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A imposição da violência

5 de novembro de 2009
19 min. de leitura
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No presente texto, proponho uma análise das relações que se estabelecem entre “mãos limpas” e “matadores”, isto é, entre aqueles que comem “carne” mas não matam o animal do qual ela será extraída, em grande medida, porque não têm coragem para isso, e aqueles que têm a obrigação de fazê-lo ainda que inicialmente também não tivessem “preparo psicológico” requerido para essa tensa empreitada.

1. Introdução

Não discuto aqui a relação entre ‘produção de carne e fome no mundo’ ou entre ‘produção de carne e degradação ambiental’, temáticas assaz pertinentes a serem levadas à cabo e a que temos facilmente acesso por meio de uma série de sites da Internet. Sobre a temática: MITRA, Didi Ananda. Comer carne aumenta a fome no mundo. Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2002/07/31480.shtml>.  MARINHO, Vitor. Pecuária mundial gera mais da metade de todos os gases causadores de efeito estufa. Disponível em: <https://www.anda.jor.br/?p=26696>.

Uma vez que a apresentação de desatenções e desrespeitos aos direitos de seres humanos tende a sensibilizar mais que as discussões acerca dos Direitos Animais, nesse artigo, meu interesse é apontar as condições de exploração humana por trás das condições de exploração animal, para as quais não atentamos e que servem para levar ao reconhecimento de que os dois módulos de exploração não são independentes.  

Em grande número estão os indivíduos que não negam que os animais deveriam ter assegurados determinados direitos (serem protegidos contra maus-tratos, terem mantidos intactos seus habitats, etc.), no entanto, julgam supérfluo travar essa luta quando ainda seres humanos ao redor de todo o mundo sofrem de penúrias e desgraças inimagináveis. Os indivíduos que assim pensam desconsideram a exploração humana e a exploração animal como realidades irmãs. Dizem preocupar-se prioritariamente com seres humanos porque são mais importantes que animais, entretanto desconhecem as reais condições de vida e trabalho a que pessoas humanas se veem obrigadas quando empregadas em abatedouros e açougues, lugares esses que existem apenas na medida em servem para manter os hábitos alimentares das populações que pedem mais e mais “carne” em seu dia-a-dia.

Quem se preocupa com a vida humana (ou diz preocupar-se) não pode se eximir de refletir mais seriamente (e criticar sem condescendência) suas próprias convicções. Vidas humanas e vidas animais são intimamente relacionadas de modo que advogar em prol de umas passa necessariamente pela defesa das demais.

2. A farsa da “carne”

Uma frase conhecida da feminista-vegetariana Carol Adams serve para que iniciemos nosso entendimento. “Alguém mata e corta animais para que eu possa comer os seus cadáveres como carne, torna-se ‘animais são mortos e cortados para serem comidos como carne’ e depois ‘animais cortados como carne’ e, finalmente, ‘animais de corte’ e, portanto ‘carne’. Uma coisa que fazemos aos animais […] torna-se, pelo contrário, uma coisa que pertence à natureza dos animais e assim perdemos inteiramente a consciência do nosso papel.”

Uma discussão madura acerca da “carne” deve passar, necessariamente, pela constatação do processo ativo de enturvação da realidade a que Adams faz referência. Não existem “animais de corte”. Os animais não são intrinsecamente usáveis e consumíveis; nenhum animal nasce para ser comido, ainda menos para ser criado e abatido como se isso fosse nada além da realização da sua finalidade última. O que acontece é o assassínio de animais para que seus corpos sejam cortados e comercializados como pedaços de “carne”. Nos açougues e supermercados não são animais mortos o que se vende e compra, e sim, tão-somente, “carne”. Não se lembra dos animais de cujos corpos a suculenta matéria fora arrancada. Não se fala da vida (dos seres que encarnavam-na), muito menos da morte (do fato e das condições que levaram a esta). O que impera é a farsa da carne: a ilusão (auto ou alter infligida) da “carne aparecida”, “brotada”, como que “caída do céu”.

