Quando um rio seca, a tragédia é visível. Suas águas desaparecem, dando lugar a uma paisagem terrosa e estampada com novas ilhas.
Por trás dessa imagem, contudo, uma série de eventos catastróficos começam a acontecer em cadeia, como num efeito dominó.
O caudaloso rio Paraná, que percorre quase 5 mil quilômetros desde sua nascente no Brasil até sua foz no Rio da Prata, está secando. Trata-se do segundo maior rio da América do Sul depois do Amazonas, um que alimenta importantes afluentes, como o Iguaçu, onde ficam as cataratas, e que drena o sul do continente – Paraguai, Argentina, Bolívia e o sul do Brasil. É ali, na fronteira entre Brasil e Paraguai, que fica a Usina Hidrelétrica de Itaipu.
A pior seca em 91 anos no Brasil causou uma diminuição histórica das águas do rio, afetando sua navegabilidade, por onde há exportação agrícola e industrial, e quem depende dele para sobreviver.
Essa reação em cadeia a um só evento ilustra temores do que nos espera no futuro, com a emergência do clima e mais eventos climáticos extremos, como previsto no último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre o Clima da ONU). Por causa da ação humana, o planeta está aquecendo, fato que já vem provocando consequências alarmantes. Na América do Sul, o aumento da seca e da aridez é uma das previsões do grupo de cientistas da ONU.
No caso do Paraná, especialistas apontam o desmatamento descontrolado, a crise do clima e ciclos naturais como causas da seca dos últimos anos. A diferença, diz Oscar Fernandez, professor de Geografia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (campus de Marechal Cândido Rondon), é que a população que habita essa região hoje em dia é muito mais numerosa. “Há 91 anos, quando houve uma seca assim nessa região, a população era muito menor, então o impacto sobre a população também era muito menor.”
Com tanta gente que depende das águas do rio Paraná – alguns de maneira óbvia, outros de forma indireta -, a BBC News Brasil explica nesta reportagem a reação em cadeia causada por sua seca.
A vida dos peixes e a pesca
“Ao sul de Iguaçu, já tem lugares que pessoas estão passando à pé porque o rio está muito raso”, diz Fernandez. E isso afeta diretamente a fauna do rio.
“Com a diminuição da profundidade do rio, o peixe vai perdendo seu habitat, e sua reprodução é afetada. Os peixes têm espaços exclusivos para a desova e espaços para seu desenvolvimento. Todos esses habitats diminuem ou desaparecem com a seca do rio.”
No Brasil, também há registros de que peixes estão sendo afetados. Para guardar água e conseguir suprir a demanda de energia nos próximos meses, o Ministério de Minas e Energia recomendou que algumas usinas do rio Paraná reduzissem sua vazão.
Entre elas, a Porto Primavera, que fica entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. A diminuição de sua vazão, segundo a Companhia Energética de São Paulo (Cesp), foi “parte de uma forma emergencial de mitigar os efeitos da seca nas demais usinas que compõem o sistema”.
Com a redução da vazão, as laterais do rio baixaram e lagoas isoladas se formaram, ameaçando a fauna que vive ali.
Por isso, foi preciso fazer o resgate de peixes. A Cesp diz ter realizado avaliação, rastreio, resgate e transposição de peixes para áreas seguras.
Foram resgatadas cerca de 2 toneladas de peixes nativos, que foram transportados para o leito do rio. Além disso, foram retiradas 2,5 toneladas de peixes mortos. Segundo a Cesp, 90% desses peixes eram de espécies exóticas, da região amazônica, que foram introduzidas na bacia do rio Paraná e são mais sensíveis ao frio.
O uso da hidrovia e a alternativa mais poluente
Uma das principais hidrovias do país, a Tietê-Paraná encerrou os trabalhos em 2021. O motivo? Falta água para viabilizar a navegação.
Pelos 2,4 mil quilômetros de extensão da hidrovia escoam grãos do Centro-Oeste, parte de Rondônia, Tocantins, Minas Gerais e São Paulo. Parte dos produtos seguem em ferrovia ou rodovia para o porto de Santos e saem para exportação – daí a localização da hidrovia ser tão estratégica. O porto de Santos é o maior da América Latina.
Cerca de 3,5 a 4 milhões de toneladas de produtos como milho, soja, cana-de-açúcar e etanol, são transportados por ano por ali, diz o presidente do Sindicato dos Armadores de Navegação Fluvial do Estado de São Paulo (Sindasp), Luizio Rizzo.
