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CRISE HÍDRICA

A importância de respeitar o ciclo natural da água para alcançar a segurança hídrica

Passados quase dois meses da tragédia no Sul do Brasil, o biólogo especializado em gestão ambiental e professor da Universidade de Brasília, Carlos Saito, explica, em artigo exclusivo para o site G20 Brasil, o ciclo natural da água e sua importância para a preservação de um equilíbrio no meio ambiente.

20 de junho de 2024
Redação G20 Brasil
7 min. de leitura
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Foto: Ilustração | Freepik

As enchentes no estado brasileiro do Rio Grande do Sul em 2024 são consideradas a maior tragédia associada a eventos de ordem meteorológica/climática e de recursos hídricos no Brasil, nem tanto pelo número de mortes, mas mais pela extensão da área afetada, o número de desabrigados, e o custo para reconstrução das cidades e vias. Em meio à dor dos atingidos e o assombro de quem não imaginava uma tragédia dessas como possível, deve-se refletir sobre as origens do desastre, visando evitar sua repetição.

Primeiramente, resgatemos o conceito de segurança hídrica, que corresponde à capacidade de uma população para assegurar o acesso sustentável a quantidades adequadas de água de qualidade aceitável, para sustentar os meios de subsistência, o bem-estar humano e o desenvolvimento socioeconômico; para garantir a proteção contra tanto a poluição quanto os desastres relacionados com a água; e para preservar os ecossistemas, num clima de paz e estabilidade política (ONU-Água, 2013).

Este conceito nos remete à problemática vivida pelos afetados, que tem na busca por água potável um dos principais desafios pós-enchente: acesso à água, em quantidades adequadas de água com a qualidade necessária, e de forma regular e constante, e a custo acessível. Mas também nos remete aos ecossistemas que não foram preservados, ou que agora foram afetados.

As leis ambientais que buscavam assegurar as proteções necessárias com áreas de preservação permanente sempre foram vistas pelo setor econômico como cruéis e impedidoras do desenvolvimento, mas talvez agora se possa entender o motivo de seu estabelecimento.

Outro conceito importante é o de mitigação, entendido como uma ação destinada a reduzir o nível de risco de uma ameaça ou dos cenários visualizados para a mesma, tornando-a menos grave, perigosa ou prejudicial. Esse conceito vem sendo muito usado quando se fala dos impactos das mudanças climáticas, significando prevenir ou reduzir a emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera ou promover o aumento da área das florestas, que podem armazenar o carbono que estaria na atmosfera, na esperança de reduzir os impactos das mudanças climáticas. Esses conceitos nos ajudam a pensar que medidas mitigadoras poderiam ter reduzido a ocorrência do desastre, assegurando a segurança hídrica.

A produção de grãos (base da economia no estado) foi feita em cima da remoção da cobertura vegetal nativa até a beira dos cursos d’água, o que favoreceu as cheias em tempos de chuvas intensas extremas. As árvores conseguem atenuar o impacto das gotas da chuva, fazendo com que cada gota da chuva escorra pelas folhas, galhos, descendo pelo tronco e quando atinge o solo, ainda se infiltre no contato entre o solo e a árvore, e suas raízes. Sem a árvore, a água bate direto no solo e escorre para o rio levando sedimentos, partes do solo, que se depositam no fundo dos rios, diminuindo sua profundidade.

A enxurrada também faz erodir as margens do rio enquanto escorre para dentro do mesmo, aumentando ainda mais os sedimentos que assoreiam o leito do rio. Sem árvores, portanto, a água corre mais depressa para as partes baixas, enchendo os rios, provocando as inundações. As leis ambientais que buscavam assegurar as proteções necessárias com áreas de preservação permanente sempre foram vistas pelo setor econômico como cruéis e impedidoras do desenvolvimento, mas talvez agora se possa entender o motivo de seu estabelecimento.

