Tem sido muito comum pessoas que não entendem o veganismo interseccional (VI) chamarem os defensores dessa vertente de “adeptos do humans first“ e os acusarem de “escolher os humanos” quando há supostamente um dilema entre qual categoria defender ou prejudicar. Justamente por não compreenderem – nem, muitas vezes, ter a boa vontade de procurar conhecer melhor – o VI, deixam de perceber que ele é um desmontador de dicotomias. Por isso mesmo, vem assegurar que a defesa dos Direitos Animais e dos seres humanos, graças à sincronia parceira, à complementação mútua e à excelência do respeito aos princípios dos Direitos Animais e Direitos Humanos, dê certo.
Têm aparecido cada vez mais exemplos em que tentativas de defender os animais não humanos sem preocupação com a dignidade de seres humanos e as injustiças sociais resultam em fracasso ou baixo desempenho, prejuízos diretos ou indiretos a ambos e erosão da reputação do movimento vegano-abolicionista. Os quatro mais conhecidos e comentados no meio vegano-animalista, pelo menos segundo eu tenho visto na internet, são a questão do sacrifício de animais em rituais religiosos, o elitismo do ativismo vegano, a despreocupação de muitos panfletadores veganos online e offline com os traumas sociais de muitas das pessoas receptoras e as múltiplas manifestações de preconceito no meio vegano.
No primeiro caso, muitas pessoas defendem apaixonadamente que sejam aprovadas e sancionadas leis criminalizando cerimônias sacrificiais. Mas não levam em conta a intenção racista e intolerante-religiosa que alicerça muitos dos projetos de lei que têm tal objetivo, por serem formulados por parlamentares cristãos fundamentalistas nada comprometidos com os Direitos Animais.
Nem que tal proibição levará não ao fim dos sacrifícios e à reforma do candomblé e da quimbanda (umbanda não sacrifica animais). Mas sim à clandestinização desses rituais, a um ligeiro aumento nas vendas em frigoríficos e açougues, à perseguição policial contra os terreiros, ao recrudescimento do racismo e da intolerância religiosa entre “amantes dos animais” e à injustiça de a lei afetar religiões de matriz africana mas não as monoteístas abraâmicas (cristianismo e suas ceias ricas em carnes brancas, judaísmo e os abates kosher, islã e os abates halal).
No segundo, a maioria das campanhas e eventos veganos costuma selecionar como público-alvo pessoas de classe média e média-alta, que moram, estudam e/ou trabalham em bairros centrais ou nobres das grandes cidades brasileiras. E em seu esforço de divulgação do veganismo, não levam em conta questões de classe, raça, gênero, deficiência etc. Agem como se realmente houvesse uma priorização de estudantes e trabalhadores liberais brancos de classe média que têm tempo livre suficiente para ler sobre Direitos Animais.
Por causa disso, tem havido uma penetração muito baixa do veganismo na periferia, muito menor do que na classe média que mora em bairros de renda per capita elevada. Assim, a consciência vegana tem se propagado muito menos do que poderia no Brasil. Por tabela, milhões de animais que poderiam não ter nascido para uma vida de miséria e exploração vêm à existência e morrem violentamente sob a condição de propriedade de pecuaristas. E milhões ou bilhões de peixes que poderiam continuar vivos e livres são pescados para serem comidos por milhões de pessoas pobres, que poderiam ter se tornado veganas se recebessem a plena preocupação e ajuda da maioria dos ativistas veganos.
No terceiro, podemos lembrar como exemplos imagens de comparação entre a escravidão imposta contra negros no Brasil pré-republicano e a exploração animal, desenhos que imaginam realisticamente uma “pecuária leiteira humana” que violaria e exploraria mulheres jovens e denúncias gráficas de que está havendo um holocausto animal no mundo, sem a preocupação de estar acionando traumas dolorosos em sobreviventes e descendentes de sobreviventes de campos de concentração e políticas de eugenia (que vitimaram judeus, negros, indígenas, homossexuais, prisioneiros políticos etc. em diversos países no século 20, desde a Alemanha nazista até o próprio Brasil).
Tais figuras acabam, em muitas pessoas, causando não empatia por animais não humanos, mas sim repulsa pela própria causa vegana. Afinal, como acaba se deixando a entender, os vegans seriam pessoas insensíveis para com pessoas que já foram vítimas de violências similares às promovidas pela pecuária, sem empatia por quem carrega traumas de tais crimes. Com isso, as comparações cruas entre violências contra animais não humanos e crimes brutais contra humanos têm sido um caminho bem inapropriado e ineficaz para a divulgação dos Direitos Animais, fazendo muitas pessoas terem mais repúdio e aversão do que simpatia ao veganismo.
