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A portaria caiu, e agora?

14 de junho de 2013
13 min. de leitura
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Este artigo foi escrito com a colaboração do Dr. Paulo Tabanez, Médico Veterinário Infectologista e Diretor do Hospital Veterinário Prontovet – DF e Membro Fundador do Brasileish – Contato: [email protected]

Informações gerais sobre a doença:

Leishmaniose Visceral é uma doença causada pelo protozoário Leishmania infantum transmitida pela picada do vetor (Mosquito Palha) para um indivíduo susceptível (homem, cão, gato, rato, raposa, gambá, entre outros). A maior parte dos cães infectados ficam assintomáticos por períodos variáveis de tempo, de acordo com a sua resposta imunitária. Os sinais clínicos no cão são variáveis e inespecíficos e podem imitar qualquer doença. Os sinais mais comuns são problemas de pele, oftálmicos, emagrecimento, aumento das unhas, anemia e insuficiência renal. O diagnóstico final é feito por exame parasitológico, ou seja, visualização do parasito diretamente ou por meio de detecção molecular do mesmo. Os testes sorológicos podem ser usados como triagem e somente são confirmatórios quando apresentam títulos altos, estes exames confirmam infecção e não doença. São vários os protocolos terapêuticos e que devem ser considerados de acordo com o estadiamento da doença pelo médico veterinário. Os animais tratados devem ser acompanhados por toda vida, além de usarem os repelentes/inseticidas constantemente. Para os animais não infectados devem-se preconizar métodos preventivos, como vacinas e repelentes/inseticidas, que reduzem o contato cão-vetor. Existem duas vacinas no mercado brasileiro, Leishmune da ZOETIS (antiga PFIZER) e Leishtec da Hertape Callier.

A Portaria Caiu e Agora?!?

Recebemos com imensa alegria no último janeiro de 2013, a notícia que a Portaria Interministerial do Ministério da Saúde Nº 1426/2008 havia sido derrubada, isto é, não estaria mais em vigor a portaria que proíbe o tratamento de cães com Leishmaniose.

É importante dizer que a portaria interministerial não proibia o tratamento, na verdade não permitia usar em cães doentes as mesmas drogas que são utilizadas para tratar os seres humanos com Leishmaniose.

A portaria proibia o uso de duas drogas: a Anfotericina B e o Antimoniato de Meglumine (Glucantime). Na Europa, entretanto, o tratamento de cães é realizado com o uso de outra droga, o Milteforan, que é utilizada exclusivamente para o tratamento de cães, mas não pode ser importada pelo Brasil, pois não tem registro aqui. Lá também existe um Glucantime feito pelo Laboratório Merial para uso veterinário, entretanto o Governo Brasileiro não permite a sua importação.

O Glucantime no Brasil, não pode ser comercializado, essa droga é distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS), não podendo ser comprada em farmácias comuns. É de uso exclusivo para seres humanos.

O fato é que, independente do uso destas drogas existem protocolos que podem ser usados para o tratamento de animais e que não são utilizados para o tratamento em seres humanos. E esta informação desmistifica um dos maiores impedimentos para o tratamento canino, que é a possível resistência do parasita ao tratamento oferecido.

O que nunca foi comprovado!

Voltando a Decisão do TRF 3º Região, que destitui a portaria do MS, a sentença afirma que “A Portaria n.º 1.426 é ilegal, porquanto extrapola os limites tanto da legislação que regulamenta a garantia do livre exercício da profissão de médico veterinário, como das leis protetivas do meio ambiente, em especial da fauna”.

É ilegal, por afrontar a legislação protetiva do meio ambiente, especialmente a Lei n.º 9.605/98, que tipifica, dentre os crimes ambientais, aqueles que são cometidos contra a fauna, e também a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em assembleia da Unesco, em Bruxelas, no dia 27 de janeiro de 1978, que regulamenta a matéria no âmbito internacional, e que foi recepcionada pelo nosso sistema jurídico.

A proteção dos animais em relação às práticas que possam provocar sua extinção ou que os submetam à crueldade é decorrência do direito da pessoa humana ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no inciso VII do §1º do artigo 225 do texto constitucional.

