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“A moral de alguns cientistas é do nível de jardim da infância”, diz especialista em direitos dos animais

19 de outubro de 2010
11 min. de leitura
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Steven Wise quer estender direitos fundamentais exclusivos aos seres humanos a animais, impedindo que eles sejam usados em pesquisas científicas

Por Marco Túlio Pires

Para o advogado e especialista americano em direito dos animais Steven Wise, alguns animais deveriam ser elevados ao “status de pessoa”. Wise investigou sete espécies — chimpanzés, orangotangos, gorilas, papagaios africanos, elefantes, cães e golfinhos — e concluiu que, assim como os seres humanos, todas deveriam ter direitos legais que protegessem sua integridade e liberdade física. O especialista já escreveu quatro livros discutindo o cativeiro, a inteligência animal e por que alguns bichos não deveriam ser usados em pesquisas científicas.

Wise dá aulas sobre direitos dos animais em quatro faculdades nos Estados Unidos, incluindo Harvard. Também é bacharel em química e diretor do Non-Humans Rights Project (Projeto pelos Direitos dos Não Humanos), organização que reúne cerca de 40 pesquisadores nos Estados Unidos. Eles estão prestes a entrar na Justiça para tentar convencer o Superior Tribunal de Justiça da Flórida de que chimpanzés ou golfinhos têm condições de receber direitos fundamentais que ainda são exclusivos de nossa espécie.

O advogado conversou com o site de Veja para explicar quais são os argumentos morais e éticos envolvidos na pesquisa com animais, e sua relação com os argumentos científicos.

O senhor toma remédios quando está doente?

Sim, eu tomo remédios, sei que eles foram testados em animais e penso que não deveria ser assim. O modo como o nosso mundo funciona nos impossibilita de viver sem ferir, de alguma forma, os animais. A questão é aceitar passivamente viver nesse tipo de sociedade, ou fazer o melhor possível para reduzir nossa cumplicidade.

O senhor seria voluntário em pesquisas de remédios que nunca foram testados em animais?

Sei onde você quer chegar. Gostaria, contudo, que você refletisse em termos morais. Ao fazer testes com animais, aprisionamos um ser indefeso e determinamos o seu destino. Nós, humanos, fizemos isso uns com os outros por muito tempo. Agora que atingimos determinado ponto na nossa evolução moral e ética, não queremos mais repetir os mesmos procedimentos tomados por alguns médicos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Passaram apenas 60 anos desde que os seres humanos decidiram que não fariam testes em seres humanos sem o consentimento deles. E cerca de um século e meio desde que humanos, neste país, deixaram de escravizar outros humanos. Será que essas coisas que costumávamos fazer uns aos outros, que só agora admitimos que eram grotescamente imorais, podem ser repetidas em outros seres? Eles estão à mercê do ser humano. E nós os exploramos o máximo que podemos. Sob o ponto de vista moral isso é tão terrível quanto escravizar a nossa própria espécie.

Mas, repito, o senhor seria voluntário em testes de remédios que não foram testados em animais primeiro?

Depende da motivação.

Que tal salvar vidas humanas?

Pode ser que eu salve vidas humanas, concordo. Mas e os pesquisadores, por que eles não são voluntários nessas pesquisas? Eles querem viver, eles querem ter casas bonitas, famílias, férias… Por isso, preferem pegar animais indefesos e escravizá-los. Fazemos esse tipo de coisa há milhares de anos. Para mim, trata-se de mais um tipo de despotismo, de imposição de vontade sobre aqueles que não conseguem se defender. Só que agora os indefesos não são outros humanos, são chimpanzés, coelhos, cães, ratos e camundongos.

A pesquisa científica com animais faz uma troca. O eventual sacrifício de alguns animais para a salvação de milhares de vidas humanas. Não seria uma troca que favorece a sobrevivência da nossa espécie?

Os animais são utilizados porque não conseguem revidar. Se os cientistas estão realmente salvando vidas humanas, isso é um problema científico. Existem pesquisadores que pensam que não estamos salvando vidas humanas, outros pensam que salvamos algumas vidas e outro grupo acredita que estamos prejudicando os seres humanos. Isso porque os testes com remédios através de sistemas biológicos não humanos dão muitos falsos negativos e várias drogas que poderiam ajudar os seres humanos são descartadas antes mesmo de serem testadas. Vamos fazer um paralelo. Ninguém quer ser voluntário para trabalhar nos canaviais da Jamaica. Por isso, pessoas são sequestradas e obrigadas a cortar cana. Elas trabalham cinco anos e depois morrem, para que você tenha o seu açúcar. O que eu quero dizer é que os seres humanos possuem um histórico horrendo de abuso e exploração de outros seres, visando um ganho imaginário ou real.