Já na área urbana, a impermeabilização do solo igualmente contribui para acelerar o ciclo da água. A chuva atinge a superfície concretada e corre rápido para as partes baixas, quer sobre as vias públicas, quer pelas galerias de águas pluviais. Muitas vezes, para agravar o problema, as galerias de águas pluviais vão dar direto nos rios, sem atenuação da força da água dos temporais lançada na rede coletora. Essa água das tubulações bate nas margens do rio no ponto de descarga e aumenta a erosão, levando mais sedimentos para o rio. Os bairros sem condições de infra-estrutura precárias também aumentam o transporte de lama e sedimentos para o rio.

As cidades vêm crescendo de forma desordenada, sem planejamento. Largos espaços verdes com bosques urbanos espalhados pela malha urbana (um em cada bairro no mínimo) podem promover a infiltração da chuva, além de servirem de área de lazer e ponto de encontro comunitário. Eles poderiam inclusive ser construídos num nível mais baixo que a vizinhança e receber a água das chuvas vindas das ruas próximas, de tal forma que inundem nas horas de chuvas torrenciais, dando tempo para promover a infiltração da água, sem que ela vá de imediato produzir cheia dos rios.

Inundações, mudanças climáticas e ação humana

Portanto, esses eventos se devem à forma como usamos a cobertura do solo. Mas teriam relação com as mudanças climáticas? Sim, essas inundações tem relação com as mudanças climáticas, que são igualmente causadas pela humanidade. Já mostramos como as mudanças na forma de uso e cobertura do solo aceleram o ciclo da água. Mas até agora descrevemos apenas uma parte do ciclo, que corresponde à parte desde a queda da água da atmosfera na forma de chuva, até seu escoamento através dos rios para as partes mais baixas da bacia hidrográfica, até alcançar o litoral. Para completar o ciclo, existe a parte que corresponde ao retorno da água para a atmosfera, por meio da evaporação. Quando as temperaturas aumentam (no ar, na água), temos mais evaporação da água. Se o aquecimento global provocado pelos gases de efeito estufa aumentam as temperaturas no planeta, mais evaporação ocorre. E a maior evaporação de rios e oceanos leva mais água para a atmosfera, que retorna na forma de chuvas mais intensas.

É hora de repensarmos como ocupamos o espaço. O meio científico e instituições técnicas nacionais e globais têm muito a contribuir, trazendo orientações para promover um mundo com mais segurança hídrica. Por exemplo, a rede mundial Global Water Partnership (GWP) desenvolveu em 2000 uma plataforma com diferentes ferramentas de apoio à gestão integrada de recursos hídricos: o Toolbox, hoje com tradução para diversas línguas das ferramentas organizadas hierarquicamente, acompanhadas de textos explicativos e de suporte, e estudos de caso (https://iwrmactionhub.org/learn/iwrm-tools).

Além de ouvir a ciência e aprender com a avaliação de experiências, é preciso ouvir os diferentes atores implicados, por meio de processos participativos. Assim, deve-se ver como positiva a iniciativa do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil em organizar a 5ª Conferência Nacional do Meio Ambiente (5ª CNMA), com etapas preparatórias em municípios e estados, e conferências livres, para debater justamente o tema “Emergência Climática: o desafio da transformação ecológica”. É mais uma oportunidade para repensar coletivamente o país e evitar novos desastres. Inclusive, deve-se aproveitar para reavaliar o próprio Plano Nacional de Segurança Hídrica e seu viés prioritário em obras e infra-estrutura, em detrimento dos aspectos ambientais e ecossistêmicos. Ou ainda, o peso dado à política de águas dentro das ações e na própria estrutura governamental.

Mas lembrem-se: a participação social deve ter base na racionalidade científica. O caminho que a água faz é natural, o ciclo da água não muda. Mas o que estamos fazendo é acelerar sua circulação, e o volume que circula em cada fase do ciclo na unidade de tempo. Por isso assistimos aos eventos extremos com maior frequência, com mais intensidade, e com repetições em intervalos de tempo mais curtos. Precisamos, portanto, pensar em estratégias para fazer com que a água cumpra seu ciclo de forma mais lenta, como era no passado. Devemos buscar aprender com a natureza, e não enfrentá-la ou lutar contra ela, e ações bem pensadas de mitigação nos ajudam a buscar um país com mais segurança hídrica.

Fonte: G20 Brasil

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