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Advogados para animais: análise comparativa entre os modelos suíço e brasileiro

22 de junho de 2010
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No dia 7 de março a população suíça foi convocada, por meio de “iniciativa popular”, a decidir se cada um de seus 26 cantões [os cantões são como estados ou províncias] deverão constituir oficialmente um advogado encarregado de representar, em juízo, os interesses de animais vítimas de abusos ou maus-tratos.

O resultado, contrariando as anteriores pesquisas de opinião, foi desfavorável à implementação do projeto na proporção de 70,5 % de votos contrários à proposta dos “advogados animalistas” [população suíça total é de cerca de 8 milhões de habitantes].

A votação foi resultado de uma campanha da entidade “Swiss Animal Protection – SAP” [http://www.animal-protection.net/furtrade/chinafur.html] por meio da qual a referida entidade não governamental obteve cerca de 144 mil assinaturas de cidadãos suíços apoiando a iniciativa. Na Suíça, à semelhança do Brasil, há basicamente dois sistemas de participação democrática direta, concretizando a soberania popular: o referendo e a iniciativa popular. O referendo possui caráter obstativo e destina-se precipuamente a objetar, por meio do exercício do poder de veto, as leis ordinárias promulgadas pelo Parlamento [para tanto necessita-se de 50 mil assinaturas]. A iniciativa popular, ao contrário, tem caráter comissivo, provocando o Parlamento a emendar a Constituição ou editar normas específicas neste ou naquele sentido [requisito de 100 mil assinaturas]. Analogamente, no Brasil, de acordo com o art. 1º da Lei n.º 9.709/98, que regulamentou o art. 14, I, II e III, da Constituição Federal de 1988, a soberania popular é exercida por sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, nos termos desta Lei e das normas constitucionais pertinentes, mediante: plebiscito, referendo e iniciativa popular”. A distinção, no nosso modelo, entre o plebiscito e o referendo situa-se, basicamente, no momento da consulta popular: no plebiscito a consulta é prévia à edição do ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido à apreciação [como no caso em 1993 da escolha entre a forma e sistema de governo] e, no referendo, a consulta é feita a posteriori, ou seja, o povo ratifica ou rejeita os atos editados [exemplo ocorrido foi o do referendo, em 2005, sobre a manutenção ou rejeição da proibição de comercialização de armas de fogo e munição]. A outra forma de participação popular se dá por meio da iniciativa popular que consiste, no âmbito federal, na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por no mínimo 1% do eleitorado nacional, distribuído por, pelo menos, cinco Estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles [v. art. 61, § 2º, da Constituição Federal de 1988].

Curioso notar que, mesmo com a constatação da derrota, no caso suíço, este movimento de alargamento da proteção dos interesses dos animais já ocorre há algum tempo. De acordo com o art. 2º, item III, do “Animal Welfare Act” de 1981, daquele país, reeditado em 2008 com modificações, apesar de aos animais não se garantir direitos subjetivos propriamente ditos, reconhece-se que são seres sencientes e, como tais, possuem um interesse específico de se verem livres de dor e de sofrimento físico e psíquico. Em 1989, o Poder Judiciário Suíço, por meio de sua Corte Federal, reconheceu os animais como “seres vivos e sencientes, criaturas semelhantes [fellow creatures] que merecem o mais amplo respeito e estima do homem, obrigações morais que decorrem justamente da posição de centralidade da intelectualidade humana […]” [Federal Court: BGE 115, IV, 254]. A corte utilizou-se do conceito de fellow creature, elaborado por Fritz Blanke em 1959, que, por sua vez, trilhou a mesma linha conceitual de Karl Bath, teólogo, que, em 1945, afirmava que os animais possuem valoração inerente e a sua própria dignidade como seres viventes.

Esta importante e visceral noção de dignidade intrínseca do animal foi incluída na constituição do cantão da Argóvia [Aargau] em 1980. Os debates acerca da proteção animal contra os experimentos relacionados à biotecnologia [experimentação genética e reprodutiva] nos anos 1980 conduziram à consolidação de uma demanda de inclusão do princípio da “dignidade animal” na própria Constituição Federal, o que veio efetivamente a ocorrer em 17 de maio de 1992 por meio dos arts. 24, § 3º e 120, § 2º, que estabelecem que “a Confederação prescreve disposições sobre a manipulação com material embrionário e genético de animais, plantas e outros organismos. Para isso, leva em conta o princípio da dignidade existencial da criatura, assim como a segurança do homem, dos animais e do meio ambiente e protege a variedade genética das espécies animais e vegetais”.

Interessante notar que o princípio da “dignidade existencial da criatura” ou “dignidade da criatura” abrange até mesmo o reino vegetal como titular de valoração inerente. Curioso também verificar que o próprio Preâmbulo da Constituição Suíça afirma expressamente o princípio da responsabilidade para com a vida, em sentido amplo, ao estatuir que: “em nome de Deus, que o povo suíço, e dos cantões, cientes de sua responsabilidade para com a criação […]”.

Na justificativa da emenda constitucional do supramencionado art. 120, o Conselho Nacional afirmou que com tal mudança “queremos demonstrar que o homem integra a criação e é uma criatura ele próprio, não podendo agir de maneira irresponsável, devendo respeitar a dignidade da criação como um todo”.

