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MAUS-TRATOS

A marca do chicote: carroceiros seguem nos centros urbanos maltratando animais e infringindo leis de trânsito em Pernambuco

Equinos são maltratados e explorados até a exaustão total

27 de maio de 2024
Adelmo Lucena
7 min. de leitura
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Foto: Marina Torres/Diário de Pernambuco

Era por volta das 17h de um sábado e a Avenida Conselheiro Aguiar, em Boa Viagem (PE), estava com o trânsito parcialmente lento, pessoas impacientes em seus carros, motociclistas fazendo malabarismos para ultrapassar e pessoas tentando cruzar a via fora da faixa de pedestres. Foi quando dois meninos, com idades menores que 15 anos, passaram em alta velocidade com uma charrete, enquanto chicoteavam ainda mais o cavalo, que não parava de correr em meio aos carros.

O resultado desta cena não foi dos melhores, mas poderia ser bem pior. Assim que o sinal fechou em um cruzamento, os meninos não pararam a carroça e acabaram batendo em um carro. O motorista desceu furioso para ver os danos causados enquanto as crianças seguiram caminho, sem pensar em contar o ocorrido para os pais e como o animal tinha ficado.

O cenário se repete todos os dias não somente no Recife, mas em diversas cidades do Brasil, uma vez que as charretes estão arraigadas no trânsito desde que o País foi colonizado. Naquela época, este era um dos meios de transportes mais eficientes para transportar cargas pelas vias terrestres, seja utilizando tração humana ou animal. Em municípios do interior, as carroças são mais utilizadas para retirada de lixos das ruas e deslocamento entre áreas urbanas e rurais.

Não é de hoje que os animais são utilizados de diversas maneiras pelo ser humano, principalmente para a locomoção, mas uma capital como o Recife exige cuidados maiores no trânsito e leis eficientes que garantam a segurança da população e dos animais. Hoje, o município conta com a Lei Municipal nº 17.918 , de 25 de outubro de 2013, que proíbe a “circulação de veículos de tração animal, a condução de animais com cargas e o trânsito montado em todo o Município do Recife”.

A lei ainda veda “a permanência e a circulação das espécies equinas, muares, asininas e bovinas, soltos ou atados por cordas, ou por outros meios, em terrenos particulares, ressalvadas as hipóteses permitidas por lei, em vias pavimentadas ou não, ou em logradouros públicos da cidade do Recife, mesmo que acompanhados dos seus respectivos donos ou responsáveis”.

Mesmo a lei sendo de 2013, ela só foi regulamentada em 2019, com o prazo de dois anos para poder entrar em vigor de forma gradual e, além disso, surgiram decretos que ampliaram o prazo.

O Decreto Municipal nº 32.121 , de 08 de fevereiro de 2019, regulamenta o Programa Gradual de Retirada dos Veículos de Tração Animal no Município do Recife. De acordo com o decreto, o programa tem como “finalidade primordial viabilizar formas de participação, ocupação e convívio dos trabalhadores de VTA na sociedade, promover a criação de programas de capacitação e treinamento para esses profissionais”.

O decreto ainda prevê a facilitação dos carroceiros em outros setores de trabalho por meio de capacitação e treinamento profissional, além de acompanhar os animais que ainda são utilizados para tração até que todos os VTAs sejam retirados das vias públicas da cidade.

Mesmo assim, nem tão cedo a população do Recife vai deixar de ver carroceiros chicoteando cavalos, burros e jegues e infringindo leis de trânsito. Em abril deste ano, o prefeito do Recife, João Campos, assinou o decreto que prorroga por 15 meses a permissão, em caráter excepcional, da utilização de veículos de tração animal. Também foi prorrogado pelo mesmo tempo a medida relativa à capacitação dos condutores de VTAs para obtenção de outras fontes de renda.

Na capital pernambucana, a lei proíbe o uso de veículos de tração animal e prevê punições administrativas para os carroceiros, entre elas a retenção do veículo de tração ou do animal para local seguro que não prejudique o trânsito e a notificação do condutor infrator e a Lavratura do Auto de Infração e Termo de Apreensão referente ao veículo e ao animal.