Muitos cientistas dizem que é praticamente impossível conduzir pesquisas biomédicas sem animais. O que o senhor pensa a respeito?

Algumas pessoas que pertencem ao movimento pelo direito dos animais são contra a ciência. Eu não sou contra a ciência. Essa é uma questão que também tem a ver com a filosofia e o direito e por isso é complicado generalizar. Quando vamos lidar com uma preocupação científica, temos que considerar o sistema que queremos proteger. Então, se a intenção é desenvolver drogas que não vão fazer mal aos seres humanos, precisamos entender o sistema humano e qual tipo de sistema biológico trará resultados válidos. Se utilizamos animais não humanos, no fim das contas, teremos, pelo menos, dois sistemas biológicos que precisaremos entender muito bem. Então, é muito difícil dizer “não é possível conduzir esse tipo de pesquisa com ou sem animais”. As pesquisas não estão necessariamente limitadas aos sistemas biológicos. Existem culturas de células e modelagem computacional e matemática. Não quero fingir ser um especialista em nenhuma dessas áreas, mas as tenho acompanhado nos últimos 30 anos. Elas existem e estão melhorando. Outro fato importante é que, na minha experiência, defensores dos direitos dos animais tendem a conhecer muito pouco sobre ciência. Por outro lado, os cientistas tendem a conhecer quase nada de ética e de direito. Eles entendem muito pouco daquilo que não é ciência. Se precisamos de um sistema biológico para desenvolver pesquisa e proteger os seres humanos, qual é o melhor sistema? A resposta é, obviamente, a mesma espécie que queremos proteger. Então, a melhor espécie para entendermos a saúde humana é o próprio ser humano. Creio que nenhum cientista discordará disso.

Se não fizermos testes minuciosos em outros sistemas antes de passar para os humanos estaríamos colocando em risco a vida das pessoas.

Neste caso, acabamos de sair da seara da ciência, pois, sob uma perspectiva científica, o melhor modelo para efeitos em seres humanos é o próprio ser humano. Mas, a partir daí, as pessoas começam a dizer “não deveríamos utilizar humanos em pesquisa”. E saindo da ciência, entramos no campo da ética e do direito. Na minha experiência, os cientistas sabem muito pouco sobre ambos. Para eles, a discussão acaba com a frase “a utilização de animais não humanos é indispensável à causa da saúde humana”. No entanto, a discussão não acaba aí, ela apenas começa. Se um cientista não consegue construir um argumento forte para justificar sua prática no sentido de trazer benefícios para os seres humanos, essa prática passa a ser grosseiramente imoral.

A prioridade da medicina é salvar vidas humanas e não tirá-las…

É esse o tipo de debate moral e legal simplista que escuto dos cientistas. Se um cientista disser que não devemos utilizar um ser humano — e a propósito, eu posso concordar completamente com ele — então eu poderia dizer “certo, então me explique por quê”. E raramente encontro cientistas que sequer comecem a argumentar racionalmente sobre a questão. Os cientistas dizem que não podemos utilizar seres humanos como se isso fosse autoexplicativo – e não é. Eu desafio qualquer cientista, legislador, filósofo ou qualquer pessoa a apresentar qualquer argumento racional para a não utilização de humanos em pesquisas científicas que também não se aplicaria a pelo menos alguns animais não humanos. Não existe uma linha ética dividindo seres humanos e os outros animais.

Sob a perspectiva legal o que é mais importante: salvar vidas humanas ou dos outros animais?

Depende. Não há uma resposta geral, é preciso analisar quais são as especificidades da situação. Com certeza, como ser humano, eu sou favorável aos seres humanos. Mas digamos que eu decida favorecer norte-americanos em vez de brasileiros. Ou pessoas que possuem diploma de Direito em detrimento daquelas que não estudaram. Entende onde quero chegar?

Estamos falando de pesquisas científicas na área da medicina…

Então eu devolvo a pergunta e digo: “E se existisse a hipótese de sequestrar, fazer vivisecção e matar 10 seres humanos para poder salvar 10 milhões de vidas”. Você faria isso? Se você concorda que, cientificamente, a pesquisa biomédica em humanos é a melhor maneira para encontrar cura para doenças humanas, suponhamos que 100 humanos sejam sequestrados por ano para que sejam realizadas pesquisas biomédicas sem o consentimento deles. Nesse cenário hipotético, considere que com isso você poderia encontrar a cura para milhares de doenças salvando a vida de milhões de seres humanos. O que seria mais importante, a vida dessas 100 pessoas ou das milhões que seriam salvas? Quantos animais vamos ter que matar para salvar vidas humanas? Um milhão? Vamos acabar com uma espécie, ou um milhão de espécies, vamos acabar com a vida animal no planeta para salvar uma vida humana? O que quero dizer com esse exagero é que as respostas dos cientistas para essa questão são incrivelmente simplistas e incrivelmente ignorantes como argumentação moral e ética. Só estou tentando dar argumentos que mostram que essas respostas simplistas e irracionais escondem o verdadeiro motivo: a crença de que os outros animais não valem absolutamente nada.