A Constituição Federal, a Declaração de Bruxelas e as leis de proteção à fauna conduzem-se no sentido da proteção tanto da vida como contra os maus tratos. A vedação de medicamentos usados para humanos ou dos não registrados para aliviar ou evitar a doença em causa, desde que prescritos por quem de direito, representa séria violação e desrespeito aos estatutos mencionados.

Por isso, a decisão do TRF foi categórica ao determinar a extinção da portaria e, com isso, a liberação do tratamento, entretanto as partes contrárias a esta decisão ainda tem direito de apelar contra esta decisão.

O que causou grande espanto foi o Presidente do Conselho Federal de Medicina Veterinária, quem em tese deveria defender o direito dos animais a tratamento, se manifestar contra tal decisão e informar que irá cassar o registro dos veterinários que tratarem a doença. Na verdade, agora é o conselho que age contra a lei, pois foi uma Decisão Federal que decidiu revogar a portaria.

O que demonstra a grande necessidade de mobilização da classe veterinária e da população brasileira, para fazer um levante nacional, com o intuito de pressionar e colocar novos dirigentes em cargos de importância como a presidência de conselhos.

Estamos em um momento crítico em nossa sociedade, em que se exige uma mudança paradigmática na forma de se encarar os problemas globais, originados principalmente pelas questões ambientais; e dirigentes pouco instruídos, que defendem uma política ineficaz e ultrapassada, indo contra decisões judiciais, que são amparadas em nossa lei maior – A Constituição Federal de 1988 – não podem representar uma classe profissional, e muito menos impedir a remodelamento de politicas públicas de saúde, que afetam toda a população brasileira.

Este levante já vem acontecendo há alguns anos, a população está cansada de matar seus bichos de estimação, esta cansada de ver milhares de inocentes serem mortos, em nome de uma política ineficaz e que se mantém embasada em dados, no mínimo, contraditórios, pois existem inúmeros casos de regiões onde os cães foram exterminados e as pessoas continuam contraído a doença.

Abaixo algumas das várias iniciativas de mobilização social a favor do tratamento de animais com leishmaniose:

– A campanha da ONG Arca Brasil “O cão não é vilão!”; pode ser acessada em: http://www.ocaonaoeovilao.org.br/

– Comunidade do Facebook “Leishmaniose: prefiro tratar que matar”; pode ser acessada em: https://www.facebook.com/LeishmanioseCanina

– Projeto de Lei, do Deputado Geraldo Resende sobre a vacinação pública; pode ser acessado em:

http://www.geraldoresende.com.br/imprensa/noticias/politica/leishmaniose-projeto-preve-fim-do-sacrificio-de-animais

– Diversas audiências públicas para discutir o problema; pode ser acessada em:

http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2013/03/audiencia-publica-sobre-leishmaniose-lota-auditorio-da-justica-em-ms.html

https://www.anda.jor.br/12/03/2013/audiencia-publica-historica-para-a-medicina-veterinaria-marca-discussao-sobre-o-tratamento-da-leishmaniose

– Criação em 2011 do Grupo Brasileish, que é um grupo de estudos sobre Leishmaniose animal, composto por pesquisadores da área, com o intuito de discutir, orientar, pesquisar, divulgar o assunto com a sociedade, universidades, conselhos, entidades de classe e profissionais da saúde.

Além dessas inciativas, várias outras vem acontecendo no Brasil, como o WORLDLEISH 5, que aconteceu em maio de 2013, em Porto de Galinhas/PE. Este evento é um congresso mundial de Leishmaniose que acontece a cada quatro anos em uma cidade do mundo. Nesta ocasião, foi possível expor a realidade absurda que o país vive. E acredita-se, que diante desta revelação seja possível conseguir apoio internacional para uma mudança na postura política no Brasil sobre a abordagem do problema.

O Dr. Paulo Tabanez, assim como seus colegas do BRASILEISH, vem incansavelmente participando e ministrando palestras sobre o tema, em congressos, cursos, simpósios nacionais e internacionais, além de audiências públicas, com o intuito de rever e ampliar a discussão da eutanásia, diagnóstico, prevenção e tratamento para esta doença nos animais.

