Peixes, crustáceos, pássaros e mamíferos retornam ao Tâmisa,
150 anos depois que a Revolução Industrial poluiu o rio
A vida selvagem explode bem no coração econômico da Inglaterra. Célebre como cenário de batalhas militares, como via de comércio com a Europa continental e via de transmissão do cólera que dizimou milhares de londrinos no século 19, o rio Tâmisa passou de recipiente dos esgotos e efluentes da Revolução Industrial a um dos estuários metropolitanos mais limpos do mundo. E a resposta da natureza foi imediata: uma ressurreição da diversidade de peixes, crustáceos, insetos, pássaros e mamíferos que habitavam suas águas, praias e pântanos, agora toma conta de toda a bacia!
Segundo a Environment Agency (EA), a agência ambiental da Inglaterra e País de Gales, já são 45 espécies de peixe circulando regularmente no rio, considerado biologicamente morto em 1957 pelo Museu de História Natural de Londres. O total sobe para 122, se incluídas as espécies que visitam o rio irregularmente. A diversidade vem aumentando desde os anos 80, quando a qualidade da água melhorou radicalmente graças a um intenso programa de saneamento e despoluição.
Uma amostra desse renascer da vida selvagem no Tâmisa apareceu nas redes de pesca, no último domingo de julho de 2010. Os biólogos da agência ambiental e voluntários da Thames21, uma entidade que desenvolve projetos educativos e de limpeza do rio, ministraram uma aula pública para dezenas de voluntários, num dia típico do verão londrino, de muito calor e céu nublado. Os visitantes procuravam vestígios arqueológicos na praia formada pela maré baixa junto à Torre de Londres, antiga residência da realeza inglesa, e logo se aglomeraram para ver o resultado da coleta. Em alguns minutos, a rede jogada no rio voltou com exemplares jovens: uma perca-do-mar (Dicentrarchus labrax); um rútilo (Rutilus rutilus) e um eperlano (Osmerus eperlanus), ambos parentes da carpa, além de uma espécie de camarão (Palaemon longirostris), semelhante ao pitu brasileiro.
Algumas pessoas ficaram frustradas, pois esperavam um amontoado mais considerável de peixes, de tamanho mais atraente do que os quatro diminutos espécimes. “Mas, justamente por serem recém-nascidos, esses peixes funcionam como excelentes indicadores de que a qualidade da água do Tâmisa de fato melhorou substancialmente”, explicou Tom Cousins, biólogo da EA. O fato de serem jovens indica que nasceram no rio, sinal de água saudável e alimento suficiente (plânctons e invertebrados). O Tâmisa é um dos mais importantes e estratégicos berçários de pescado na Europa, e volta a contribuir para a conservação dos estoques do Mar do Norte.
Muitos londrinos ainda não acreditam que seu lendário rio é hoje mais limpo do que 150 anos atrás e abriga uma diversa e volumosa fauna aquática. “Ainda vai levar um longo tempo para que a nova realidade do Tâmisa se transforme em percepção pública”, afirma Mark Lloyd, diretor da Thames21.
O retorno de antigos habitantes ou visitantes inclui tanto peixes – um tipo de linguado (Platichthys flesus), um tipo de savelha (Alosa fallax) e as espécies apanhadas na “aula” da agência ambiental – como mamíferos aquáticos há muito desaparecidos: a lontra européia (Lutra lutra), a rara foca-cinza (Halichoerus grypus), a foca-do-porto (Phoca vitulina), o golfinho-nariz-degarrafa (Tursiops truncatus), a baleiapiloto (Globicephala melaena) e a marsopa (Phocoena phocoena) e ainda uma espécie terrestre, o rato-docampo (Arvicola terrestris).
E há visitantes incomuns, vindos do mar: em junho, a mídia britânica noticiou euforicamente o aparecimento de um cavalo-marinho nas águas salgadas do estuário, a leste de Londres. Foi a primeira vez que a espécie apareceu no rio desde 1976! A par da melhora na qualidade da água, o aquecimento do rio pode ter atraído o animal.
Menos alardeada, a volta dos invertebrados também é estratégica para a recuperação ecológica da bacia do Tâmisa. Eles estão na base da cadeia alimentar e garantem o alimento de peixes e aves. Ao menos 350 espécies de invertebrados – insetos aquáticos, moluscos, crustáceos e vermes – já habitam o rio novamente. Eles se distribuem especialmente pelo Alto Tâmisa e zona marinha, onde ainda encontram hábitat e refúgio contra as fortes correntes. Com os peixes, camarões e vermes à disposição, as aves aos poucos recolocam o rio inglês em suas rotas de vôo. Já andam por ali uma espécie de pato, a tadorna- comum (Tadorna tadorna), um ostreiro (Haematopus ostralegus), um perna-vermelha (Tringa totanus) e um maçarico (Calidris alpina).