A semelhança genética entre os humanos e alguns animais, como o camundongo, pode chegar a 90%. Isso não seria uma boa margem de segurança para realizar pesquisas em animais?

Quanto mais próximo o animal for do ser humano, mais forte ficam os argumentos éticos e legais contra a sua utilização no laboratório, justamente porque são tão parecidos com a gente. Muitas vezes, depois de um semestre dando aula sobre jurisprudência dos direitos dos animais, eu dou uma prova aos meus alunos. Nessa prova, levantamos a hipótese de que o homem encontrou os últimos sobreviventes dos neandertais. A maioria das pessoas acredita que eles são de uma espécie diferente dos seres humanos. Eu digo “ótimo, encontramos os neandertais, vamos pô-los em uma jaula e agora um cientista fará vivisecção neles, visto que são tão parecidos com os seres humanos, mas não são da mesma espécie”. Então, eu questiono meus alunos sobre os argumentos a favor da condução desses experimentos e os argumentos contrários. É uma pergunta que lanço aos pesquisadores.

Se não formos realizar pesquisas com animais, o que devemos dizer para as pessoas que estão morrendo enquanto esperam a cura de alguma doença?

Pela mesma razão que não deveríamos sequestrar pessoas e escravizá-las, existem muitos animais que são o equivalente funcional dos escravos humanos. Escravos chimpanzés, escravos golfinhos etc. Existe uma diferença ética e legal muito pequena, ou deveria existir, entre utilizar esses animais em pesquisas científicas e a escravidão de humanos. É uma questão ética e legal muito mais complicada do que os cientistas conseguem compreender. Eu gostaria que os cientistas fizessem um teste para validar o modelo de testes com animais. Algo como testar em seres humanos e animais sem necessariamente passar previamente pelos bichos. Até onde sei, não fizeram isso ainda. Se fizessem isso, poderíamos saber com certeza se o que dizem é verdade. Tudo que temos por enquanto é a palavra deles dizendo que esse formato funciona. O que sabemos é que em alguns momentos da história eles funcionaram de fato, em outros tivemos falsos negativos e em outros falsos positivos. Os cientistas não querem usar seres humanos por razões que não são científicas. As razões científicas são as melhores para defender a utilização de seres humanos. Mas não, a argumentação deles é baseada em razões morais, mas a moral deles é do nível de jardim de infância. Eles não conseguem construir nenhum tipo de argumento moral que faça com que os seres humanos sejam sagrados e todos os seres não-humanos não sejam. E isso acontece porque esses argumentos não existem.

O  que o senhor sugere que seja feito agora?

Se ficar claro que é imoral e ilegal o que os cientistas algumas vezes fazem, temos que repensar quem deveria decidir para onde vai o dinheiro dessas pesquisas. Pessoas como juízes e legisladores, mas com profundo conhecimento científico e sem interesse financeiro nos resultados. É uma questão que está evoluindo. Se algum juiz, hoje, for decidir sobre esses problemas, ele provavelmente irá repetir o que os cientistas dizem. A razão pela qual estamos caminhando lentamente para a direção que defendo é que a maioria das pessoas ainda não pensou sobre o assunto. Assim como a luta contra a escravidão humana durou tempo demais, a luta contra a escravidão não humana também irá durar muito tempo e será muito difícil. O dinheiro gasto em pesquisa animal deveria ser direcionado para alternativas que não utilizem animais. Se você gastar, por exemplo, 99% do seu dinheiro em pesquisa animal, então 99% dos resultados virão dessas pesquisas. Eu garanto que se gastarmos 99% do nosso dinheiro em pesquisas que não envolvem animais, nossos resultados virão disso.

A tecnologia que existe está sendo utilizada pelos cientistas. Não é possível usar técnicas que ainda não existem ou não foram bem desenvolvidas.

Os cientistas precisam receber novo treinamento. Existem gerações de cientistas que foram simplesmente treinadas cegamente a fazer pesquisa com animais e eles não sabem mais nada. É preciso começar a treinar as pessoas para o desenvolvimento de alternativas que não utilizem animais na resolução desses problemas. Não estou dizendo que será fácil. Estou dizendo que as pesquisas biomédicas realizadas com animais são válidas em alguns casos, mas em muitos outros não. É por isso que, sob o ponto de vista científico, é loucura não usar seres humanos em pesquisas biomédicas.

Fonte: Veja

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