Informações sobre a Leishmaniose no Brasil:

  • O Brasil é um dos únicos países do mundo que adota a prática da eutanásia para controlar uma doença vetorial;

  • Tal prática vem sendo questionada pela comunidade científica, que, baseada em dados científicos, vem apontando a ineficácia desta ação. Nos últimos sessenta anos milhões de cães foram eutanasiados e a incidência na doença não diminuiu. Não existe evidência científica alguma de que estas mortes tenham contribuído para a diminuição do número de casos da doença;

  • Revisões sistemáticas da literatura mundial sobre o assunto apontam que a eutanásia como forma de controle da doença não é eficaz e, muito menos, aceitável. Vários pontos contribuem para isto: baixa acurácia dos testes sorológicos (Falsos Positivos e Falsos Negativos), longo tempo entre realização do exame e remoção do animal, alto percentual de animais assintomáticos, o cão não é o único reservatório, baixa adesão do tutor devido ao aspecto emocional envolvido na relação tutor-cão (onde o animal não é entregue a eutanásia), fuga dos tutores para outras áreas, tratamento indevido (uso de drogas ilícitas e sem critério médico veterinário), alta taxa de reposição dos animais que são eutanasiados e não educação da população para métodos preventivos (vacinação, repelente, cuidados com o ambiente, etc);

  • Levantamentos mostram que a doença, que antes se limitava a zona rural, começou a invadir grandes regiões, isto é, a doença só tem avançado, mesmo com sessenta anos de sacrifício de cães  (CANICÍDIO);

  • Uma vasta rede espalhada pelo País se mobiliza para que o Ministério da Saúde comece a combater de forma eficaz, com políticas públicas, o vetor da doença – o mosquito-palha. Para o controle do mosquito palha tem que ser feito borrifação peri e intradomiciliar;

  • A recomendação do Ministério da Saúde é só usar o inseticida se houver casos humanos. Se você tiver mil cachorros com a doença na sua rua, não pode usar inseticida;

  • Tem que pensar em leishmaniose como se pensa na dengue, malária, febre amarela, no controle do vetor;

  • Necessidade de aprofundar o conhecimento sobre a biologia do vetor, para que seja possível instruir melhores formas de controle do mesmo;

  • O que falta é: educação em saúde para agentes de saúde pública e para a população, posse responsável, programas de controle de natalidade dos animais para controle populacional, limpeza dos jardins, vacinação dos animais e uso do repelente nos mesmos. Esta é a melhor forma de prevenir a disseminação da doença;

  • A portaria do Ministério da Saúde que proibia o tratamento com o uso de medicamentos humanos é um ato interno e não tem efeito legal;

  • A justiça, quando derrubou a portaria, entendeu que a mesma não pode proibir. Isto se chama inconstitucionalidade reflexa, ou seja, uma norma inferior não pode ir contra uma norma superior. Portaria é uma designação de autoridade para seus comandados;

  • A justificativa do Ministério da Saúde quando publicou a portaria é que não existem resultados científicos que demonstrem que o tratamento cura. Eles querem um tratamento com cem por cento de cura. Isso não existe. Não existe nenhuma droga com cem por cento de cura. Vamos esclarecer o que significa cura, a cura pode ser: 1) Cura Clínica (não ter sinais da doença), 2) Cura Epidemiológica (não ser transmissor) e 3) Cura Parasitológica (não ter mais o parasita, não ser portador). Os tratamentos para Leishmaniose tanto humana, quanto para o cão conferem cura clínica e epidemiológica, mas não parasitológica, e o cão pode ter mais recaídas do que os seres humanos, por este motivo o médico veterinário deve acompanhar seu paciente, prevendo as recaídas, e caso aconteçam deve intervir adequadamente;

