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EM MEMÓRIA

A história de quando centenas de gatos viviam no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo

Durante décadas, centenas de gatinhos lutaram por sobrevivência no coração da capital paulista. Entre abandono, abusos e uma câmara de gás clandestina, a história revela um capítulo sombrio da relação da cidade com seus animais.

27 de maio de 2025
Douglas Nascimento
6 min. de leitura
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Jovem observa os gatos da praça Ramos de Azevedo no início da década de 1960. Foto: Reprodução

Você provavelmente já ouviu falar em algum momento do parque do gato ou mesmo da favela do gato, um local outrora insalubre que agora possui um conjunto de habitação social junto à marginal do rio Tietê, no bairro do Bom Retiro. Mas já parou para pensar a origem desse nome? Para entender como esse nome surgiu temos que voltar ao final da década de 1950 para o centro histórico de São Paulo, onde naquele momento surgiu ao mesmo tempo uma atração turística involuntária e um problema para o município: a Praça dos Gatos.

Esse local é bem conhecido do paulistano. Trata-se da parte inferior da Praça Ramos de Azevedo, onde se encontra a fonte dos desejos e outros monumentos. Não se sabe com exatidão quando o local se transformou em “Praça dos Gatos”, contudo pesquisando em jornais antigos é possível encontrar notícias sobre bandos de gatos vivendo por lá em 1957. Foi quando o local que se transformou em área de descarte de filhotes que seus donos julgavam indesejados, em uma época que castração gratuita e direto animal eram praticamente inexistentes.

Com isso em 1961 a praça já estava tomada por gatos, que habitavam ali na casa de centenas, uma vez que se reproduziam sem controle. Não era um cenário romântico de se ver, com gatos frequentemente atropelados no trânsito agitado do Vale do Anhangabaú ou mesmo no próprio viaduto do Chá, quando se aventuravam lá para cima em busca de alimento. Outros morriam de doenças e até mesmo de fome, em uma época que ração animal era rara.

Proteção aos gatos

Na início da década de 1960 uma idosa começou sozinha a cuidar diariamente das centenas de gatos da praça. Era uma mulher de origem alemã chamada Mary Ada Lindsey Gericke, moradora de Higienópolis. Viúva e solitária (seu filho, engenheiro morava em Manaus) cozinhava logo cedo para depois pegar um bonde rumo ao centro para cuidar dos bichanos. Passava boa parte do dia com eles, alimentando-os com uma dieta que consistia de frango, peixe e arroz.

Em 1968 a senhora Gericke e outras amigas que amparavam os gatos ganharam os noticiários ao expulsar da praça, com bolsadas, calouros da faculdade de medicina da USP, que atendendo a ordem de um trote de veteranos organizaram um “safari” para caçar gatos no local, que seriam levados à universidade para serem usados como cobaia. A ação repercutiu mal e foi reprimida pelas cuidadoras, pelo zelador da praça e até pela polícia. Uma das calouras ficou ferida ao ser agredida pelas senhoras que cuidavam dos bichanos. Com o passar dos anos a senhora Gericke faleceu e outras pessoas continuaram sua missão.

O fim da praça dos gatos

Na década de 1980 o local era tão saturado de gatos que o então prefeito de São Paulo, Mário Covas, foi aconselhado a resolver a questão definitivamente por assessores e vereadores. Apesar disso parte da opinião pública achava que os gatos deveriam permanecer ali pois eram uma atração turística. Alguns comparavam os gatos da Praça Ramos de Azevedo aos esquilos do Central Park, em Nova York.

Gato na fonte dos desejos, na então chamada praça dos gatos no Vale do Anhangabaú. Foto; Reprodução

Foi quando Covas conheceu a atriz aposentada Jane Hegenberg, nome artístico de Eugênia Schaffman Hegenberg, que tal qual Ada Gericke décadas antes, igualmente nutria um amor incondicional pelos gatos. Ela comprava comida, remédios, pagava veterinário quando a UIPA não podia ir e tentava arrumar lares para os bichanos.

O prefeito então explicou que era preciso revitalizar a Praça Ramos de Azevedo e retirar os animais dali, nem mesmo pássaros ficavam por lá pois os gatos os matavam. Seriam plantadas novas árvores, floreiras e não poderia começar a obra com os mais de 300 gatos que se estimava ter na praça. Para resolver a questão Mário Covas cedeu uma área ociosa no Bom Retiro, junto à marginal do Rio Tietê, para onde os animais foram transferidos. Era o fim da Praça dos Gatos e o início do Parque do Gato.

Rumo ao Bom Retiro

No novo local Eugênia Schaffman Hegenberg juntou-se a voluntários e funcionários para cuidar dos gatos e posteriormente até cães. Alimentar cerca 800 animais não era fácil, muito menos barato. Em reportagem da época a cuidadora estimou gastar 2 milhões de cruzeiros com alimentação, fora medicamentos e salários para funcionários que ficavam no local. Tudo isso segundo pessoas que conheceram Hegenberg saia do próprio bolso da atriz aposentada.

Dois acontecimentos, porém, fariam a coisa desandar. Em 1992 a prefeitura de São Paulo solicitou a devolução do local, pois a cessão tinha sido apenas “de boca” e Erundina pretendia criar no local uma praça e conjuntos habitacionais. Entretanto nada iria se comparar ao escândalo que surgiria a seguir.

O parque dos horrores

Uma denúncia terrível abalava a cidade nos primeiros dias de fevereiro de 1993. Uma equipe de televisão do SBT, com o jornal Aqui Agora, chega ao local para averiguar a denúncia de uma funcionária do parque dos gatos. O local havia se transformado em um campo de extermínio de gatos saudáveis em uma tentativa, segundo denunciantes, de diminuir a população felina e, consequentemente, os gastos.

Foto: Reprodução

O caso tomou grandes proporções e a polícia passou a investigar o caso. Logo também surgiram outras denúncias, como de uma mulher que deixou seus gatos para serem hospedados durante uma viagem e desapareceram. A denunciante e uma funcionária apresentaram à imprensa e a polícia fotos da câmara de gás com diversos animais mortos.

A investigação apurou que gatos, doentes e sadios, eram colocados em um tanque de alvenaria e este ligado a um botijão de gás carbônico. O tanque era fechado com uma pesada tampa de madeira e então abria-se a válvula, para em questão de minutos liquidar cerca de 20 ou 30 animais. Colocados em sacos eram descartados no rio Tietê.

A responsável pelo espaço na época chegou a reconhecer a matança de animais, mas garantiu para a imprensa e em depoimento que apenas exterminava animais com doenças contagiosas e atribuiu as denúncias à má fé de uma funcionária que queria prejudicar o trabalho que ela realizava no local. Com o tempo o caso foi esfriando e desapareceu do noticiário.

Anos mais tarde, já sem o abrigo de gatos, o local se transformou em uma favela e posteriormente foi urbanizado, transformando-se em um bonito conjunto de moradia popular. Uma estátua em homenagem aos felinos poderia ser instalada na entrada do conjunto residencial ou nos arredores para que esse fato não fosse esquecido e jamais repetido.

Fonte: São Paulo Antiga

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