“Animais em nome e corpo são feitos ausentes como animais para que a carne exista. Se animais estão vivos eles não podem ser carne. Logo, um cadáver substitui o animal vivo e animais se tornam referenciais ausentes. Sem animais não haveria consumo de carne, no entanto eles estão ausentes do ato de comer carne porque eles foram transformados em comida. […] O referencial ausente nos permite esquecer do animal como uma entidade independente […]”.(ADAMS, Carol J. A construção social de corpos comestíveis. In: ______. Ecofeminism and the eating of meat. Hypathia, No. 6, 1991, pp. 134-137. Disponível em: <http://www.vegetarianismo.com.br/sitio/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=2049>. )

Não precisamos ir longe nem nos esforçarmos para apreender a verdade: A “carne”, para existir, foi retirada de um animal que vivia com ela. Era parte do corpo de um animal que foi morto por alguém”. Nesses termos, a ênfase incide, como deve ser, sobre o agente causador e não sobre o resultado supostamente autorrealizável, damos a ver o ato de morte provocada e não mais fomentamos o mito da natureza sacrificial animal (animais justificadamente subservientes aos seres humanos). 

3. Pelas mãos alheias

No mundo real (basta de ingenuidade!), a “carne” não aparece do nada, não cai do céu nem brota da terra, e sim advém dos corpos de animais matados, mortos pelas mãos de alguém. Ninguém come “carne” morta e sim “carne” matada(!). Não se come um animal que morreu de morte natural e sim que foi morto. A morte natural é indício de falência de órgãos vitais ou doença, nesse sentido, o consumo de “carne” oriunda de animais naturalmente mortos não é aconselhado, sendo até mesmo perigoso para a vida humana.

No geral, os “animais de corte” são abatidos por indivíduos para além daqueles que os consomem — é quase óbvio que aqueles que trabalham nas linhas de abate também consumam “carne”, entretanto, nem toda a “carne” produzida por eles vira refeição deles mesmos. Seu trabalho existe na medida em que dá condições para que uma série de indivíduos outros mantenham-se comodamente no consumo. Preferencialmente, os abatedores são desconhecidos, os matadouros distantes e os abates ocorridos não-sabidamente — a  matança discreta.

Os animais para o consumo humano são mortos por alguns encarregados, indivíduos empregados para isso. São pessoas pagas e que dependem disso para viver. Ganham a vida matando. Assumem o ofício de matadores ou açougueiros para fazer o que nem todo mundo faz, o que nem todo mundo quer fazer ou (grande ocorrência) não tem coragem de fazer. Nesse sentido, os “trabalhadores da morte” fazem o que fazem porque há quem não possui a vontade e a necessidade de passar pelos incômodos e dificuldades inerentes ao ato da morte provocada  e também devido aqueles que não possuem a coragem de passar pelos incômodos e dificuldades inerentes ao ato da morte provocada.

Geralmente, as pessoas que consomem “carne” não matam os animais dos quais ela é extraída (a população das cidades é enorme e nelas as casas não contam, nem podem contar, com galinheiros, chiqueiros ou curais nos quintais). Em geral, as pessoas adquirem a sua “carne” de todo dia nos açougues ou supermercados de modo cômodo, rápido e “limpo”, são pessoas de “mãos limpas”, “mãos limpas” do sangue quente, pulsante, sujeitos que não tiveram o trabalho de “sujar” as mãos e não sabem ou nem querem saber o que se passa por detrás das paredes dos abatedouros. “Ah! se as paredes fossem de vidro…”

4. O horror a morte

A maior parte das pessoas que consome “carne” não participa de todas as etapas de que ela depende para existir, adquirindo-a, em vez disso, em açougues ou supermercados. A maioria dessas mesmas pessoas não suporta executar ou sequer acompanhar o processo que leva um animal a “se tornar” “carne”. Esquiva-se, até mesmo, diante de uma simples referência para que se assista algum vídeo que exibe as práticas dentro dos abatedouros e a realidade geral da exploração animal. Muitos vídeos podem ser acessados e assistidos pela Internet mesmo. “Terráqueos” (Earthlings), “A carne é fraca”, “Não matarás”, “Uma verdade mais que inconveniente” (Meat the truth) são alguns dos mais conhecidos do movimento vegano mundial e acessáveis facilmente pelo site Youtube.