  • A portaria dizia que não pode fazer o tratamento usando droga de uso humano. A droga é a mesma: se empacota com o nome “uso humano” e se empacota com o nome “uso animal”. As drogas agem sobre o organismo da pessoa e do animal também. O que deve ficar claro é que o princípio ativo das drogas é o mesmo e que as empresas fazem deste princípio ativo um medicamento. A forma de usar segue as recomendações do médico veterinário para aquela espécie, e para o caso que está sendo prescrito;

  • Um fato interessante é que não existem quimioterápicos de uso exclusivo veterinários. Os quimioterápicos usados para animais são os que estão disponíveis no mercado para uso humano, se fossemos seguir esta lógica não existiria Oncologia Veterinária. Todo animal com câncer deveria morrer sem tratamento, assim como os cães com leish tem sido condenados à morte;

  • O que está sendo requerido na justiça é a demonstração pelo Órgão público competente, que o que eles estão falando, eutanasiar cães, funciona. Há lugares onde foram eutanasiados mais de 20 mil cães e os números de casos da doença aumenta;

  • A política de controle do Ministério da Saúde não funciona e o que está acontecendo é crime ambiental. A Lei 9.605, de Crimes Ambientais no artigo 32, que trata de Crimes e Maus Tratos, diz que se você vê um cachorro sofrendo e não faz nada, isto é crime ambiental. Se o cachorro está doente, minguando, e não faz nada, é crime;

  • Um grande problema da Leishmaniose é o retardo do diagnóstico médico, e muitas vezes a escolha do protocolo terapêutico não é acertado. Existe um teste no posto de saúde que pode ser feito e o resultado sai em vinte minutos. O custo para o Poder Público é de dez reais;

  • A leishmaniose não acomete somente o cão e o homem, mas também o gato, o rato, o gambá, a raposa, o tamanduá, entre outros mamíferos;
  • O tratamento de cães com Leishmaniose existe no Brasil, mesmo quando havia a portaria interministerial que o proibia. Existem drogas e protocolos que podem ser usados para tratar os cães e que não são usados para tratar Leishmaniose Visceral Humana. Umas das justificativas da portaria era que drogas usadas para seres humanos deveriam ser excluída do tratamento dos cães, no intuito de se reduzir a possibilidade de resistência, que acontece mais ou menos assim: se o veterinário usar uma droga para tratar um cão e isto induzir ou selecionar a resistência do protozoários a esta droga naquele cão, o inseto ao picar o animal pode se infectar com a cepa resistente e transmiti-la para outro indivíduo durante um novo repasto sanguíneo. A questão é que não existe nenhum trabalho que confirme esta resistência. É anedótica!
  • Lei Federal 569 de 1948, no artigo primeiro, diz que, se por motivo de saúde pública for determinada a eutanásia, o dono do animal deve ser indenizado. O que nunca aconteceu, as pessoas tiveram que entregar seus animais, e nunca obtiveram nenhuma compensação financeira, visto que na lei um animal é considerado propriedade de alguém (sou totalmente contra este posicionamento, mas é o que está na lei).

Como conclusão, entendemos que o momento é extremamente oportuno, contamos com a pressão internacional, com o Judiciário Brasileiro e com a mobilização social, para não mais aceitar a política imposta pelo Governo sobre o controle da Leishmaniose no Brasil.

De acordo com os fatos apresentados é visível a ineficácia da atuação governamental frente esta doença, que não para de crescer, mesmo com 60 anos de extermínio canino.

Não há mais como aceitar estes métodos primitivos de prevenção, isto coloca em risco a vida de nossos animais e de toda a população. Precisamos nos posicionar fortemente a favor: do controle humanitário populacional de cães e gatos, com política de castração em massa e campanhas de adoção; controle do inseto, cobrando do poder público ações enérgicas e urgentes nesse sentido; liberação do registro de medicamentos de uso veterinário para o tratamento da doença; vacinação gratuita para todos os animais; distribuição gratuita de repelentes, priorizando as áreas endêmicas; investimentos significativos em pesquisas sobre o tema e educação continuada dos agentes de saúde e população geral. Estas ações são as verdadeiras formas de controle da doença, quanto mais o poder público se esquivar de efetivar tais mudanças mais a doença avançará.

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