No dia 23 de abril, agentes da Secretaria-Executiva de Direitos dos Animais (Seda), Guarda Municipal, Centro de Vigilância Ambiental (CVA), CTTU, Controle Urbano realizaram uma operação que resultou na apreensão de cinco charretes e recolhimento de quatro cavalos na Avenida Boa Viagem, na Zona Sul. A operação contou com o apoio da Polícia Militar.

A Secretaria Executiva dos Direitos dos Animais (Seda) informou que até o momento já foram resgatados aproximadamente 370 animais nestas condições, sendo 89 em 2024. Após o resgate, os animais são levados ao CVA e recebem exames, alimentação e cuidados necessários.

Eles ficam no centro de vigilância por 15 dias para que seus tutores possam apresentar documentação comprobatória de tutela. Caso contrário, os animais são colocados para adoção, exigindo que os adotantes possuam área rural fora do município do Recife.

Os infratores estão sujeitos a multa, apreensão do animal e da carroça. Se constatados maus-tratos, o caso é encaminhado à DEPOMA para investigação de possível crime, que pode resultar em reclusão de dois a cinco anos, além de multa.

De acordo com a gestão municipal, a operação é feita em pontos estratégicos da cidade, que não são divulgados previamente para não atrapalhar a ação. A meta é fazer uma abordagem educativa nos tutores para evitar abusos e infrações que levam perigo à população e maus tratos aos animais.

No Recife, os carroceiros têm permissão da prefeitura para circular das 9h às 16h e das 21h às 6h, nas vias coletoras; e das 9h às 17h e das 20h às 6h, nas vias locais.

Chicoteados durante o trabalho

A cena de cavalos ou jegues debilitados sob um forte sol levando uma carroça cheia de entulhos ou várias pessoas em cima não é novidade para muitas pessoas que circulam pelo trânsito do Recife. Além de puxar o peso, o animal sofre em menos de um minuto diversas chicotadas para não parar no meio do caminho.

A dura realidade dos carroceiros impõe ainda mais dificuldade na vida de animais que sofrem maus-tratos diariamente. O resultado não poderia ser outro, os bichos ficam apáticos, desnutridos, fracos, cansados e feridos.

“Normalmente esses animais que são explorados até a sua exaustão, muitas vezes são encontrados arreados, caídos, porque já não aguentam mais não só o peso que são obrigados a carregar, mas também os açoites. Um cavalo, apesar de grande, de ter aquela aparência corpórea grande, é extremamente sensível. Para se ter uma ideia, quando uma mosca pousa na pele do cavalo, ele treme para poder afastar aquela mosca. Então imagina a sensibilidade que ele tem para ser açoitado de forma desumana por esses carroceiros”, explica a protetora de animais Goretti.

As consequências destes maus-tratos sofridos pelos animais são inúmeras e alguns podem chegar até a morte por conta da falta de cuidado com a saúde, uma vez que os carroceiros não costumam levar os bichos em clínicas especializadas, muitas vezes por condições financeiras.

“Os maus tratos mais comuns que esses animais sofrem vêm, principalmente, do peso acima do limite da sua capacidade. Esse peso faz com que as suas costas sejam feridas, muitas vezes os animais têm problema nas patas, muitos problemas nos ossos, problemas também na musculatura, além das feridas que se podem ser vistas”, explica Goretti.

Para a protetora, o caminho para reverter este cenário é o cumprimento da lei já disposta pela Prefeitura do Recife.

“A lei é ampla, dá espaço para que a Prefeitura do Recife tenha ações paralelas para a construção desse novo formato com cursos de formação, com participação nos vários programas que a prefeitura tem. Contrata a mão de obra para as suas ações, para os seus programas de construção, seja nas vias públicas, em creches ou em construção de espaços públicos. Tem como enquadrar os carroceiros nessas novas atividades, até porque eu acredito que é humanamente difícil ainda ter pessoas em cima de uma carroça, que era o transporte utilizado no século 18 e 19”, conclui.

Por meio de nota, a Secretaria Executiva dos Direitos dos Animais, a gestão “vem adotando medidas rigorosas ao identificar o uso irregular de carroças. Os condutores são abordados para uma avaliação das condições de saúde dos animais e verificação de possíveis maus-tratos”.

Fonte: Diário de Pernambuco

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