Para o ativista e ambientalista da União Protetora do Ambiente Natural – UPAN, de São Leopoldo-RS, Márcio Linck, a forma mais coerente de proteger os animais começa por cortar a carne do prato. Segundo ele, defender os direitos dos animais significa “assumir uma condição de responsabilidades e cooperação com essa tênue cadeia harmônica em que a vida poder ser manifestada”
“O interesse do animal em não sofrer e querer continuar a viver é tão fundamental e importante para ele o tanto quanto esses interesses o são para mim. Podemos viver sem carne e optar por comê-la constitui-se numa preferência, num capricho.” A afirmação é de Márcio Linck, ativista em defesa da libertação animal e da conscientização e respeito a todas as formas de vida. Vegetariano há mais de 20 anos, Linck argumenta que não consumir produtos de origem animal significa preocupar-se com a “sustentabilidade do futuro do planeta”. Para ele, “a ética ambiental deve romper com o antropocentrismo e encarar os desafios para além do ambientalismo. (…) Se ética não atingir a dignidade e o respeito a todas as formas de vida, então ela é torpe e sem valor. Na atual conjuntura, não há como o discurso ambiental ser moralmente respeitado e aplicável e eticamente aceitável, se não incorporar a defesa do vegetarianismo e do veganismo”.
Em entrevista concedida à IHU On-Line, ele reflete acerca dos problemas ambientais e sociais gerados pela produção de carne bovina e informa que “gastam-se em média 15 mil litros de água para produzir um quilo de carne, enquanto para o mesmo quilo de vegetais se utilizam em média, mil e quinhentos litros”. De acordo com Linck, o vegetarianismo é um estilo de vida que “rompe com o antropocentrismo e com o especismo, que é o preconceito em relação a uma outra espécie, apenas por ela ser diferente em relação à forma e à aparência e assim um menosprezo para com suas suas vontades e direitos básicos”.
Linck é graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. É colunista da ANDA, membro do GAE-POA, Grupo pela Abolição do Especismo e autor do livro Para Além do Ambientalismo – Uma História em Duas Décadas (2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que não deveríamos comer produtos de origem animal?
Márcio Linck – Em primeiro lugar, por razões éticas e de respeito à vida. O que não quero que façam para mim ou para meus semelhantes afins eu não faço para os outros, no caso os animais. As granjas e modernas fazendas de produção intensiva constituem-se em verdadeiros campos de concentração, onde o holocausto é permanente e silencioso. Silencioso porque estão longe dos nossos ouvidos, porém lá estão as galinhas vivendo em espaços minúsculos, sem poder movimentar-se e sem ver a luz do dia, tal como as porcas de parir, aprisionadas e transformadas em máquinas de gerar carne, apartadas de sua prole e sem poder cuidar e dar afeto e proteção aos filhos, tal como é o desejo, de modo semelhante, das mães humanas. E aí toda uma vida estressante que se inicia com a inseminação artificial, passando pelo corte do bico, dos dentes, do rabo e das genitálias sem anestesia alguma. Uma vida toda de sofrimento e que ainda continua com o transporte em caminhões apertados e culmina com toda a crueldade dos matadouros. Ah! se os matadouros tivessem paredes de vidro, como sugeriu Paul McCartney, “todos seriam vegetarianos!”. Diria que, se todas as pessoas tivessem que matar um animal para obter um pedaço de carne, também teríamos uma maioria vegetariana.
Há também o argumento pela sustentabilidade e futuro do planeta, conforme a situação ambiental. E por fim, pelos fatores ligados à saúde, pois segundo dados da American Dietetic Association – ADA e nutricionistas do Canadá de 2003, que reúne os principais estudos científicos sérios sobre vegetarianismo, os vegetarianos têm 30% menos risco de desenvolver doenças cardíacas, 50% a menos do diabetes, etc.
IHU On-Line – Como define a postura ética e filosófica do vegetarianismo e do veganismo, principalmente no que se refere à proteção dos animais?
Márcio Linck – Penso que essas duas posturas são fundamentais e até sequenciais do ponto de vista prático. Mas é preciso ir além e, embora o veganismo tenha um alcance maior em relação à não exploração dos animais, devemos aprofundar a nossa conduta de responsabilidades frente ao planeta. Tanto o vegetarianismo como o veganismo (este último de modo mais amplo) tem despertado e ampliado o debate a cerca da proteção e dos direitos dos animais no mundo. Sobretudo, trata-se de um estilo de vida que rompe com o antropocentrismo e o com especismo, que é o preconceito em relação a uma outra espécie, apenas por ela ser diferente em relação à forma e à aparência e assim um menosprezo as suas vontades e direitos básicos. Assim, os humanos estabelecem uma relação utilitarista para com os animais, explorando-os de todas as formas e transformando-os em objetos de consumo. O discurso e a prática especistas são muito semelhantes em relação ao sexismo (preconceito em relação a diferença de sexo) e ao racismo (preconceito em relação à raça).