O complexo ecológico do Tâmisa, envolvendo seus afluentes, pântanos, lamaçais e praias, era um rico e diversificado ambiente para a fauna e a flora até o início do século 19. Porém, num efeito direto da Revolução Industrial, Londres urbanizou-se em ritmo acelerado, invadindo as margens do Tâmisa e poluindo suas águas com esgoto, efluentes e lixo.
Poucos londrinos possuíam fossa, e dezenas de milhares adoeceram e morreram de cólera ao beber a água contaminada do rio. A situação se agravava na mesma medida do crescimento populacional. Entre o início e o fim do século 19, a população saltou de 1 milhão para 4,5 milhões de habitantes. Tão contaminadas ficaram as águas do Tâmisa, que apenas as enguias resistiram. O registro de pesca do último salmão nativo é de 1833. A espécie só voltaria a ser vista nadando no rio em 1974, ou 141 anos mais tarde!
As primeiras providências para recuperação do rio, no entanto, só tiveram início quando o odor se tornou insuportável. Isso ocorreu em 1858, no evento conhecido como “The Great Stink” (O Grande Fedor). O transporte por barcos foi paralisado e as sessões do Parlamento, suspensas. O pretexto serviu para a construção de dois sistemas de esgoto, um ao norte e outro ao sul do Tâmisa, idealizados pelo engenheiro Joseph Bazalgette. A monumental obra de 2.092 km de tubulações começou a operar em 1865.
O problema do mau cheiro se resolveu, mas o projeto não despoluiu o rio, pois o esgoto não era tratado nas estações de Crossness e Beckton. Só permanecia ali, acumulado, à espera da maré baixa para ser despejado in ‘natura’ no Mar do Norte. Ocorre que o declive do Tâmisa é pequeno, suas águas são rasas e duas vezes por dia a maré sobe, com amplitudes de até 7 metros, afetando 111 km foz acima. Isso às vezes mantinha o esgoto flutuando no rio por um mês antes do despejo no mar, conta Peter Spillett, chefe de Meio Ambiente e Qualidade da Thames Water, a companhia responsável pelos serviços de água e esgoto na bacia do Tâmisa.
No início do século 20, o esgoto em Crossness e Beckton passou a receber tratamento químico, antes de ser despejado. Melhorou um pouco a qualidade da água, mas não foi suficiente para despoluir o rio. Em 1957, o Museu de História Natural de Londres classificou o Tâmisa como biologicamente morto. A essa altura, ninguém mais acreditava ser possível despoluir o rio e recuperá-lo para a vida.
Para a felicidade de peixes, crustáceos, pássaros e mamíferos, a adoção do tratamento biológico nas cinco estações de esgoto de Londres, entre 1964 e 1978, reverteu as perspectivas sombrias. Desde então, a qualidade da água tem melhorado substancialmente. A descarga de esgoto e efluentes industriais no rio declinou de mil toneladas ao dia, em 1950, para 180 toneladas, em 1990, segundo a Thames Water. O percentual de oxigênio dissolvido na água – que, na década de 50, baixou a zero junto à London Bridge (área central) – aumentou para 60% em 1990.
Segundo a Environment Agency, 95,4% da bacia do Tâmisa apresentava qualidade química boa ou regular em 2002. Resultado do aumento dos investimentos em tratamento de esgoto, após a privatização do serviço em 1989 – mais de 1,9 bilhão de dólares – e da edição de diretrizes mais rigorosas para os padrões de recursos hídricos pela União Européia.
“A qualidade da água no Tâmisa melhorou bastante desde 1960. No entanto, o rio está em recuperação. Ainda há muito trabalho a ser feito”, alerta Chris Dutton, biólogo da Environment Agency, ao mencionar o recente declínio na população de salmões, verificado no levantamento anual da agência. Entre 1982 e 1996, a EA apanhou uma média anual de 168 salmões no Tâmisa, número que despencou para a média de 26 ao ano de 1997 a 2003. Diminuição das chuvas, águas superaquecidas, piora na qualidade da água e pesca comercial excessiva são as principais hipóteses aventadas por Dutton para explicar o declínio. Segundo tal raciocínio, como tem chovido menos, os reservatórios diminuem e mais água doce é retirada do Alto Tâmisa. Com menos água doce fluindo para o estuário, a temperatura aumenta e o esgoto não se dilui facilmente, portanto, as condições são desfavoráveis para o salmão adulto durante o verão.
O problema se tornou tão sério no verão, que a Thames Water mantém 2 barcos para injetar oxigênio, quando o esgoto transborda para o rio. No último dia 3 de agosto, as tubulações romperam e 600 mil toneladas de esgotos fluíram para o rio, matando 10 mil peixes. Os barcos de oxigênio não foram suficientes para impedir o desastre. A solução poderia estar na autorização de um aumento nas contas de água para financiar a construção de um novo sistema de esgoto, com investimento de 3,8 bilhões de dólares.
