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ARTIGO

A ignorância nas redes sociais: caso Vovó do TikTok e “seu” Pedrinho

20 de março de 2025
Vitória Nunes
7 min. de leitura
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Foto: Reprodução

Um pouco antes do Carnaval, o Batalhão de Polícia do Meio Ambiente do Ceará, mais especificamente uma equipe de Juazeiro do Norte, resgatou um macaco-prego mantido em cativeiro por uma senhora de 60 anos no interior do Estado, no município de Icó.

Até aí nada muito extraordinário nessa ocorrência quando a gente considera que o nosso grande e querido Brasil ainda abriga, principalmente em suas cidades interioranas, muitas pessoas com o hábito de caçar – para comer e/ou para criar – animais selvagens. A situação fica um pouco mais, vamos dizer assim, “moderna” quando somos obrigados a levar em consideração que a tal senhora, autointitulada “Vovó das Comidas”, era uma influencer no TikTok, plataforma de redes sociais em que ela possui milhares de seguidores justamente por causa do macaco. Sim, por causa do macaco. Ou alguém vai querer me convencer que qualquer senhora do interior do Nordeste pode alcançar 230 mil seguidores simplesmente comendo na frente da câmera?

E aqui eu não posso deixar de enaltecer a grande e triste ironia: quando o conteúdo que levou a tal Vovó ao status de “influencer” envolvia justamente os vídeos dela com um macaco (ilegal – não podemos esquecer), ela estava influenciando as pessoas a quê?

Quem com ferro fere, com ferro será ferido

O que aconteceu após o resgate do animal, se você já não sabe aposto que é capaz de prever: muitas lágrimas derramadas por ela e muitas reações de ora revolta, ora apoio, por parte de seus seguidores. Dentre os comentários feitos num vídeo em que a Vovó aparece se “despedindo” do macaco, aparentemente já numa delegacia da Polícia Civil, eu li:

“Vovó, assim como a capivara voltou para o Agenor, Pedrinho vai voltar pra você.”, “É impressionante como a felicidade dos outros incomoda.”, “Ele era muito bem tratado e criado desde pequeno.”, “Não vai sobreviver na natureza, deve estar morrendo de saudades” e até mesmo “Gente, vamos denunciar o Ibama”.

E aqui eu gostaria de destacar a forma como o sentimento geral das pessoas sobre o macaco é sempre o de que ele foi “levado” ou “tirado” da Vovó e nunca “resgatado” dela – fazendo parecer e criando uma sensação de que a única e exclusiva função e atuação do Ibama é a de interromper relações saudáveis de “amor” (muitas vezes ilusório, antropomorfizado e unilateral) entre pessoas e “seus animais selvagens particulares” – e não combater um crime ambiental.

A autarquia federal Ibama foi criada para regular a proteção da natureza, promover a conservação dos recursos naturais e garantir a sua permanência para as próximas gerações. E isso inclui – mas não só – proteger a fauna do tráfico e da exploração – ações que, comprovadamente, podem colocar as espécies em ameaça de extinção e fazer com que elas desapareçam. Mas esse caso em questão, e outros, como o da capivara, são perigosamente emblemáticos e enunciam o perigo de uma “jurisprudência social” onde o julgamento público é respaldado por, nada mais nada menos, uma criancice. É como um mundo torto onde ao cumprir sua função o Ibama se torna o vilão e ninguém nunca se questiona (ou se importa) de onde o macaco foi, pra começo de conversa, arrancado.

A veracidade dos sentimentos de todos sensibilizados, incluindo o da “Vovó”, pelo macaco não está em discussão e não seria nunca o meu objetivo honrar sua relevância nesta questão, mas chega a ser paradoxal como nós, seres humanos, somos capazes de escolher, ativamente, desconhecer a razão, nos deixando levar único e completamente pela emoção. Para mim, os fins (apego) simplesmente não justificam os meios (manutenção em cativeiro).

Que a verdade seja dita: para Pedrinho ser tão “bem cuidado e amado” por essa pessoa em seu domicílio, a mãe dele muito provavelmente foi cruelmente caçada e morta. E essa separação, encomendada e justificada como uma transação meramente comercial, foi, sem dúvida alguma, traumatizante para ele.