Os animais são seres sencientes, dispõe de consciência e sensibilidade sobre sua presença no mundo, tem interesses e direitos inerentes a sua vida como o de procriar-se naturalmente, de relacionar-se afetivamente e socialmente com os companheiros de espécie e daí cumprindo outras funções biológicas, como o de poder escolher o alimento que lhe é próprio ou natural da sua espécie, ter liberdade de movimentos e poder ser feliz! Por que somente o ser humano pretende ser a única espécie a buscar a felicidade? Assim como a espécie humana os animais sentem tristeza, nostalgia, desapontamento, amor, sofrimento, afeto, amizade, medo, esperança, felicidade, raiva, compaixão, sonhos, pesadelos, ciúmes, solidão, solidariedade, curiosidade, etc. Todos que possuem animais de estimação sabem do que estou falando e a Etologia (ramo da Biologia que estuda o comportamento animal), enquanto ciência, referenda não somente a manifestação desses sentimentos, como também padrões de inteligência, poder de comunicação e até de linguagem em algumas espécies. Como desdobramento desse despertar que o vegetarianismo e o veganismo têm proporcionado, muitas pessoas acabam fazendo a conexão necessária para não mais contribuir através de seus hábitos cotidianos com o sofrimento e a crueldade dos animais utilizados para alimentação, vestuário, pesquisas, entretenimento etc. Há toda uma corresponsabilidade individual e uma justificativa por trás de toda essa cadeia produtiva dos horrores, que mantém os animais num martírio e inferno permanente. Tudo, porque no final do processo está o consumidor das carnes diversas, dos embutidos, do presunto, do bacon, dos laticínios etc.
Outra questão extremamente importante nessa conexão refere-se às incoerências pessoais, quando as pessoas dizem respeitar e amar os animais, no caso aqueles culturalmente e convencionalmente estabelecidos, como os de estimação, enquanto aprisionam, degolam, esfolam, queimam, cortam, espetam e devoram outros. A cultura de um determinado lugar é que impõe essa divisão entre aqueles que devemos amar e proteger e aqueles que devemos explorar, torturar e consumir. O cachorro amado aqui no Ocidente pode ser saboreado em algumas regiões da China, Coreia ou Indonésia, sem dó e piedade alguma. Então, não há diferença entre cachorros, porcos, galinhas, vacas e gatos em relação aos sentimentos e a troca de emoções não somente entre os seus como também para com outras espécies, incluindo a humana.
Postura ética
Quanto aos conceitos que exprimem uma postura vegetariana ou vegana, embora fundamentais, devemos ter o cuidado não só com a rotulagem dos mesmos e o comodismo em achar que tudo está perfeito. Defender os animais também passa por assumir uma condição de responsabilidades e cooperação com essa tênue cadeia harmônica em que a vida poder ser manifestada. As nossas escolhas enquanto consumidor pode afetar os habitats de muitas espécies, como é o caso dos milhares de animais marinhos que são mortos por engolirem os milhões de plásticos e outras embalagens despejadas nos oceanos; ou todo o impacto ambiental gerado por uma conduta consumista, citando o exemplo das latas, cujo alumínio extraído da bauxita pode vir de uma área de floresta composta de uma variada fauna. O desperdício ou esbanjamento em relação ao consumo de energia (de fonte hidroelétrica) de uma casa pode justificar as grandes barragens e a inundação de grandes áreas de florestas exterminando a fauna ali existente; os resíduos excretórios que expelimos via descarga e que vão parar na rede de esgoto e consequentemente jogados in natura nos rios e lagos, tirando oxigênio dos peixes e demais habitantes aquáticos, constitui-se num desrespeito ao direito à vida destes animais. Nesse caso, estarei faltando com a ética para com estes animais que não têm nada que ver com as consequências daquilo que consumimos e descartamos. Nesse caso a nossa responsabilidade ética seria a de cobrar do Estado o tratamento desse esgoto antes dele atingir os recursos hídricos e causar todo um malefício aos peixes, anfíbios, répteis e aves aquáticas. Teríamos muitos outros exemplos em relação ao nosso padrão de consumo que afeta diretamente o ambiente natural de muitas espécies. O prejuízo ambiental que afeta a qualidade de vida atinge a todos, animais humanos e não humanos. Por isso, não basta vestir o manto dos rótulos para achar que já atingimos a perfeição ou a salvação. É preciso refletir, aprofundar e avançar! Nesse sentido, uma postura ecoveganista contemplaria nossa responsabilidade em relação a todos os animais e seus habitats.