Evita-se passar por isso com o intuito de não (re)descobrir a verdade e nega-se, aprioristicamente, todos os argumentos no sentido de ser demovido da ilusão a que se auto-imputa ou da arrogância e do excesso de convicção sobre a “naturalidade” do ato de comer “carne” ou sobre a existência e a legitimidade de uma “lida gentil” e de um “abate humanitário” — a evasão contrarrealista. Nós veganos somos constantemente taxados de “radicais” e “arrogantes”. É comum ouvirmos a crítica de que fazemos além do que deveríamos (“Não come nem um peixinho? Não toma nem leite? Ah não! Você vai me perdoar, mas isso é exagero.”) e nos sentimos melhores que as demais pessoas (“Só porque não come carne se acha!”). Na realidade, somos “radicais” sim, radicalmente contra todo e qualquer tipo de exploração de animais e subjugação desses aos interesses humanos. Somos “radicais” porque em determinados quesitos não há meios-termos: se é ou não se é. Não existe um meio-honesto, ou um meio-ético. Agora, a taxação de que somos “arrogantes” não procede. Talvez sejamos duros e aborrecidos devido nosso senso de contestação aguçado e nossa percepção acerca da gravidade da realidade, isso sim, “arrogante” não. “Arrogante”, “que se acha melhor que os outros” são nossos opostos, quem se alimenta de produtos de origem animal, esses sim são aqueles que se acham melhores que os demais, esses sim se acham a “coroa da Criação/Evolução” a que todo o mundo deve curvar-se. Nós veganos, ao contrário, nos sentimos e sabemos iguais, iguais a todos os seres humanos, iguais a todos os seres animais, iguais em senciência e, por isso, no direito à vida.

O fato de as pessoas não gostarem de saber da verdade (quem dirá ver) é indício seguro de que pela “natureza humana” não é ponto pacífico que devemos comer “carne”. Tendo em vista que o ato de comer “carne” depende de mentiras e omissões que se auto ou alter inflige não é correto falar “comer carne é natural” já que natureza que se mantêm por base em falácias não é natureza, é forjamento. (Leia o artigo “A antinaturalidade do ato de comer carne”. Disponível em: <https://www.anda.jor.br/?p=27367>.)

As pessoas têm horror à morte e, em situações corriqueiras, no comum do cotidiano, não possuem a coragem de matar. “Estado de exceção, medida de exceção!” Sabemos que não podemos prever como reagiremos diante de uma situação extremada em que nossas vidas (ou de algum ente querido) são postas em xeque. A sujeição humana às condições de penúria basta para aflorar sentidos de lastro biológico-institivo que suplantam toda e qualquer esfera da cultura, moralidade ou ética. Com fome, sede, frio, medo, etc. não apenas nossos corpos reagem de modo próprio, nosso estrato psicológico também. As notícias não tão incomuns de mães que se lançam às feras com o fito de salvar seus filhos e de sobreviventes de desastres que se “selvagerizaram” pode servir para levantarmos o debate acerca da humanidade-animalidade do ser humano.

O horror que temos à morte é culturalmente definido, por demais dentro da história e do mundo imediato, daí que podemos dizer “natureza atual e local do homem”: estrato, em alguma medida, comum aos que partilham da mesma contemporaneidade.

Pergunte a si próprio e aos que lhe cercam (a) se possuem a coragem de matar algum animal e de executar todos os passos necessários para seu preparo culinário com o fim de alimentar-se dele. Pergunte, para além disso, (b) se já presenciaram o abate de uma galinha, um porco, uma vaca, etc. e (c) quais as impressões colhidas durante o “evento”. Cada qual, certamente, dirá algo distinto, a depender da educação recebida e da sensibilidade possível de se manifestar, porém podemos especular os resultados. Em grande número estarão as respostas negativas à primeira pergunta (a menos que se cogite uma situação em que a vida esteja em risco, no meio de uma selva, por exemplo) e, com grande probabilidade, aqueles que já assistiram algum abate, dirão do mesmo: “experiência inesquecível de perturbadora”.