A hidrovia já havia ficado paralisada por quase todo 2014 e 2015 também por causa da escassez hídrica. Dessa vez, diz Rizzo, a expectativa é voltar em janeiro.
Segundo ele, a estimativa de produtos que seriam levados pela hidrovia entre agora e dezembro é em torno de 1,5 milhão de toneladas. O impacto econômico, estima ele, é de R$ 3,5 bilhões, considerando perdas com transporte, renda geral dos municípios e dos produtores.
Além disso, o fechamento da hidrovia impacta também seus trabalhadores: ao longo do rio, trabalham os estaleiros de manutenção e de construção naval, além dos marinheiros que viajam nas barcaças, com chefe de máquina, cozinheiro, entre outros. Há 1.500 pessoas empregadas diretamente. E há empresas, diz Rizzo, que já demitiram 90% de seus funcionários.
Outro fechamento como o de 2014-2015 acaba afastando investimentos privados e criando insegurança jurídica, diz ela. Rizzo cita este problema como o mais grave de todos: “Hoje há muitas empresas que querem investir, mas não investem por falta de confiança no modal. As empresas estão recuando com projetos”, diz ele.
O dissabor com o desincentivo ao investimento se acentua porque essa forma de transporte é uma das mais sustentáveis e baratas. Lopes elenca as vantagens de uma hidrovia: apesar de ser a matriz de transporte minoritária no Brasil (só 4% dos grãos são transportados assim), a hidrovia é muito mais sustentável que o transporte rodoviário.
Enquanto o transporte por caminhões produz 100 gramas de Co2 a cada tonelada por quilômetro transportado, na hidrovia são 20 gramas. Além disso, é um transporte mais barato, já que carrega muito mais: uma barcaça pode transportar até 6 mil toneladas, enquanto caminhões carregam de 35 a 40 toneladas. O valor chega a ser 35% do valor do transporte rodoviário.
Ou seja, no caso da Hidrovia Tietê-Paraná, que transporta 10 milhões de toneladas de produtos por ano, são 250 mil viagens de caminhões retiradas por ano das estradas.
“Caminhões produzem externalidades negativas, como acidentes, depreciação da via, altos custos de transporte e poluição”, diz Lopes.
Com a paralisação da hidrovia, diz Lopes, “o produtor rural terá de assumir o custo, reduzindo sua margem de lucro”.
Também entram na conta o embarcador, o transportador, o elo todo, diz ela.
E, como a alternativa rodoviária é mais cara, isso pode chegar até o consumidor. Se os produtos estiverem atendendo o mercado interno, “acaba ficando mais caro também para a sociedade como um todo, para o Brasil”, diz Lopes. “O produto chega mais caro na gôndola de supermercado.”
Rizzo concorda. “Os produtos vão ter que sair de caminhão e de trem, que têm um frete mais caro que a hidrovia. Quando aumenta o frete, isso acaba refletindo em tudo. Na cadeia, sobe o preço da ração, do óleo… e quando esse produtor for comprar insumo, como aumentou o preço do frete, vai encarecer o fertilizante que ele vai comprar. No final da conta, quem paga somos nós. Vai refletir na mesa do consumidor”, diz.
Exportação dos países vizinhos
Apesar de o Brasil sofrer com a seca do rio, são nossos vizinhos que pagam uma conta mais alta.
O Paraguai, por exemplo, exporta a maior parte de sua produção por meio do transporte fluvial. O país utiliza a via do rio Paraguai, que nasce no Brasil, passa pela Bolívia, atravessa o Paraguai e se junta ao rio Paraná. Por meio desse extenso caminho da hidrovia Paraguai-Paraná, o Paraguai leva cargas a portos do Uruguai e da Argentina para exportação.
Pessoas passam por uma barcaça encalhada na margem do Rio Paraguai, afluente do Paraná, pois a falta de chuvas no Brasil, onde o rio nasce, baixou o nível das águas, obrigando os navios de carga a reduzirem a quantidade de grãos que são carregados para exportação, em Ypane, Paraguai 30 de agosto de 2021
A Argentina, maior exportador de farelo de soja do mundo, também sente a crise, já que utiliza o rio Paraná para escoar sua produção pelo porto de Rosário. Como os produtores brasileiros, os argentinos estão tendo de buscar outras rotas para exportar sua carga, aumentando o custo do frete. Além disso, navios já tiveram de cortar a quantidade de carga que estão transportando para poder navegar no rio.
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, declarou em julho um estado de emergência hídrica durante 180 dias em diversas províncias, incluindo a de Buenos Aires.