Apesar deste inegável avanço legislativo, constatava-se uma vulnerabilidade prática no âmbito da legislação suíça no que se refere à efetiva proteção dos interesses dos animais. Isto porque a sociedade civil organizada, por meio das entidades de proteção dos animais, não possuía legitimidade ativa para desafiar judicialmente atos eventualmente ilegais das autoridades públicas ou mesmo perseguir a recomposição e sanção dos danos causados aos animais. Além disso, os advogados públicos – como que promotores de justiça – não davam a devida importância ao assunto. Esta deficiência estrutural não começou a ser suprida com a criação, pelo cantão de Zurique, em 1991, de um escritório de advocacia ao qual seriam submetidas as consultas e demandas de representação judicial em casos de abusos ou maus-tratos cometidos contra animais.

A fundamentação legal para o advogado encarregado desta atribuição consta do § 17 da legislação de bem-estar animal do Cantão de Zurique, de 1991, a saber: “em processos criminais que envolvam a violação da legislação de proteção dos animais, a Administração Pública indicará um advogado referendado pelo governo regional do Cantão, para salvaguardar os interesses das vítimas de abuso”. Neste sentido, o advogado possui poderes para participar diretamente das investigações policiais, requerer cópia de informações públicas, participar ativamente do interrogatório dos suspeitos, bem como solicitar apoio dos Departamentos de Medicina Veterinária mantidos pelo governo e atuar judicialmente representando os interesses dos animais, atuando em conjunto e, independentemente dos promotores de justiça.

O status legal deste advogado, bem como o seu regime de trabalho, é um misto de profissional liberal com um servidor público. Antoine F. Goetschel, o advogado indicado para o escritório de Zurique, afirma que atua em cerca de 200 casos ao ano, sendo remunerado pelos cofres públicos a 185 dólares por hora de trabalho, o que, para os padrões europeus, segundo Goetschel, é montante abaixo da média da hora trabalhada dos advogados, que se situa na faixa de 350 dólares/hora. Os salários são pagos diretamente pelo Cantão.

Mesmo com a desaprovação da iniciativa popular, a previsão é de que alguns dos Cantões onde a há maior demanda por este tipo de serviço, passem a indicar e estruturar um sistema similar ao vigente em Zurique, que, conforme mencionado, possui, um advogado destacado para a defesa de causas relacionadas aos animais.

No Brasil, apesar das evidentes diferenças sociais, culturais e, principalmente, econômicas, temos possibilidades que parecem ser ainda mais interessantes que as suíças. Isto porque, além da previsão constitucional da defesa dos animais constante do art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal de 1988, possuímos legislação infraconstitucional bastante avançada, ao menos sob o ponto de vista teórico. De fato, contamos, desde 1934, com a previsão legal [art. 3º do Dec. n.º 24.645/34] do Ministério Público como órgão titular da importante atribuição de substituto processual dos animais, que estão submetidos, portanto, a regime tutelar especial. As condutas abusivas, elevadas à categoria de crime pela Lei de Crimes Ambientais [Lei n.º 9.605/98] devem ser alvo de ações penais públicas promovidas pelo parquet com vistas a proteger, efetivamente, os interesses dos animais vitimados.

A esse respeito, em proposta que caminha no rumo da crescente necessidade de especialização, o que se constata com a efetiva criação de Varas especializadas para o julgamento de causas ambientais, bem como de delegacias também especializadas nesta matéria, cabe ressaltar a importante tese apresentada pelo Promotor de Justiça Laerte Fernando Levai no sentido da criação de Promotorias Especializadas na Tutela Animal, o que conferiria maior agilidade e acuidade no trato da matéria [tese apresentada e aprovada no 11º Congresso do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo, em São Roque, outubro de 2007, disponível no site www.sentiens.net].

Além desta titularidade específica do Ministério Público para as condutas que envolvam a apuração de crimes, temos também prevista a possibilidade da proteção dos animais e do meio ambiente no campo cível por meio da Ação Civil Pública, instrumento processual regulamentado pela Lei n.º 7.347/85. Esta espécie de ação confere ampla legitimidade para a promoção e defesa destes interesses, incluindo-se o próprio Ministério Público, a Defensoria Pública, os entes federativos, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as associações civis – ONG’s. O cidadão, individualmente considerado, também pode se valer da Ação Popular [Lei n.º 4.717/65] e de outros mecanismos processuais como os mandados de segurança, ações cautelares, dentre diversas outras possibilidades.

Toda essa variedade de formas de implementação da proteção dos interesses dos animais não impede, todavia, que a ideia suíça também possa ser cogitada, e eventualmente implementada, com adaptações à nossa realidade. Percebe-se facilmente que, a par da extrema boa vontade de alguns dedicados promotores de justiça, há uma demanda reprimida sobre o tema. É sempre importante mencionar, no entanto, que muitas de nossas mazelas envolvem a omissão do Estado na implementação de políticas públicas específicas e a evidente falta de educação ambiental de crianças, jovens e adultos. Ainda estamos atados, de certa forma, à infantil ideia do homem como centro das preocupações morais e jurídicas. Enquanto isto não se modificar, dificilmente conseguiremos sensibilizar e provocar, de forma consistente, uma atuação mais constante e eficiente das nossas autoridades. Um assunto a se pensar…

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