IHU On-Line – Que impactos ambientais são produzidos pelo consumo de carne?
Márcio Linck – De acordo com a Conservation International , das 35 áreas onde a biodiversidade é mais ameaçada no mundo, 23 têm, como principal causa, a pecuária. 2/3 dos desmatamentos das florestas tropicais do planeta se devem à expansão da pecuária. No Brasil, a floresta Amazônica é um exemplo disso, pois as áreas de pasto triplicaram nos últimos 30 anos e a área desmatada acumulada atingiu, em 2007, 720 mil km2 (18% de sua área total). Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, 78% do desmatamento da Amazônia Brasileira se deve à pecuária. Antes do pasto ou da soja e milho que serão transformados em ração para o gado, principalmente da Europa e dos Estados Unidos, e antes do próprio gado, estão as queimadas, cuja contribuição para as emissões brasileiras de gases estufa são da ordem de 75%. Hoje a Amazônia responde por 41% dos abates bovinos no Brasil. Somente em 2006 foram produzidos 2,7 milhões de carne, sendo que desse total apenas 3% é consumido na região, 10% é exportada (lembrando que a partir de 2004, o Brasil tornou-se o segundo maior produtor e o maior exportador de carne bovina do mundo) e 78% é dispersada pelo resto do país. Um em cada três bifes consumidos no Brasil vem da Amazônia. Então, essa história de salvar a Amazônia começa pelo prato de cada brasileiro. O resto é balela e hipocrisia. O estado de Mato Grosso, nos últimos anos, converteu 38 mil km2 de floresta em grãos para fazer ração para o gado.
Então, além das queimadas e do desmatamento, a pecuária acarreta a erosão do solo, assoreamento dos recursos hídricos e sua contaminação com pesticidas (mercúrio, fósforo, cloro, chumbo, arsênico e outros) e dejetos provenientes dos hormônios, vacinas, antibióticos, fungicidas, bactericidas e outros fármacos. Sem falar na desertificação, extinção de espécies, chuva ácida e gases estufa.
Impactos ambientais do consumo de carne
Em 2006, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação – FAO divulgou um relatório com mais de 400 páginas, intitulado A Grande Sombra dos Estoques Vivos, que aponta a pecuária como responsável por 18% dos gases estufas, superando os 13% gerados pela queima de combustíveis fósseis. No entanto, a grande mídia pouco fala disso e a maior parte dos documentários referentes às mudanças climáticas e ao aquecimento global insiste em apenas mostrar cenas de chaminés saindo das fábricas e da grande circulação de automóveis nos grandes centros urbanos. É mais cômodo culpar a fábrica e o automóvel do que o hábito de comer carne! Imaginem que se cada habitante do Reino Unido deixasse de comer carne apenas uma vez por semana, isso equivaleria a retirar cinco milhões de automóveis por um ano no mundo.
O estudo da FAO aponta que 37% do gás metano (que é 23 vezes mais poluente que o CO2) provém da pecuária, e aí entra todo o processo digestivo dos bovinos; 65% do óxido nitroso NO2 (gases provenientes do esterco) é gerado pela pecuária, sendo que esse gás é 296 vezes mais nocivo que o CO2 (uma vaca produz cerca de 40 kg de esterco por dia e uma fazenda contendo cinco mil bovinos produz a quantidade de excrementos que produziria uma cidade com cinquenta mil habitantes); e 64% da amônia, que contribui para a chuva ácida e acidificação dos ecossistemas, provém da pecuária. Infelizmente, em 2009, dois cientistas do Banco Mundial recalcularam esses dados para o WorldWatch Institute e chegaram à conclusão de que a pecuária e seus subprodutos respondem por 51 % dos gases causadores do efeito estufa.
