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Protetora relata rotina de quem mora e está acostumado com a vida nas ruas

16 de novembro de 2009
8 min. de leitura
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Josiele Souza
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O centro de Florianópolis (SC) amanheceu preguiçoso para quem mora nas ruas. O comércio abriu no horário de sempre, as pessoas surgiam, caminhavam pelas ruas com caras fechadas e com as cabeças baixas, cada uma com os pensamentos voltados para si. Mesmo assim tudo está mais devagar para quem observava. Talvez  fosse o tempo nublado ou o sono mal dormido de quem vive em locais onde todos pisam. Ainda assim as pessoas continuam a correria diária e isso faz com que elas nem reparem no que está em volta, esbarram em qualquer coisa e continuam a andar. O mundo dos que observam toda essa gente é diferente: está pacato e quieto como uma fria manhã de inverno. A individualidade absoluta de alguns humanos torna a vida mais inútil dos seres que vivem nas ruas procurando comida e um pouco de atenção. O desprezo da sociedade faz com que eles se tornem cada vez mais iguais a ela: egoístas e solitários.

Porém há uma dupla de amigos que sempre anda junto. Não é o junto que um não pode viver sem o outro, é apenas uma relação de companheirismo. Dividem o mesmo canto para dormir e se juntam nas noites mais geladas. Andam pelos mesmos locais, mas cada um buscando sempre a própria comida.

Em uma ocasião, eles caminhavam pelas ruas de Florianópolis em busca de algum alimento, andaram, desviavam de pessoas e quando menos se esperava, estava lá um deles parado para a hora do lanche. É impressionante o ar de superioridade e conhecimento que eles têm. A rua é o lar deles e não há obstáculo que os faça parar.

Preto e Marrom são os nomes desses cães que vivem nas ruas da Capital. Na verdade, cachorro abandonado não tem nome, mas é assim que preferiam que os chamassem. Não gostam muito de conversa e se esquivam de pessoas que ficam paradas só olhando para eles. Um deles confessa que existe receio que as pessoas possam bater ou maltratá-los, e por isso todo cuidado é pouco. Os amigos não recebem nenhuma bolsa do governo ou algum auxílio que os ajude a conseguir comida ou um local para dormir. Por isso, a dupla precisa lutar todos os dias para poder sobreviver sozinha.

O que mais impressiona é a forma que eles levam a situação. Não são animais que fogem da realidade, mas sim que a encaram de maneira natural. Certa vez, numa conversa com uma protetora dos animais, ela disse que os cães quando são abandonados têm a mesma sensação que uma criança abandonada de dois anos. Além disso, é fácil perceber as fases de um cachorro abandonado: inicialmente ele é um animal inseguro, com o rabo entre as pernas que espera o tutor. Depois ele vai aceitando a situação e começa a “se virar sozinho”. Vai atrás de comida, água e acaba se metendo em brigas por não respeitar o espaço dos outros cães. Passa por várias dificuldades até se adequar à vida nas ruas. Uma das características de um animal que vive nas ruas é conhecer a natureza humana e saber qual é o momento que ele pode ou não confiar. A maioria deles vive cinco anos. Entre doenças, brigas, fome e maus-tratos os cães conseguem, em poucos casos, viver intensamente a liberdade.

Um verdadeiro cãoEnquanto os amigos caminhavam, avistaram um cão da raça poodle andando de carro com o tutor na Rua Vidal Ramos. Eles param, sentem o cheiro daquele animal e continuam andando como se aquele cheiro não fosse de um cachorro. Talvez a forma humanizada do pequeno poodle não chamou a atenção dos amigos. O “cão do carro” estava com fita nas orelhas, pelos penteados, perfume doce e um ar de “sou um objeto do meu tutor e não me toque”. Certamente, essas características fizeram Preto e Marrom deduzir que aquele ser não pertencia a mesma espécie que eles.

 

Os dois companheiros não metem medo quando você os olha. São quietos, mas muito observadores. Analisam cada pessoa que se aproxima. Os gestos, os olhares, os movimentos. Mas fazem isso de forma tão rápida que você não percebe. É o instinto. Mesmo ressabiados com os humanos, eles não perdem uma chance de receber carinho ou quando alguém lhes oferecem algum alimento.

Preto é o mais baixo da dupla. Tem a pelagem curta, rabo longo e se diz mistura de pequinês com bassê. Não conheceu os pais e as lembranças são das ruas as quais mora hoje. Já Marrom é alto, esbelto e tem ar de superioridade nato, o rabo também é longo e o pelo é curto e muito brilhoso. Nunca se preocupou com a origem e, como Preto, só tem as lembranças de morador de rua. Mas em um assunto os dois desconversam: a idade. Para eles o que importa é a experiência, e isso, segundo Preto e Marrom, eles têm de sobra.