Para Jonathan Ducker, coordenador do grupo de biodiversidade da Thames Estuary Partnership (TEP), o principal desafio atualmente refere-se às pressões pelo desenvolvimento urbano nas margens do Tâmisa. Existem muitas áreas de velhas indústrias, importantes para a recomposição de ecossistemas, como pântanos, costões, praias e lamaçais, hábitats fundamentais para atrair invertebrados, peixes e mamíferos. Contudo, tais áreas também são visadas pelo projeto Thames Gateway, cuja finalidade é construir milhares de casas ao longo da margem sul do rio, entre a zona central de Londres e o mar, já no condado de Kent. “Se novas edificações são erguidas, aumenta o volume de esgoto e o concreto impede que a água de chuva infiltre no solo”, assinala Ducker. Preocupada com isso, a Environment Agency implementa uma política de proteção e recuperação das margens do Tâmisa, licenciando projetos de edificações. A reforma de instalações industriais abandonadas para habitações, por exemplo, passou a incluir compensações como a abertura de praias, a fim de atrair animais.
A própria TEP foi criada para unir instituições – como a English Nature e o Porto de Londres -, mediar conflitos e costurar soluções ambientalmente sustentáveis para os ecossistemas da região do Tâmisa. A partir de 2004, graças a essa parceria, o Porto de Londres. passou a consultar um banco de dados gerenciado pela TEP antes de realizar dragagens no rio. “As solhas (Solea solea) reproduzem geralmente em março e abril, como várias outras espécies de peixe. Se a área de reprodução é dragada durante o período de desova, isso pode afetar a população da espécie”, justifica Ducker. Com o intercâmbio de informações agora é possível evitar a dragagem em certos períodos e locais mais sensíveis para a fauna.
A TEP discute ainda as usinas de energia eólica. Quatro usinas (“windfarms”) serão instaladas na boca do Tâmisa. “Estamos avaliando diferentes impactos possíveis, pois a estrutura física das usinas poderá obstruir a rota dos peixes em direção ao estuário, além de afetar as migrações dos pássaros”, argumenta Ducker. “Não estamos a favor, nem contra o projeto. Nosso papel é mediar a discussão para alcançar uma solução sustentável”.
Voluntários “limpam” afluentes
Por mais de um século, o rio Cray, um dos afluentes do Tâmisa, também permaneceu vazio de vida selvagem. Situado em Bexley, sudeste de Londres, o Cray corta uma área desfigurada pela Revolução Industrial. Nos séculos 18 e 19, fábricas têxteis e moinhos tomaram os melhores espaços. Numerosos desvios e represas foram construídos no rio e os efluentes das indústrias poluíram suas águas, afugentando pássaros, peixes e mamíferos.
“Meus pais contavam que, na década de 1920, se alguém caísse nas águas do rio, precisava correr para o hospital. Os médicos esvaziavam o estômago da pessoa para descontaminá-la”, conta Ken Preddy, 59 anos. Ele é membro do Cray Anglers Conservation Group, um grupo de voluntários ligado ao “Adote um Rio”, um dos projetos de maior sucesso da organização Thames21. Cerca de 5 mil voluntários realizam atividades de limpeza do Tâmisa, seus afluentes e canais espalhados pela capital britânica.
Preddy não é um “angler” (pescador esportivo de vara e anzol), como Ashe Hurst, 33 anos, coordenador do Cray Group. Sua paixão é a canoagem. Mas ambos possuem, em comum, a vontade de melhorar a qualidade das águas do rio Cray, de modo a assegurar um lazer limpo e seguro para todos os gostos. E quanto mais saudável estiver o Cray, melhor para o Tâmisa e melhor para a comunidade local.
Numa caminhada de quase 3 km ao longo do Cray, Hurst fez questão de levar sua tralha. Acabou fisgando um chub, peixe semelhante a um lambari, porém bem maior. O espécime pescado tinha uns 20 cm e aparentava um ano de idade. Também um bom sinal de que as águas do Cray voltaram à vida, embora ainda se vejam manchas de detergente e lixo, boiando em alguns trechos.
Com a participação de quase 300 voluntários, o Cray Group já realizou 23 mutirões de limpeza (“clean-ups”). E identificou 17 espécies de peixe vivendo no rio, entre as quais estão: peixinho-deengodo, góbio, escalo, escalo-do-sul, rútilo, escardínio, peixe-dourado, sargo, bagre, perca, carpa-fantasma e truta marrom. Ainda este ano, o grupo estará envolvido em um novo projeto da Thames21, o “River Keepers” (algo como Guardiões do Rio).
