A questão do direito dos animais infere-se no contexto amplo da Filosofia da Mente, no qual se discute a cognição animal. Nossos critérios para atribuição de direitos aos animais são predominantemente cognitivos, isto é, baseia-se no fato de eles possuírem ou não uma mente e uma consciência. Na nossa tradição, passa-se a ter direitos quando nos tornamos pessoas e para isso é necessário ter consciência.
Damos tanta importância ao fato de termos uma consciência que até nosso critério de vida e de morte baseia-se na ideia de morte cerebral. Estamos mortos quando o cérebro não funciona mais, quando na há mais nenhum sinal neural que poderia ser indício de uma consciência.
Pessoas são consciências. E só pessoas podem ter direitos. É por isso, que desta perspectiva, problemas como o aborto tornam-se questões legais, morais e até bioéticas. Serão os fetos pessoas? Será que podemos considerá-los como portadores de direitos por serem potencialmente conscientes? Ou será que, da mesma maneira como definimos morte por critérios cerebrais, poderíamos abortá-los pelo fato de neles não haver nada que denote a existência de uma consciência?
A questão é saber se esse critério é baseado na consciência – que demarca vida e morte, pessoas e fetos, e que demarcaria também pessoas e animais – é correto e seguro. Penso que o uso seguro desse critério implica em estarmos de posse se uma solução para o problema filosófico das outras mentes. Esse tem sido um dos problemas mais difíceis da Filosofia da Mente: como posso saber se alguém, além de mim, tem uma mente semelhante à minha? Como posso saber se um robô, que se comporta igual a mim, tem uma mente? Precisamos saber se é possível atribuir mente e consciência a outros, ou seja, saber se elas têm para poder considerá-las pessoas; e, num passo seguinte, atribuir-lhes direitos. No caso dos direitos dos animais, ocorre o inverso: precisamos demonstrar que eles não têm uma mente e uma consciência se quisermos negá-los.
O curioso é que o problema das outras mentes não está resolvido, mas, certamente, não podemos depender de sua solução para atribuirmos consciência a outros seres. Resolver primeiro o problemas das outras mentes para atribuirmos consciência com segurança e daí derivar direitos parece ser um percurso impossível. Nesse caso, o critério da consciência torna-se inverificável. Nunca terei certeza se alguém além de mim tem consciência.
Na verdade, nunca pensamos em utilizar o critério da consciência para atribuir direitos a outros seres humanos. E, por isso, não deveríamos aplicá-lo tampouco aos animais. Nossa percepção dos direitos do outro não nos é dada de forma cognitiva. É por isso que não conseguimos desligar os tubos de uma pessoal em coma no hospital, embora saibamos que ela não tem nenhuma chance de sobreviver. Nossa dúvida moral persiste, apesar do fato de sabermos que ali já não há mais consciência. Essa persistência se deve ao fato de que nossa interação originária com o outro é predominantemente moral e não cognitiva. É por isso que só o conhecimento da inexistência de uma consciência da pessoa em coma não nos deixa confortáveis para negar-lhe o direito a vida, mesmo ela estando em estado vegetativo.
No caso dos animais essa interação se dá através da nossa comunicação emocional com eles, algo básico que não parece em nada se assemelhar a uma atribuição de consciência. Os critérios moral e emocional precedem o critério cognitivo de atribuição de consciência. E esses critérios deveriam também prevalecer na discussão dos direitos animais. Critérios cognitivos, como a da consciência, que historicamente aparecem na Religião, na Filosofia e na Bioética tampouco deveriam ser utilizados nessa discussão.
Não é fazendo uma defesa da existência de uma consciência animal semelhante a nossa que resgataremos os direitos dessas criaturas. Pouco importa se eles são estúpidos ou não. Provavelmente, eles têm uma consciência muito diferente da nossa. Tomar a consciência humana como padrão universal de mente tem resultado num processo de antropomorfização de animais, que cada vez mais vemos ocorrer nas nossas sociedades, nas quais cães já têm até capas de chuva.
As bases teóricas da exclusão dos animais do mundo humano na época moderna remontam a Descartes, para quem havia uma descontinuidade intransponível entre o mundo humano e o mundo animal. Para ele, os animais eram máquinas biológicas, seres mecânicos sem consciência. O imaginário cartesiano perdura inconscientemente, ou ideologicamente, até hoje. Esse senso comum cartesiano continua a legitimar que comamos carne, que se realizem experimentos com animais e até mesmo tratá-los impiedosamente sem expectativa de punição e nem sequer arrependimento.
Mas terá sido Descartes mais uma vez o grande vilão? Se vasculharmos seus textos verificaremos que não há uma linha sequer, na sua obra, que atente contra o direito dos animais. Seu adversário, Montaigne, não se preocupou com o funcionamento dos animais, mas justificou sua crítica ao especiocentrismo, limitando-se ao discurso retórico.
Na Idade Média, animais domésticos eram julgados por seus crimes. Um cão que mordesse seu dono poderia ser levado ao tribunal e ser condenado à forca. Isso era um claro sinal de que naquela época se atribuía consciência aos animais e de que eles deveriam ter responsabilidades e direitos.
Isso seria, hoje em dia, uma caricatura dos direitos dos animais. Mas nos países desenvolvidos, restringe-se cada vez mais a vivissecção, a experimentação irrestrita com animais, e cada vez mais se difunde o veganismo. O abate em larga escala deverá desaparecer nas próximas décadas, quando as técnicas de clonagem forem aperfeiçoadas e barateadas. A partir de uma única matriz serão produzidas somente partes de animais. Haverá bife para todos e algumas de nossas dificuldades morais em relação aos animais desaparecerão.
Mas o barateamento da clonagem ainda demorará muito. Essa será uma grande dificuldade para o terceiro mundo onde ainda se justifica o descuido e maus-tratos de animais por uma suposta prioridade de resgatar os humanos, como se não fossemos parte do mesmo ecossistema.
João de Fernandes Teixeira,é Ph.D. pela University of Essex (Inglatera) e se pós-doutorou com Daniel Dennett nos Estados Unidos. É professoor titular na Universidade Federal de São Carlos. Ele mantém um site sobre Filosofa da Mente
Fonte: Revista CIÊNCIA & VIDA FILOSOFIA