Além desses três, também merecem menção os vegans reacionários, adversos à defesa dos Direitos Humanos e manifestadores contumazes de preconceitos e ódios. Em seus rompantes de indignação por violências contra animais não humanos, muitos não pensam duas vezes antes de promover xenofobia, misoginia, racismo, intolerância religiosa (vide o exemplo dos sacrifícios religiosos de animais), misantropia, capacitismo e outras formas de ódio anti-humanista.
Nem hesitam em defender que os testes científicos em animais passem a ser feitos em presidiários condenados – ao invés de simplesmente extintos e substituídos por métodos éticos de pesquisa. Nem em desejar que a humanidade seja erradicada por uma megapandemia ou uma catástrofe planetária, ao invés de conscientizada para o veganismo e o respeito pleno aos animais.
Jogam fora, assim, todos os princípios éticos da libertação animal e também os mais fundamentais valores do veganismo – como a educação para a cultura de paz e a confiança na capacidade do ser humano de abandonar posturas antiéticas e aderir ao pleno respeito à ética. E contribuem para a perpetuação das mesmas lógicas da ordem de hierarquias morais e cultura de violência que fundamentam o especismo e a exploração animal.
Quando o VI denuncia a falta de ética e a tendência ao fracasso de tais posturas de separação violenta entre Direitos Animais e Direitos Humanos, não está dizendo que é “preferível” defender os seres humanos em detrimento dos não humanos. Aliás, sequer acredita que a luta dos Direitos Animais é baseada em dilemas nos quais se optaria entre sacrificar a vida e integridade de animais não humanos e comprometer os direitos fundamentais de seres humanos.
Pelo contrário, defende, com rico conhecimento de causa, que as lutas pelos animais não humanos e as pelos humanos se complementam, se somam, se combinam, formam uma única grande força que atua em prol da libertação de todos os seres sencientes. Nunca se excluem mutuamente.
Quando se defende que afrorreligiosos negros veganos (muitos deles adeptos do VI) atuem em seu meio cultural, sem nenhuma tentativa de brancos de fora de “tutelá-los”, para reformar as tradições do candomblé e da quimbanda para acabarem os sacrifícios de animais, de forma nenhuma está-se defendendo a perpetuação desse tipo de ritual. Mas sim promovendo a única maneira até o momento dotada de chances de dar certo, para gradualmente abolir a morte de animais em nome da religião – pelo menos enquanto uma terceira via que beneficie igualmente humanos e não humanos e não incida em discriminação e desempoderamento não é sugerida e debatida.
Quando se chama a atenção para a necessidade de rever as posturas elitistas no meio vegano e lutamos pela organização e realização de eventos na periferia e no campo, não se está prejudicando os animais e promovendo a “relativização da exploração animal”. Pelo contrário, está-se fortalecendo o ativismo vegano-abolicionista e difundindo a consciência vegana em áreas que, até então, estavam sendo negligenciadas e mantidas desassistidas.
Quando se denuncia a impropriedade dos panfletos veganos que fazem comparações insensíveis e às vezes minimizadoras de violências humanas, de jeito nenhum está-se dizendo que as iniciativas de panfletagem precisam parar e as pessoas não veganas devem ser alheadas de conhecer a essência violenta do especismo. A posição do VI é que a divulgação antiespecista se adeque de modo a não acionar traumas em quem já sofreu violências pesadas similares às cometidas pela exploração animal, e a não fazer parecer que certas agressões são menos graves do que realmente são. É assim que a conscientização chegará a quem tem traumas decorrentes desse tipo de sofrimento, e impactará positivamente, e não causando repulsa pela militância vegana.
E quando vegans interseccionais rechaçam vegans reacionários, misantropos, xenófobos, racistas, machistas, heterossexistas, transfóbicos, capacitistas, pauperofóbicos, intolerantes-religiosos etc., estão lhes chamando a atenção para o fato de que estão cometendo a mesma postura de violação ética e desrespeito a seres sencientes que os especistas assumidos cometem. Estão exigindo que se leve a sério os princípios básicos dos Direitos Animais.
Antes de pensar que vegans interseccionais estão promovendo um “especismo relativista” e “privilegiando” pessoas de minorias políticas em detrimento dos animais não humanos, procure saber o que o VI realmente está defendendo, e por que o está. Evite se apegar a certezas precipitadas, que distorcem a compreensão da realidade e acabam perpetuando preconceitos tão graves quanto o especismo. Onde você vê “relativização da exploração animal” e “humans first“, há na verdade uma defesa simultânea, coordenada e mais avançada de animais humanos e não humanos, que pretende promover ou auxiliar a libertação de ambos.