A tragédia das cerca de 3.000 vacas uruguaias que ficaram à deriva no navio Spiridon II, de bandeira oriunda do Togo, expõe não só a insensibilidade dos empresários que ganham dinheiro exportando indivíduos vivos, mas, também, o despreparo e a falta de profissionalismo de todos os envolvidos, incluindo os governos que são coniventes com essa barbárie.
Não é novidade dizer que transportar animais a longas distâncias com fim de vendê-los como se fossem coisas inanimadas é uma logística absurda. Afinal, organismos vivos, precisam se alimentar, urinar, defecar, caminhar e , ainda, possuem complexas características psicológicas.
Ignorando tudo isso, empresários e governos, forçando ao extremo a lógica da natureza, agem como se vacas, novilhos, carneiros, porcos, galinhas e outras espécies dotadas de inteligência e sensibilidade fossem objetos insensíveis. Tentando inventar uma realidade que jamais existirá, os responsáveis por essa logística insana negam o óbvio, mentem e manipulam os fatos na crença de que isso reduzirá os animais a meras coisas do comércio. Mas nenhuma mentira tem o poder de atropelar a natureza dos fatos, jamais será condizente com a realidade exportar indivíduos vivos e, ao mesmo tempo, garantir-lhes bem estar. Para agir de modo tão desconexo, os envolvidos tomam decisões absolutamente antiprofissionais e irresponsáveis, como impedir um navio cheio de fêmeas grávidas de atracar.
Como reflexo desse comportamento, a explicação dos governos uruguaio e turco, bem como dos empresários responsáveis se pauta em uma retórica absolutamente esquizofrênica, sem qualquer conexão com a realidade. Segundo documento publicado pelo governo do Uruguai, as vacas ”estavam em bom estado de saúde” depois de semanas encerradas, prenhes, em um navio-sucata sem ventilação, respirando amônia, sem alimentação e hidratação suficientes, sem poder se mexer devido à falta de espaço, muitas parindo no meio das fezes e urina que se acumulavam às toneladas. Com o tempo, as que morriam foram ficando no meio das vacas vivas, o que gerou mais fedor, terror psicológico, acúmulo de moscas, larvas e outros parasitas. Imaginem semanas nesse cenário infernal. Mas os responsáveis emitiram uma nota dizendo que as que restavam vivas, estavam “em bom estado de saúde”.
Como se o escárnio e a loucura expressos nesse texto não fossem suficientes, a nota ainda diz o seguinte: “que os animais embarcados passaram pelos procedimentos habituais de exportação, que incluem, entre outros, vacinação, inspeção sanitária, documentação em dia”. Nenhuma das normas diz respeito ao bem-estar das vacas. Nenhuma linha se refere à esses animais como entes dotados de necessidades físicas e psicológicas. Mas os governos turco e uruguaio, bem como os empresários estão tranquilos, blindados do sentimento de vergonha e remorso por submeter vacas prenhes a tormentos que só objetos inanimados suportariam, porque, manipuladores, acreditam nas próprias mentiras. É a velha tática de desqualificar o escravizado para justificar a escravidão. A nota publicada faz corar qualquer pessoa minimamente inteligente.
Ao final, colocam um tópico com o titulo: “Prioridade em bem-estar animal”, o qual destaca apenas preocupações sanitárias com a embarcação. O bem-estar animal, para os responsáveis, é tão somente manter as questões sanitárias dentro dos padrões. Além, de não alcançarem nem mesmo esse objetivo, não há uma linha que mencione o terror físico e psicológico que eles impuseram a fêmeas grávidas, bem como os bebês que nasceram nesse cenário dantesco.
O governo turco, por sua vez, desconsiderou por completo as condições deploráveis em que os animais estavam, piorando ainda mais a situação ao negar que a embarcação atracasse. Por questões de brincagem dos animais, o navio ficou 3 meses à deriva e atitude alguma foi tomada para que as vacas fossem poupadas. Explicitamente, a preocupação era apenas com o lucro dos envolvidos e com as questões de saúde humana. Em nenhum momento, se considerou um plano de contingenciamento que priorizasse as vacas em caso de entraves burocráticos ou de outra natureza e esse fato é uma afronta aos direitos animais, bem como a todas as normativas internacionais que, parcamente, protegem um bem-estar mínimo dos seres agredidos. Todas as decisões tomadas revelam, pela falta de noção, conduta absolutamente antiprofissional no manejo dos animais.
Se pararmos para refletir que o referencial de uma vaca feliz é a vida na natureza, respirando ar puro, caminhando e pastando em liberdade, trocando afeto com seus pares, pois essa é a origem de todos os bovinos, imaginá-las trancadas em um local imundo, escuro, apertado, longe de suas famílias nos faz ter a noção real da injustiça perpetrada contra esses seres e o vergonhoso despreparo dos atores do caso.
Vacas são seres extremamente amáveis e afetivos, sua natureza é sofisticadamente delicada, com certeza, a brutalidade com que são tratadas não faz parte de seu mundo. A imundície, a violência e a tortura são inerentes aos humanos que as sequestraram de seu ambiente pacifico e as confinaram em um ambiente de horror. Com isso, comprova-se que, nessa história, os irracionais são os seres humanos.
O caso em questão é a prova de que exportar animais vivos é uma irresponsabilidade intolerável, jamais um exportador vai conseguir cumprir a legislação. Jamais as normativas que regulam vão conseguir poupar os animais das brutalidades inerentes a esse transporte, sendo certo que a logística se realiza de forma praticamente amadora e isso se deve à despreocupação dos responsáveis com as vidas transportadas.
Com isso, a conclusão é a de que é impossível a exportação de animais vivos ser uma atividade profissional, responsável, justa e dentro da legislação que reconhece os direitos inatos dos animais à vida, autonomia, liberdade, dignidade e integridade físico-psicológica, portanto, trata-se de uma afronta e deve ser proibida mundialmente, posto que, quem lucra, confia na impunidade e uma sociedade civilizada não pode compactuar com tamanha insensatez.