A crise de energia
Com a pior crise hidrológica desde 1930 e um país que produz a maior parte de sua energia por meio de hidrelétricas (63,2%, segundo dados do ONS), é possível que o Brasil tenha problemas na geração de energia elétrica. Nos últimos sete anos, os reservatórios das usinas no país receberam volume de água inferior à média histórica, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
O ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque fez um pronunciamento em cadeia nacional na semana passada sobre a crise energética. Ele pediu que a população desligasse luzes e aparelhos fora de uso, reduzisse o uso de chuveiros elétricos, aparelhos de ar-condicionado e ferro de passar roupa.
“O período de chuvas na região Sul foi pior que o esperado. Como consequência, o nível dos reservatórios de nossas usinas hidrelétricas das regiões Sudeste e Centro-Oeste sofreram redução maior que a prevista”, declarou.
O temor é que o país não tenha energia elétrica suficiente para atender a demanda nos horários de maior consumo no fim do ano, com risco de apagão.
O rio Paraná entra nessa conta, claro – faz parte da bacia com maior capacidade instalada de geração de energia hidroelétrica no país, por volta de 60%. Além disso, cerca de um terço da população brasileira vive nesta região.
Para Paulo César Cunha, consultor da área de energia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o conjunto de bacias que deságuam na bacia do Paraná é “a mais relevante” do Brasil. “É nosso principal conjunto de rios e barragens, onde ficam os principais sítios de geração de energia.”
Uma seca nessa região, portanto, “é preocupante”.
A seca afeta a geração de energia de duas formas, ele explica: na vazão da água, ou seja, a quantidade de água que passa nas turbinas, e na altura da água do rio, que define a potência de energia que a máquina consegue produzir.
Em um estudo prospectivo de agosto deste ano, o ONS declarou que “os níveis de armazenamento dos reservatórios localizados na bacia do rio Paraná não se recuperaram de forma satisfatória ao longo do período úmido 2020/2021”.
A situação hidrológica da bacia do rio Paraná, que engloba as bacias dos rio Paranaíba, Grande, Tietê e Paranapanema, é “crítica”, e as usinas dessa bacia são “de extrema importância para a operação do SIN (o Sistema Interligado Nacional, ou sistema de produção e transmissão de energia elétrica do Brasil), pois os recursos neles estocados são capazes de garantir energia nos períodos secos, quando não há contribuições significativas das usinas instaladas na região Norte do País”, diz o relatório.
Por isso a diminuição da vazão adotada em algumas usinas, com o objetivo de guardar água para a geração de energia. “Só que isso prejudica os outros usos da água, como a navegação e a irrigação”, diz Cunha.
O relatório da ONS diz que não há expectativas de chuva que proporcionem melhoria nos armazenamentos dos reservatórios até o próximo período chuvoso e que, “considerando a relevância hidroenergética das usinas hidroelétricas localizadas na bacia do rio Paraná (…), a situação hidroenergética desfavorável na qual se encontra a bacia do rio Paraná requer atenção”.
Na perspectiva de médio prazo, avalia Cunha, a situação é “muito ruim”. Os anos seguidos com poucas águas vai fazendo o terreno ficar “impróprio, muito seco”, diz ele. “Até conseguir uma nova situação de água acumulada que permita voltar à normalidade, teria que ter bastante água por bastante tempo.”
Contudo, para ele, até o final de 2021, o país terá condições para gerar energia. “Sempre tem o risco de apagão, e o risco aumentou. Mas 2022 é uma incógnita. Se as chuvas que começarem em novembro forem tão ruins como do ano passado, será preocupante. O que pode salvar 2022 é a chuva do período úmido.”
De qualquer forma, o preço da energia já subiu. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) anunciou na semana passada uma nova modalidade de bandeira tarifária, a “Escassez Hídrica”, com valor de R$ 14,20 /100 kWh, que já entrou em vigor e terá validade até 30 de abril de 2022. O Ministério de Minas e Energia estimou que a nova bandeira gerará aumento de 6,78% na tarifa de luz para os consumidores.
“O preço sobe, os custos de maneira geral sobem, e espera-se que o consumo se reduza”, diz Cunha. “Isso tem interferência no conforto e na produção: surtos de crescimento econômico acabam sendo frustrados porque a energia fica tão cara que as pessoas não conseguem usar adequadamente”, diz ele, citando mais algumas das reações em cadeia à seca nessa região.
Juliana Gragnani, da BBC News Brasil em Londres