5. A sujeição assassina

A “morte provocada” (assassinato) de animais é ato perturbador, para o qual nem todos estão preparados nem precisam adaptar-se. Os consumidores de “carne” e derivados podem passar a vida inteira sem nunca ter ouvido um grito de dor exprimido por um animal durante sua curta e condenada vida.

Longe de nossos domicílios, estão os abatedouros dentro dos quais se dão as mortes velozes e vorazes de uma infinidade de animais que foram desde filhotes destinados a isso: condenados ao status de contêineres de proteínas, negados enquanto entidades em e para-si.

Na atual conjuntura, em que milhões de seres humanos demandam, crescentemente por “carne” em suas refeições diárias, a “produção” dela precisa ser suprida. Milhões de animais são criados em regime intensivo e industrial e abatidos em grande escala todos os dias. A realidade das “fazendinhas felizes” mudou bastante. No Brasil, a pecuária bovina ainda não se intensificou tal como as pecuárias suína e avícola, entretanto, o ritmo de consumo tende progressivamente à pecuária intensiva de gado de corte e leite como já acontece em outros países. (GREIF, Sérgio. Visita ao matadouro. Disponível em: <https://www.anda.jor.br/?p=23073>.)

A morte não acontece do nada. Ela depende de quem a faça, depende de pessoas que tomem a iniciativa de matar. E quem são os sujeitos que isso fazem? Seres humanos a isso sujeitados. Ninguém diz, quando criança, que gostaria de trabalhar em matadouro ou ser açougueiro. Ninguém sonha com isso, na verdade, sequer se comenta a existência de trabalhos assim. Entretanto, apesar do não-desejo e da contra-vontade, muitos acabam indo parar nos abatedouros. E quem são esses? Gente de classes abastadas? Certamente não. Sujam as mãos aqueles que precisam sujar, aqueles que para isso são “destinados” e, deve-se acrescentar, adestrados porque somente após uma “preparação” é que um ser humano pode provocar e lidar com a dor e a morte alheias de modo mecânico e frio e sair das câmaras mortíferas em que trabalham seja lá por quantas horas com determinada integridade psicológica e física — a banalização do mal. A alemã Hannah Arendt (1906-1975) criou a expressão “banalidade do mal” em seu livro “Eichmann em Jerusalém” (1963). Hoje a frase é utilizada com significação universal para descrever o comportamento de alguns personagens históricos que cometeram atos de extrema crueldade e sem nenhuma compaixão para com outros seres humanos, e que em suas vidas pregressas não foram encontrados traços de traumas ou quaisquer desvios de personalidade que justificassem os seus atos. Em resumo: eles eram “pessoas normais”. (Banalidade do mal. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Banalidade_do_Mal>.) Aqui me sirvo dessa expressão para referir aos humanos que executam como que mecanicamente os abates requeridos pela indústria da “carne”. A capacidade humana de cometer a morte contra seres sencientes (seres humanos e seres animais) depende de uma dessensibilização, um “descompassionamento” com que se sujeita a pessoa humana.

Nesse sentido é que os “abolicionistas” (militantes da Libertação Animal, movimento global constante de, basicamente, três componentes: debate filosófico, desenvolvimento legal e ação direta) enunciam a máxima mais que verdadeira: “Exploração animal = exploração humana. Libertação animal = libertação humana”. O ofício de matador ou açougueiro responde, em última análise, por uma sujeição a um trabalho sub-humano. Os empregos em abatedouros, frigoríficos e açougues se dão em condições totalmente insalubres, imersos em um “clima pesado”, uma “atmosfera densa” de odor nauseabundo, sangue, carcaças e sujeira por todo canto, gritos de dor extremada, etc.

