Terminado o Carnaval, época essa em que parece que pular e suar faz o brasileiro mais brasileiro – e que a concessão da Rede Globo parece orquestrar um pouco mais a vida das pessoas –, começa o temor/tremor pelo período da Farra do Boi, especialmente no litoral de Santa Catarina, culminando em uma data chamada de, vejam só, ‘Sexta-feira Santa’. Segundo os caras-de-pau que ainda defendem publicamente essa prática, é apenas uma tradição – palavra bastante elástica, que abrange muita coisa.
Tradição é aquilo que mantém o miserável temente ao coronelismo no Nordeste, tradição é o que anualmente mata ou cega alguns jovens que passaram no vestibular, graças ao ‘trote’, tradição é o que obriga muita gente a começar sua vida sexual sob efeito do álcool e com uma prostituta, tradição é o que explica a violência doméstica, pais que surram os filhos, colegas de escola que atormentam os meninos menores, a necessidade de ser macho a partir de automóvel, cerveja, cigarro e tatuagem tribal no ombro. Tradição é o que perpetua o machismo, o sexismo, o racismo, o especismo.
Com direito a discursos de prefeitos e vereadores picaretas, aplausos da massa ignara que se ilude com qualquer brilho ou imagem de santa que chora, que vota sempre no pior, que luta para perpetuar crenças vindas do outro lado do mundo, que gasta o salário em produtos que espelham a realidade vista na televisão, que corta o cabelo, veste-se, vive e finge amar conforme o modelo. Que chora ouvindo o hino nacional, mas na primeira oportunidade vai sonegar imposto, estacionar em local proibido ou ‘pagar uma cervejinha’ para se livrar de problemas. Erguem-se tradições tal como cercas de arame para a pecuária. Com a diferença de que o gado está ali à força.
Incapazes de qualquer reflexão sobre a própria vida, os farristas – que jamais leram um livro sobre os Açores ou sabem dizer o porquê do simbolismo do ato, contentam-se em brincar de gato e rato com as autoridades, agora que a coisa está apertando, e extravasar um pouco da raiva de si e de suas próprias vidas sobre um boi oferecido por algum político/empresário/picareta/todas as alternativas anteriores. Naquele momento, estão todos embalados pela euforia do álcool e da ação em grupo – claro, pois se você dança sozinho na rua, você é louco, mas se dança em grupo, é Carnaval. O boi é quase coadjuvante de grupos de autômatos humanos que vão ter um pouco de tempero na vida se enfrentarem um cordão policial, se jogarem pedras na viatura, se capricharem na tortura a um animal senciente, e se virem a si mesmos no noticiário da TV no dia seguinte. Semelhante às crianças que tocam a campainha e saem correndo.
Mas quem conhece História um pouco além do que foi obrigado a aprender na escola, sabe que as tradições mudam conforme o tempo passa. Cai o Império Romano, morrem ditadores onipotentes, legaliza-se o que era clandestino, proíbe-se o que era sacrossanto, ‘o que é moda não incomoda’, e segue o baile.
Pois, no futuro, espero ainda ver uma sangrenta tradição religiosa/folclórica açoriana no litoral catarinense, com grande participação popular, e no mesmo esquema de todos esses anos, com vista grossa de algumas autoridades, aval de parte da polícia e bênção do padre. Sim, terá animais como atração.
O nome? ‘A Desforra do Boi’.