Caio Fernando Abreu viveu pouco e intensamente. Ao deixar este mundo há pouco mais de uma década, aos 48 anos, o escritor gaúcho que se tornou conhecido com o livro Morangos Mofados, passara pelo existencialismo, pelo movimento beatnik, Woodstook, geração hippie, golpe militar, desilusão contemporânea e pelo fantasma da Aids, até encerrar sua existência no jardim, fazendo aquilo de que mais gostava: cuidar das plantas.
À maneira de Bob Dylan, tudo o que ele viu e viveu pelas estradas, todas as pessoas que cruzaram o seu caminho, os sons do jazz, a pintura de Van Gogh, a dança de Pina Bausch,tudo isso ajudou na formação intelectual do autor de Onde andará Dulce Veiga, Ovelhas Negras, Triângulo das Águas e Estranhos Estrangeiros. Também em sua obra há lampejos de Clarice Lispector, de Graciliano Ramos, de Virginia Woolf, somados à estética de O Beijo, às imagens de Gramado e às cores de Frida Khalo.
Caio foi isso tudo junto e mais um pouco: queria compreender o humano de seu tempo. Ele acreditava que os escritores eram biógrafos da emoção, artistas da palavra a testemunhar, entre versos e canções, o espantoso desfile das gentes. Vida e literatura, sob suas mãos, tornavam-se uma coisa só. No prefácio do livro que lhe reverenciou a memória, Caio de Amores, Moacyr Scliar bem o definiu:
“Tudo o que ele escreveu tinha a urgência e a beleza da paixão. Seus contos e romances falam da geração que conheceu a revolução sexual e a repressão de 1964, o poder da imaginação e a perigosa atração da droga. Maior que o drama pessoal, contudo, é a vida, a vida que prossegue, impetuosa como a ventania da primavera levando para longe os maus espíritos do inverno.”
Em seus últimos anos, Caio Fernando Abreu passou a colaborar, como cronista, no jornal O Estado de S.Paulo. No dia 4 de fevereiro de 1996, já pressentindo seu fim, publicou a crônica “A morte dos girassóis”. Nela o artista fala da aparente fragilidade da vida e da indescritível paixão de cultivar:
“Tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, ventos destruidores, até que o botãozinho parece que já vai abrir. E quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor. Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida.”
Mas os girassóis de Caio não sucumbiram à tempestade da noite. Na manhã seguinte, uma grata surpresa: a planta alquebrada fez um giro completo sobre o próprio eixo e, com a corola toda aberta, iluminada, parecia sorrir.
“Depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo. E que as plantas sentem dor, que nem a gente.”
Ligia Fagundes Telles, da Academia Paulista de Letras, emocionou-se ao saber que Caio Fernando Abreu morreu junto às plantas a às flores. Em homenagem ao amigo que partiu, ela deixou poucas e emocionantes palavras:
“Nos últimos tempos, quando não conseguia mais escrever, ele ia para o jardim cuidar das rosas. Ia cuidar da vida: tirar da terra a vida – e o Caio morrendo. Fazer desabrochar a flor – e o Caio morrendo. Num planeta enfermo como o nosso, num país, numa sociedade onde impera a boçalidade, a volúpia materialista, foi magnífico contar com o Caio.”
E viva Caio Fernando Abreu (1948-1996), que soube amar e compreender a natureza.