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LIBERDADE

A Lei Áurea e os direitos animais no Brasil

10 de dezembro de 2024
Letícia Filpi
6 min. de leitura
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Foto: Ilustração | Freepik

No dia 13 de maio de 1888, depois de 300 anos de escravidão humana legalizada no território nacional, é assinada e publicada uma lei que finalmente tornava a hedionda prática ilegal no Brasil. Essa lei, que ficou conhecida como a “Lei Áurea”, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 ipsis literis, ou seja, nos seus termos originais, conforme abaixo transcrito:

“LEI Nº 3.353, DE 13 DE MAIO DE 1888.

Declara extinta a escravidão no Brasil.

A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.

Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém.

O secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comercio e Obras Publicas e interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr.

Dada no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 67º da Independência e do Império.

Princeza Imperial Regente.

RODRIGO AUGUSTO DA SILVA

Este texto não substitui o publicado na CLBR, de 1888. Carta de lei, pela qual Vossa Alteza Imperial manda executar o Decreto da Assembléia Geral, que houve por bem sanccionar, declarando extincta a escravidão no Brazil, como nella se declara.

Para Vossa Alteza Imperial ver.

Chancellaria-mór do Império.- Antonio Ferreira Vianna.

Transitou em 13 de Maio de 1888.- José Júlio de Albuquerque” (grifo nosso)

Assim, tendo sido recepcionada pela Carta Maior, continua vigente no país, protegendo o direito de todos os sujeitos nascidos no Brasil, assim como cidadãos de outras nacionalidades que aqui estejam residindo ou de passagem.

Mas, como ela pode ser aplicada aos direitos animais?

A resposta é simples se vier despida de preconceitos especistas, afinal, a norma acima não estipula expressamente a abolição da escravidão relativa apenas a seres humanos, ela emana um ditado geral, sem especificar espécie, gênero, raça ou qualquer outra característica, de modo que pode ser perfeitamente extendida aos não humanos sencientes, senão, vejamos.

Do dicionário, extraímos o significado da palavra “escravo”:

“escravo adjetivo substantivo masculino

1. 1. que ou aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade de um senhor, a quem pertence como propriedade.

  1. 2. que ou quem está submetido à vontade de outrem, a alguma espécie de poder ou a uma força incontrolável.”

A mesma fonte nos informa o significado de “escravizar”: “escravizar verbo transitivo direto, submeter (alguém) à condição de escravo. “escravizaram o povo local” 2. 2. transitivo direto exercer dominação moral sobre; oprimir.”

Escravidão, por sua vez é uma palavra originada do termo latino “esclavus”, que significa pessoa que é “propriedade de outra” .  Ou seja, depois da Lei Aurea, possuir pessoas e submetê-las à privação da liberdade é ilegal , bem como inconstitucional.

A recepção da Lei Áurea pela CF/88 foi possível porque, no artigo 5º desta, os direitos fundamentais dos cidadãos, dentre eles a vida e a  liberdade  estão garantidos, de modo que uma norma proibindo que pessoas sejam propriedade de outras cabe perfeitamente nos preceitos e ideologias ali registrados como norte do ordenamento jurídico brasileiro.

Mas, os animais podem ser vistos como pessoas ou cidadãos?

Ora, por óbvio que sim , afinal , já esta cientificamente comprovado que esses seres são sencientes, tendo, portanto a capacidade de : pensar, sentir, escolher , além da consciência sobre si mesmos, sobre o mundo que os cerca e sobre o valor de suas vidas e integridade física. A Declaração de Cambridge de 2012, colocou uma pá de cal sobre qualquer dúvida a esse respeito.

Assim sendo, os animais possuem o que é intrínseco a todo sujeito de direitos: INTERESSE. Qualquer criatura que possua interesses próprios legítimos e inatos, como os animais, deve ter esses interesses respeitados e protegidos e é daí que surgem os direitos. Se eu tenho um interesse que nasceu comigo, como permanecer viva e em condições dignas, esse interesse se transforma em um direito dentro da sociedade humana, que deve ser acolhido e respeitado pelos ordenamentos.

Pela Declaração Universal dos Direitos Animais da Unesco, “ Todo animal tem direitos.”

Pessoa é todo ente moral, não importa a sua forma física ou a forma como se comunica, os entes morais podem ser humanos ou não humanos. No âmbito do direito, uma pessoa é todo ente ou organismo susceptível de adquirir direitos e contrair obrigações. No caso dos animais, estes são sujeitos sui generis, como são os nascituros , por exemplo, no sentido de que possuem direitos, mas não são capazes de contrair deveres.

Isso porque os animais não pertencem à sociedade humana, mas foram forçadamente trazidos para dentro desta bolha, portanto, não é de interesse deles as regras referentes às relações humanas, como contratos, direitos políticos, entre outras criações que só aos humanos interessa. Mas os animais possuem direitos que nascem do interesse deles, como a vida digna, a liberdade e a prerrogativa de buscar sua felicidade.

Quanto à questão de serem cidadãos, se essas criaturas vivem nas cidades e são obrigadas a seguir suas regras e politicas, então devem ser consideradas cidadãs e tratadas como tal.

Desse modo, concluindo que animais são pessoas e cidadãos e possuem o direito inato à liberdade, é inexorável que se considere interpretar a Lei Áurea para abraçar as espécies não humanas.

Segundo a Declaração Universal dos Direitos Animais:

“Art. 5º 1. Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie. 2. Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas pelo homem com fins mercantis é contrária a este direito.”

Animais humanos e não humanos são iguais no valor moral. Isso porque, além da senciência, nunca houve na História, comprovação cientifíca, espiritual, filosófica ou transcendental de que algumas espécies foram criadas para beneficio ou conforto de outras. Pelo contrário, Darwin, no famoso livro “A Origem das Espécies” mostrou provas nunca refutadas de que todos nós temos a mesma origem e que a vida foi se diversificando conforme o meio e as necessidades biológicas. Seu livro é prova de que nenhuma espécie é superior às demais e que os seres humanos são apenas uma dentre os bilhões de formas de vida existentes no planeta Terra. Nós não somos nada além de mais uma forma de vida.

Concluindo, se nós, seres humanos, trouxemos, por meio da força bruta, as outras formas de vida para o seio de nosso grupo social, é justo que, ao menos, reconheçamos que todas as tentativas de provar a inferioridade delas caíram por terra, porquanto que todas as teorias de superioridade humana foram sendo derrubadas uma a uma ao longo dos anos por uma infinidade de cientistas e filósofos. E, reconhecendo que não somos superiores aos animais, que tenhamos a dignidade de respeitar seus direitos inatos, aplicando a Lei Aurea e a Constituição Federal para protegê-los da tirania de nossos pares.

Letícia Filpi é diretora jurídica da ONG ANDA – Agência de Notícias de Direitos Animais, advogada ambiental formada pela PUC/SP, com atuação no direito animalista desde 2013. É fundadora e coordenadora do Gaav – Grupo de Advogadas Animalistas Voluntárias.

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