Alguém certamente pagou um preço para adquirir Pedrinho da mão do traficante. Mas qual foi o preço que o próprio animal pagou? Qual é o custo do medo pelo qual Pedrinho passou, ainda bebê, para ser negociado? Mil reais, cinco mil reais, dez mil reais, vinte mil reais? Por quantas mãos e gaiolas ele teve de passar quando ainda era só um filhote para, enfim, receber de presente uma coleira na cintura e se tornar posse de alguém? Qual é o peso, a porcentagem, o débito, o saldo negativo de um filhote retirado da natureza? Qual o tamanho dessa perda para a biodiversidade brasileira? Quanto vale, afinal, uma vida selvagem à venda?

Entendem onde eu estou querendo chegar? É claro que o resgate de Pedrinho não ia ser bonito – a sua própria criação não era. É claro que quem o feriu uma hora ia ser ferido também.

A ignorância é uma benção (?)

O fato de as pessoas ficarem particularmente sensibilizadas com a cena em que “Pedrinho”, um macaco-prego juvenil da espécie Sapajus libidinosus, se recusava a sair do ombro da sua criadora ilegal e entrar numa gaiola de transporte, além de expor o pouco raciocínio lógico-temporal e a pobre inteligência emocional da maioria dos usuários de redes sociais, escancara a ignorância dos brasileiros acerca do simples conceito do que é a fauna selvagem.

Nenhum primata, legal ou não, criado como animal de estimação ou não, jovem ou idoso, vai entrar numa gaiola de forma espontânea a menos que tenha sido condicionado (treinado) para isso. É muito mais comum, aliás, e agora especificamente se tratando de animais vítimas do tráfico, que macacos tenham aversão a esses objetos. É claro que um animal, principalmente de origem ilegal, vai ter trauma de gaiolas. Então a recusa dele em entrar em uma, como se pode ver no vídeo, não pode ser apresentada como uma prova da existência de laços afetivos para com a pessoa que o carregava – qualquer que fosse ela. Não é óbvio?

Além disso, seria cômico se não fosse trágico, a gente pensar que os alimentos que eram dados diariamente para ele não são sequer indicados como saudáveis ou benéficos para a nossa própria saúde humana, quem dirá para o organismo de um animal selvagem. Antes de seu perfil na plataforma TikTok ser tirado do ar, a “Vovó das Comidas”, de nome Avani Cordeiro, podia ser vista dividindo refrigerantes como Coca-Cola, salgados fritos como coxinhas e pastéis, sobremesas lácteas como pudim, pavês e sorvetes e até mesmo pacotes inteiros de maionese. E ainda por cima, compartilhando das mesmas mordidas, pratos, talheres e bocas de garrafa, possibilitando a festa da contaminação cruzada para os microrganismos patógenos causadores de doenças zoonóticas.

Dizem que ignorância é uma benção e eu digo que essa tal benção só recai para o ignorante – não para o ignorado. “Eu quem ensinei Pedrinho a comer”, a Vovó afirma em um de seus vídeos. E eu não consigo não pensar em qual seria a reação das pessoas se o mesmo tipo de conteúdo estivesse sendo feito com animais domésticos, como um cachorro. As pessoas não sentiriam ojeriza, estranhamento, preocupação? Por que, então, que justamente com um animal como um macaco elas acham ok?

Mentira tem perna curta

O único criadouro legalizado no Brasil para reproduzir e comercializar macacos-prego como pet (que não custam menos de 70 mil reais) se chama Criadouro Aves do Paraíso/Paraíso dos Macacos e fica em Xanxerê (SC). No momento, está embargado, mas os macacos-prego que eles reproduzem em cativeiro são Sapajus nigritus, uma espécie com a pelagem do corpo uniformemente mais escura, quase sempre preta. Ou seja, e por fim, não sendo provenientes de lá e/ou nem sequer da mesma espécie, todos os outros macacos expostos nas redes sociais como pet hoje são ilegais – e este é o aviso.

Um animal ilegal que era diariamente exposto para milhares de pessoas na internet enquanto era continuamente intoxicado por alimentos ultra processados foi apreendido e esta é a história.

A maioria dos primatas apreendidos/resgatados são perfeitamente capazes (e imensamente merecedores) de serem reabilitados e inseridos em um grupo social. Especialmente os indivíduos mais jovens e saudáveis têm enormes chances de sobreviver na natureza quando reintroduzidos – essa é a realidade.

E eu já escrevi isso em outro texto, mas irei repetir:

Ninguém é tutor (ou vovó) de um animal selvagem. A única possível “devolução” de um animal silvestre é à natureza – e esta é verdade que o TikTok, por mais que não queira, tem que aceitar.

Fonte: Fauna News

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