o aggadah, a literatura rabínica, e de sua mãe, que o introduziu na literatura alemã.
Aos oito anos, começou a escrever em iídiche e hebraico. Entre os 15 e os 18 anos, produziu seus primeiros poemas e histórias. Na fase adulta, ao longo de três anos, e com um ritmo de produção mais intenso, escreveu 70 peças em hebraico e iídiche. Nesse período, deixou Buczacz e se mudou para Yafo, atual Jaffa, em Israel, onde adotou um estilo de vida secular.
O seu primeiro conto, intitulado “Agunot”, que significa “Esposas Abandonadas”, foi publicado na Palestina em 1908, um ano depois que adotou o sobrenome Agnon. Em 1913, o escritor emigrou para a Alemanha, onde viveu por 11 anos. Seu estilo agradou primeiro aos mais jovens, que viram qualidade na sua maneira de combinar tradição e modernidade.
A repercussão de seus trabalhos atraiu a atenção do magnata Salman Schocken, que se tornou admirador de Agnon e decidiu patrociná-lo. Sem se preocupar com dinheiro, Shmuel Yosef viveu muito bem logo nos primeiros anos de sua carreira. No entanto, quando um incêndio destruiu sua casa, ele interpretou aquilo como um sinal e tomou a decisão de retornar a Israel, adotando Jerusalém como lar. Em 1929, sua casa foi saqueada durante uma animosidade entre judeus e árabes.
Em 1932, Agnon conquistou prestígio internacional após o lançamento de “O Dossel Nupcial”. Mais tarde, obteve ainda mais reconhecimento quando lançou a antologia, “Days of Awe”, “Dias de Temor”, baseada em histórias de costumes judaicos. O escritor também publicou livros baseados em contos populares inspirados na cultura rabínica, além de contos inspirados na filosofia e nas lendas hassídicas. Vítima de ataque cardíaco, Shmuel Yosef Agnon faleceu em 17 de fevereiro de 1970 em Rehovot, Israel.
Saiba Mais
Além do Prêmio Nobel de Literatura, Shmuel Yosef Agnon recebeu o Prêmio Israel de Literatura em 1954 e em 1958.
Referências
Agnon, Shmuel Yosef. The Bridal Canopy (1931). The Toby Press; Reissue Edition (2015).
Agnon, Shmuel Yosef. The Fable of the Goat Whose Milk Taste of Eden (Tale of the Goat). Disponível em http://jhom.com/topics/goats/fable.htm
Agnon, Shmuel Yosef. A Guest for the Night (1938). The Toby Press (2015).
Gross, Aaron; Schwartz, Richard; Kalechofsky, Roberta; Levine, Jay. A Case for Jewish Vegetarianism. Peta Publisher (2012).
Fisch, Harold. S.Y. Agnon. Ungar Pub Co (1975).
Gershon Shaked, Shmuel Yosef Agnon: A Revolutionary Traditionalist. New York University Press (1989).