Para que uma infinidade de consumidores mantenha-se de “mãos limpas” do sangue de animais, uma série de pessoas humanas se vê obrigada (sem opção) a sujeitar-se ao ofício de matador. A essas pessoas (profissionais da morte) é negado o direito de recusar-se à morte como os consumidores fazem. A elas não é dado o direito de “não querer ver”.

Uma série de seres humanos é sujeitada à naturalização da morte provocada, à naturalização da exploração animal e da exploração humana. Essa é uma sujeição duplamente assassina — obviamente assassina de uma infinidade de vidas animais e, ao mesmo tempo, assassina da “natureza humana”, da compaixão. Lev Tolstoi (1828-1910) escreveu que “Comer carne é simplesmente imoral, já que envolve realizar um ato que é contrário ao sentimento moral: matar. Ao matar, o homem suprime em si mesmo, desnecessariamente, a capacidade espiritual mais elevada, que é a da simpatia e piedade para com as criaturas vivas como ele e ao violar seus próprios sentimentos se torna cruel.”

A tabela e os dados a seguir apresentam a realidade das condições de trabalho daqueles que se sujeitam (são obrigados a se sujeitar) aos abatedouros. Pesquisadores, ligados às Faculdades de Medicina Veterinária, Zootecnia, Saúde Pública e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo, apresentam uma realidade desconhecida dos consumidores de “carne” que promovem a continuidade da mesma. (TAVOLARO, Paula et al. Empowerment como forma de prevenção de problemas de saúde em trabalhadores de abatedouros. Rev Saúde Pública 2007; 41(2):307-12. Disponível em: <http://www.scielosp.org/pdf/rsp/v41n2/5351.pdf>. )
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De acordo com uma série de artigos publicados entre 1984 e 2004, Tavolaro et al apresentam uma descrição bastante larga dos problemas que podem afetar trabalhadores de abatedouros. Apesar de quase exaustiva, imprescindível não negligenciar a realidade.

São citados acidentes com a pistola pneumática (atordoante ante-abate); infecções dos cortes causados por instrumentos afiados ou fragmentos de ossos; epicondilite devido o esforço excessivo nos tendões extensores dos dedos da mão e pulsos; síndromes dos músculos dos ombros devido a carga excessiva;  alta incidência de dor, parestesia (sensações cutâneas subjetivas, por exemplo, frio, calor, formigamento, pressão, etc. que são vivenciadas espontaneamente na ausência de estímulos) e problemas articulares devidos à postura do trabalhador, aos movimentos repetitivos e firmes executados em ciclos curtos e com poucas pausas, principalmente em trabalhadores de mais de 35 anos de idade; lesões de pulso por esforço repetitivo e processos inflamatórios; doenças neurológicas e vasculares afetando os pulsos, doenças osteoarticulares, lesões dos nervos ulnar e radial devido a vibração mecânica; desordens múltiplas em trabalhadoras (fadiga; estresse; mãos, pés e costas cansados; insônia; problemas digestivos e dores de cabeça; frio associado com ciclos menstruais irregulares); transmissão de agentes infecciosos (aerossóis infectantes, responsáveis pela transmissão de tuberculose.); zoonoses (lesões de pele, como antraz e vaccinia; febres, como a brucelose e a causada pela Chlamydia spp); doenças entéricas (salmonelose, campilobacteriose e yersinose) além do risco de infecção aguda; leptospirose e contágio pelo vírus Nipah (contato com grandes volumes de urina); maceração, erosão interdigital e paroníquia devido a alta umidade, a alergia a luvas de borracha, o uso de instrumentos afiados, a presença de fragmentos de ossos e a tendência a não usar luvas de corte; presença comum do vírus da papilomatose; prevalência de verrugas causadas por vírus; alta incidência de problemas psicossomáticos e glioma (tumores do sistema nervoso central); risco elevado de cânceres (de boca, laringe, pulmão e estômago) e risco aumentado de mortalidade por cânceres assim como por ferimentos.