A agropecuária é responsável por 70,2% do volume de água retirado dos mananciais ao redor do mundo. Em segundo lugar está o setor industrial (20,02%) e o consumo humano(9,5%). Gastam-se em média 15 mil litros de água para produzir um quilo de carne, enquanto para o mesmo quilo de vegetais se utiliza, em media, 1.500 litros. Nesses cálculos entram não só a água que o boi bebe (cerca de 50 a 70 litros por dia e a vaca leiteira de 110 a 140 litros por dia), mas também a água utilizada na produção de seu alimento e nas diferentes etapas que envolvem o abate do animal (sangria, escaldagem, depenagem, depilação, barbeação, evisceração, lavagem etc.).
O setor da suinocultura no Brasil consome mais de 23 milhões de litros de água por ano e gera efluentes da ordem de 12 milhões de litros por ano. Lembrando que o porco gera de seis a sete vezes mais estrume do que os humanos, ocasionado um poder poluente 50 vezes maios em termos de Demanda Bioquímica de Oxigênio – DBO.
IHU On-Line – Em que consiste uma ética ambiental?
Márcio Linck – A ética ambiental deve romper com o antropocentrismo e encarar os desafios para além do ambientalismo. Atuar em defender do meio ambiente é garantir a sustentabilidade e o futuro não só do homo sapiens, mas de todas as demais espécies que habitam o planeta. Se ética não atingir a dignidade e o respeito a todas as formas de vida, então ela é torpe e sem valor. Na atual conjuntura, não há como o discurso ambiental ser moralmente respeitado e aplicável e eticamente aceitável, se não incorporar a defesa do vegetarianismo e do veganismo.
IHU On-Line – É possível combater a fome a partir do vegetarianismo?
Márcio Linck – Com certeza! Poderíamos eliminar a fome no mundo (incluindo uma política de distribuição de alimentos) se destinássemos uma grande parte da produção agrícola servida aos animais, diretamente aos humanos. É uma insensatez e estupidez ocupar 30% da área produtiva do planeta com a pecuária e utilizar mais 33% de terra fértil com a produção de grãos para alimentar animais. A quantidade de comida consumida apenas pelo gado mundial (não incluindo suínos, caprinos e aves) atualmente equivale às necessidades calóricas de mais de 9 bilhões de pessoas. O boi constitui-se numa fonte de proteínas de baixíssima eficiência energética, pois converte em carne apenas 7% do que come. Um hectare cultivado com cereais produz cinco vezes mais proteínas do que um hectare destinado à produção de carne, sendo que um quilo desta é necessário de 10 a 15 kg de cereais. Isso sem falar nos custos ambientais e na água utilizada. Grande parte da soja que hoje destrói a floresta Amazônica é exportada e transformada em ração para alimentar o gado europeu e norte-americano. Segundo o jornalista americano Paul Roberts, em seu livro intitulado O Fim da Comida , a Terra pode alimentar 2,5 bilhões de bocas com uma dieta ocidental, rica em carne, ou 20 bilhões de vegetarianos. Portanto até aí entra a ética, a ética da alimentação.
IHU On-Line – Quando o senhor aderiu ao vegetarianismo? Essa opção de vida está relacionada à proteção dos animais?
Márcio Linck – Sim. A forma mais coerente de proteger os animais começa por cortar a carne do prato. Já faz quase 24 anos que tornei-me vegetariano, sendo inicialmente o primeiro motivo o respeito à vida e o amor aos animais. Não poderia mais continuar sendo corresponsável com todo um sistema que implica em sofrimento, tortura e morte de seres dotados de sentimentos e sensibilidade. Hoje eu não precisaria mais ter sentimentos de bondade e compaixão para com os animais para ser vegetariano, pois bastaria a ética e toda a filosofia que coloca os animais no princípio da igualdade de direitos e consideração de seus interesses. O interesse do animal em não sofrer e querer continuar a viver é tão fundamental e importante para ele o tanto quanto esses interesses o são para mim. Podemos viver sem carne e optar por comê-la constitui-se numa preferência, num capricho. Mas uma preferência não deve estar acima de um direito, quanto mais o direito à vida e a toda sua correspondência, seja em relação à liberdade de movimentos, de escolha dos seus alimentos e da relação afetiva com os seus. Não preciso e não necessito viver em função do sofrimento e da morte de seres indefesos e sensíveis. Mas, com certeza, o amor que tenho pelos animais se mistura com minhas razões éticas. Mas tanto o amor como a ética começam pela boca.
Com o tempo, além da ética, também incorporei outros argumentos em favor de uma alimentação sem carne, tal como a questão ambiental, econômica e as questões ligadas à saúde.
Fonte: IHU on-line