De volta à antiga casa
Conheça algumas das espécies de peixe que retornaram ao rio Tâmisa, circulando por seus trechos de água doce, salobra e salgada.
ÁGUA DOCE
Brema – Abramis brama Parente da carpa, é encontrado em cardumes nas águas lentas do alto estuário. Pode crescer até 75 cm e pesar 6 kg.
Escalo-do-sul – Leuciscus leuciscus É o peixe de água doce mais comum no estuário do Tâmisa, desovando nas proximidades de Wandsworth, oeste de Londres, em março e abril. Os adultos raramente pesam mais que 300 g.
Perca – Perca fluviatilis Costuma viver na parte superior do estuário, mas ocasionalmente pode ser encontrado na região de Dartford, no extremo-leste de Londres, após chuvas pesadas.
Rútilo – Rutilus rutilus Como a perca, também aparece no Baixo Tâmisa depois de fortes precipitações . Gera lmente alcança 25 cm de comprimento e pesa até 1 kg. Desova em maio ou no início de junho.
Híbrido de brema e rútilo.
Muitas espécies parentes da carpa, como o brema, geram híbridos quando os cardumes se misturam nas áreas de desova. São muito comuns no trecho do Tâmisa sob a influência das marés. Porém, é difícil identificá-los com certeza, isso demanda a avaliação de um especialista.
ÁGUA DOCE, SALOBRA E SALGADA
Perca-do-mar – Dicentrarchus labrax O Tâmisa é considerado atualmente um importante berçário da perca-do-mar, peixe costeiro e estuarino. Entre junho e outubro, os filhotes entram na zona de água salobra e muitas vezes nadam até as proximidades da área de água doce. Como gostam de água quente, eles são mais comuns na costa sul do Reino Unido.
Enguia-comum – Anguilla anguilla A enguia-comum difere de outros peixes migratórios, à medida em que ela deixa o rio para desovar no oceano Atlântico. Levada pela Corrente do Golfo, a jovem enguia chega ao estuário do Tâmisa em abril e maio para amadurecer rio acima. Volta ao mar no final do outono do Hemisfério Norte.
Linguado – Platichthys flesus É, provavelmente, o peixe mais abundante no verão londrino. Nasce ao sul do Mar do Norte, migra para o Alto Tâmisa em maio e junho e retorna ao Baixo Tâmisa no outono. O adulto mede cerca de 50 cm.
Salmão – Salmo salar A descoberta em 1974 de um salmão adulto nadando no Tâmisa, o primeiro em 140 anos, indicou que o rio poderia novamente se tornar um corredor para o peixe. O salmão desova em trechos mais altos do Tâmisa, onde os recém-nascidos vivem até os três anos de idade, antes de seguir para o mar como “smolts” (salmão juvenil).
Eperlano – Osmerus eperlanus Primo do salmão, este peixe tem um odor característico de pepino e boca e dentes grandes, que lhe conferem uma aparência “agressiva”. Em declínio na Europa, a população de eperlanos do Tâmisa pode ser a maior do Reino Unido. Por isso, o local de reprodução talvez venha a ser protegido como Área de Especial Interesse Científico (Site of Special Scientific Interest – SSSI).
Esgana-gata – Gasterosteus aculeatus Na fase reprodutiva, a coloração da garganta do macho fica de cor laranja ou vermelho brilhante. Raramente cresce mais que 6 cm. Vive principalmente na água doce, mas tolera a zona estuarina do Tâmisa.
Savelha – Alosa finta Greenwich, no sudeste de Londres, é a área histórica de reprodução da espécie, mas atualmente ainda não há evidência de que há desovas no local.
Para a Environment Agency, a volta da reprodução da savelha no Tâmisa é uma questão de tempo, a depender da melhoria na qualidade da água e de seus hábitats prediletos. Além de ser uma espécie prioritária na política de conservação da EA, o peixe recebeu proteção adicional na Diretriz de Hábitats da União Européia, editada em 1994. No verão de 2000, filhotes de 15 cm (2 anos de idade) foram capturados no rio.
ÁGUA SALOBRA E SALGADA
Tainha-de-lábio-grosso Mugil labrosus septentrionale É um peixe de até 50 cm, que migra rio adentro durante o verão. Alimenta-se fossando no fundo, de onde extrai pequenos pedaços de plantas e animais. Análises do conteúdo estomacal indicam a ingestão de mais de 85% de material não biodegradável. A tainha-delábio- fino (Mugil ramada) é bem parecida, porém mais comum no Tâmisa.
Solha – Solea solea O recente aumento nos estoques, detectado no sul do Mar do Norte, talvez seja efeito direto do retorno deste peixe ao Tâmisa. O rio já é considerado pelo governo britânico como um dos mais importantes e estratégicos berçários da espécie no Reino Unido.
PARA SABER MAIS:
Thames Estuary Partnership (TEP)
Fonte: EPTV