Para Marilena Chauí, em seu livro Introdução a Filosofia, admiração e espanto, aquilo que constitui a filosofia para Platão e Aristóteles, significam: tomarmos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros etc. e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos.
O hábito de comer animais, em outras eras, foi algo que garantiu a sobrevivência de nossa espécie – talvez, daí, este ato ser inquestionável em grande parte das culturas. Trata-se de uma prática cultural profundamente enraizada à qual acabamos por acreditar que não cabem questionamentos. Vejamos aqui um exemplo. Temos à mesa um leitão inteiro com a maçã na boca e isto não nos causa nem admiração e nem espanto. “Naturalmente” entendido e assimilado pela própria cultura, família, escola e mídia, para citar alguns dos poderosos referenciais que legitimam moralmente nossos atos.
Creio que não há espaço para questionamento, pois há uma antecipação das respostas. As crianças até que esboçam um estranhamento: “Por que estão pegando os ovos? não são da galinha?”, “Esse leite não é do bezerro?”, “Não quero comer! é a galinha” etc. Colocações que todos acham “bonitinhas” e engraçadinhas. Um riso, na verdade nervoso, pois sabemos que a forma direta como as crianças se expressam contém uma verdade que não desejamos enfrentar. Tanto é que Edgar Morin diz que o pensamento complexo está mais próximo das crianças do que dos adultos. Elas conseguem, melhor do que nós pensar de forma complexa (complexus: aquilo que é tecido junto).
Certo é que as crenças, hábitos e costumes, nos são repassados e não esboçamos nenhum sinal de resistência. Não nos é dada a opção de experimentar outros caminhos, exceto se alguma coisa sair do planejado. Aqueles que, em algum momento de suas vidas, começam a fazer perguntas, ensaiam algum tipo de desconfiança em relação à realidade posta são “desviantes”, pessoas que encontraram um atalho e conseguem sair do sistema. Por esta “rebeldia”, pagam um preço alto.
Além dos comentários depreciativos, sempre em tom de piada, o mercado/sistema faz questão de não lhes atender. Dificultam as coisas.
Esta experiência de não ingerir produtos de origem animal, que seja a título de experiência, demonstra o quanto estamos imersos no totalitarismo da indústria da carne. É banana frita passada no ovo, a mais simples salada com queijo ralado ou em cubinhos, abobrinha recheada com carne moída, farofa com carne, todos os caldos com torresmo etc… Isso vale da primeira à última refeição do dia, de forma que quase tudo que é facilmente disponível nas prateleiras dos supermercados, nas festas, nos restaurantes, hotéis ou em nossas mesas, depende da morte ou da escravidão de um animal. E nós estamos ali como os consumidores vorazes emitindo sinais para o mercado que queremos mais, mais e mais. Somos nós, na ponta do sistema que aceleramos as esteiras e ganchos onde se penduram bilhões de animais mortos por ano pela indústria. Precisamos mais do que nunca, da postura dos primeiros filósofos, da admiração e do espanto. Precisamos de um afastamento e também, de fazer perguntas.
Finalizo, parafraseando o educador Paulo Freire, um homem que fez muitas perguntas e, com seu jeito inquieto e inconformado, transformou o modo de pensar a educação popular. Ele dizia que o professor precisava se perguntar: “em favor de quem, em favor de que, em favor de qual sonho eu estou ensinando, e contra quem, contra o que, contra qual sonho eu estou ensinando”. Eu pegaria as mesmas perguntas e traria para o contexto da nossa alimentação: o meu modo de alimentar é a favor ou contra a libertação dos animais? De forma espantosa, aquilo que levo à boca diz, contra quem, contra o que, contra qual sonho estou sustentando.