Menos cães nas ruasNos últimos anos a dupla notou que a população de cães nas ruas diminuiu.  Foram sumindo um a um e da turma que se criou junta, só restou os dois. Eles confessam que a situação antes era mais difícil. A comida era mais escassa e diariamente viam-se animais sendo machucados. Hoje, os dois conseguem alimento mais rápido e de vez em quando notam que pessoas observam a existência deles. Antes eram tantos cães que a presença de humanos por perto era quase impossível. A dupla acredita que seja por causa do rastro de sujeira que o grupo deixava por onde passava.

 

Marrom lembra que algum tempo atrás, algumas pessoas que usavam roupas parecidas vieram em uma Kombi branca e começaram a recolher os outros membros da turma. Essas pessoas foram as únicas que se aproximavam em grupos para conversar com eles, pegá-los no colo e colocá-los no automóvel. No primeiro momento, os cães ficaram assustados, mas como não era sempre que alguém aparecia para dar atenção e ainda tinham o semblante de preocupação, muitos foram com eles. Preto e Marrom fugiram, esconderam-se e ficaram só observando aquelas pessoas irem embora.

Depois de alguns meses um dos cães que havia ido com o grupo da Kombi voltou e contou como aconteceu: “Nos levaram a um local onde tinha vários outros cães. Éramos colocados em pequenas celas e ali recebíamos comida, água e sempre aparecia alguém que nos fazia carinho. Achei estranho e senti muita falta da minha liberdade que tinha nas ruas, porém me acostumei rápido àquela vida. Até que um dia eles me levaram a uma sala com várias pessoas de branco, me seguraram com força e me espetaram com algo que depois de alguns instantes me fez adormecer. Quando acordei estava com uma espécie de capacete branco na minha cabeça e próximo da minha barriga doía muito. De vez em quando aparecia alguém, passava alguma coisa na minha barriga e ia embora. Não entedia porque eles tinham me machucado.

Duas semanas depois eles tiraram o capacete e eu pude ver que tinha um corte abaixo da minha barriga e quem nem doía mais. Fui colocada num local com vários outros cães e todos contavam a mesma história. Onde estávamos era bem diferente dessa rua, mas sempre recebíamos comida, água e tinha um bom espaço para correr e brincar. O mais divertido é que todos os sábados apareciam várias pessoas que passeavam, brincavam e nos davam atenção e carinho.

Sim, e vocês devem estar se perguntando por que estou aqui. Nem eu sei. Num momento aproveitei um deslize deles e voltei para cá. Agora, não sei o que fazer. A vida na rua é muito difícil. Lá eu ainda tenho chance de encontrar um lar. Várias pessoas vão até aquele local a procura de um amigo. Lembram do Amarelo? Então, ele foi levado para a casa de uma família que gostou muito dele.”

A importância da castração

A amiga do Preto e do Marrom não aguentou a vida nas ruas e voltou para lá. Eles não tiveram mais notícias da  antiga companheira, mas só tinham uma certeza: não largam a liberdade que conquistaram. Aproveitando a nossa conversa, depois de um lanche que ofereci aos dois cães, eles me perguntaram o que tinha acontecido com a amiga deles quando a fizeram dormir e depois ela acordou com um machucado na barriga. Expliquei que este procedimento se chama castração e é feito pela retirada dos órgãos sexuais. Claro, que os dois amigos ficaram transtornados com a minha declaração. E ainda completei dizendo que isso ajuda a vida deles na sociedade humana.

 “Como uma ação dessa, de mutilação do nosso corpo, pode nos ajudar?” – rosnou Preto.

Em primeiro lugar, se a castração não for realizada várias doenças podem aparecer. A pior delas é o aparecimento de tumores que podem levá-los a morte. E a segunda coisa é que para haver uma vida em sociedade a população de animais e humana deve viver em harmonia. Porém, a população canina se multiplica rapidamente e em 10 anos mais de 80 mil novos animais podem estar nas ruas. Os humanos não têm tanto dinheiro para abrigar e cuidar dessas novas vidas que podem nascer. Além disso, já sem essa “problemática dos animais” os humanos não conseguem sustentar todos de minha espécie, expliquei ao cão.

Seguindo instintos

Os amigos não gostaram muito da declaração, mas apenas respeitaram a minha opinião. Neste momento, passou na rua uma cachorra branca de porte pequeno e atrás dela vários outros cães. Percebi que a conversa tinha chegado ao fim. Os cães do bando olharam para Preto e Marrom que imediatamente se juntaram a eles. A dupla apenas me olhou com ar de “até a próxima. Precisamos seguir nossos instintos”.

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