Também são apontados como problemas recorrentes entre trabalhadores de abatedouros o uso de analgésicos e tranqüilizantes e faltas no trabalho como estratégias para lidar com sintomas relacionados com o trabalho. Uma série de problemas sociais também são apontados (tais como alcoolismo, abuso de drogas e comportamento agressivo) intimamente relacionados com a natureza perturbadora do oficio em questão: abate. Tavolaro et al escrevem em seu artigo que “A eutanásia de animais de estimação e animais destinados à alimentação humana pode ter impacto psicológico diferente sobre o trabalhador responsável pela sua morte”.

O filme “Nação Fast Food: uma rede de corrupção” (Fast Food Nation, filme estadunidense de 2006 dirigido por Richard Linklater, baseado no livro homônimo de Eric Schlosser) é referência no sentido de apontar uma série de questões que dizem respeito, sobretudo, às implicações humanas das indústrias de produtos da “carne”. Subjugação humana, exploração do trabalho humano, péssimas condições de vida e trabalho, risco às integridades física e psicológica, risco de morte, prostituição, etc. Tudo isso é abordado de relance na produção cinematográfica estadunidense.

Diante de todo o exposto somos levados a reavaliar a postura de quem diz preocupar-se prioritariamente com o ser humano e consome “carne”. A situação que permite a existência da “carne” demanda uma série de violências, violências essas duplamente impostas, impostas, obviamente, aos seres animais que sofrem e morrem diuturnamente, e impostas, concomitantemente, aos trabalhadores da indústria da “carne”, trabalhadores de um ambiente totalmente insalubre devido sua materialidade (umidade, sujeira, odor, agentes etiológicos, etc.) e de um ofício totalmente insalubre devido sua essencialidade (natureza da função: o abate em si).

6. Concluindo

Não importa quão longe estejam os abatedouros, nem quão desconhecidos sejam quem neles trabalham, há cumplicidade e culpabilidade da parte de quem são os “mandantes do crime”: os que consomem produtos e subprodutos da indústria da “carne”.

Um discurso provocante deve ser aqui reproduzido: “Caso queira um animal para comer, pegue-o e mate-o. Não deixe o trabalho sujo para que outros façam por você! Seja honesto e corajoso. Não deixe a tarefa mais difícil a cargo da ponta mais frágil da sociedade: a população empobrecida que a isso se sujeita para sobreviver. Se você não tem coragem, não force outros a tê-la por você.” Ninguém deveria precisar viver de provocar a morte. Ninguém deveria ser obrigado a esse ofício.

Ao passo em que há os que vivem a vida farta e fácil em faustos e amenidades, que podem dar-se o luxo de alimentar-se com “iguarias finíssimas” eximindo-se da sua produção, há a maciça maioria que sobrevive ligeiramente acima da linha de segurança alimentar. Aqueles exploram de todo modo. Esses são explorados e obrigados a viver de carregar o fardo da manutenção das benesses alheias. No entanto, a verdade anunciada (aquilo que é pregado como verdade) não passa de um discurso mascarador, no sentido de naturalizar o status quo e dar legitimidade e suposta inevitabilidade ao hoje-dado.

O modo de viver que beneficia a uma camada social é pregado como benfazejo geral. “Os ricos fazem tudo pelos pobres, menos descer de suas costas” (Tolstoi). A família, a moral, o trabalho, etc., apanágios da vida natural e correta, fazem nada além de fomentar o sexismo, o racismo, o classismo e o especismo.

A construção de um mundo melhor não se dá primeiro retirando as crianças das ruas, depois acabando com o trabalho assalariado, depois ainda, resolvendo os problemas do meio ambiente e, por último, cuidando dos cachorros abandonados. Somente reconhecendo a multidimensionalidade e a multireferencialidade dos problemas por hora vividos é que se poderá por em execução um projeto sério de enfrentamento aos mesmos.

 

 

Allan Menegassi Zocolotto, Vegano, membro do Grupo Abolicionista pela Libertação Animal (G.A.L.A. Homepage: http://www.veganvix.blogspot.com/), formado em Pedagogia (UFES, 2007) e graduando em Ciências Sociais (UFES). E-mail: [email protected]

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