Por Lobo Pasolini (da Redação)
Quem costuma ficar acordado até mais tarde e assistir televisão talvez tenha testemunhado recentemente um momento muito perturbador durante a programação de uma das principais emissoras do país.
No dia 8 de junho, a atriz Adriana Birolli, que alcançou fama nacional em 2009 devido à sua participação na novela Viver a Vida da Rede Globo, foi a convidada do entrevistador Jô Soares, que comanda um programa estilo ‘talk show’ nos moldes do americano David Letterman.
Durante a entrevista (assista aqui), Adriana foi instigada por Jô a relembrar seus tempos no escotismo, um fato de sua biografia muito explorado pela atriz em entrevistas, tanto que há pouco tempo ela foi homenageada pelos Escoteiros do Brasil (leia aqui). E foi nesse ponto da entrevista que a conversa se tornou a narrativa de um filme de horror e uma ofensa para qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade e respeito aos animais.
Adriana começou a descrever em detalhes gráficos como ela matava animais em exercícios de sobrevivência como escoteira. No caso, as vítimas eram galinhas e coelhos fornecidos aos escoteiros como as vítimas a serem sacrificadas. A atriz descreveu “com água na boca” como ela rodou uma galinha pelo pescoço e perseguiu uma outra ‘galinha de ovos’. Depois ela conta como um coelhinho defecou enquanto ele a assistia matar seu ‘irmãozinho’.
O agravante foi que a descrição dos episódios de matanças de animais, ocorridos 15 anos atrás, quando a atriz tinha oito anos, foi acompanhada de risadas, comentários sarcásticos e imitações de galinhas feitas por Jô Soares, o que provocou gargalhadas na plateia do programa. É raro testemunhar um momento televisivo que cause tamanho desconforto.
Passado o choque de ouvir esse tipo de relato na televisão, fica a pergunta: embora Adriana não estivesse falando em nome dos escoteiros, ela claramente relatou uma experiência que viveu dentro e por meio do escotismo. Que impacto teria esse tipo de exercício na formação do caráter de uma criança e na sua relação com animais humanos e animais não- humanos?
Antipedagogia e violência
“O costume de matar animais nas atividades de escotismo é uma prática antipedagógica, inócua e que não se justifica eticamente. Basta dizer que, a pretexto simular uma situação de “sobrevivência na selva”, adolescentes são induzidos a perseguir e matar animais domésticos (galinhas, coelhos, porquinhos etc.) com requintes de perversidade. Trata-se de uma situação artificial e desnecessária, que predispõe os jovens à violência, porque lhes ensina a agir friamente em relação aos animais”, diz Laerte Levai, colunista da ANDA, integrante do Ministério Público do Estado de São Paulo e promotor de Justiça em São José dos Campos.
O promotor lembra ainda que propalar ou perfazer publicamente a caça pode caracterizar infração penal do artigo 287 do Código Penal (“apologia de crime”) com pena de três a seis meses de detenção, ou multa, desde que cometida por pessoas maiores de 18 anos.
“Em suma, o escotismo que porventura envolver em suas atividades perseguição, maus-tratos ou abuso a animais, a meu ver, viola o dispositivo constitucional do artigo 225 par. 1º, inciso VII, que justamente veda a submissão de animais à crueldade, assim como o faz o artigo 32 da Lei Ambiental”, diz Laerte. “Tal prática, sempre que permeada pela violência, não se legitima como experiência cultural ou recreativa, nem como tradição, tampouco como aprendizado de vida, ao contrário, torna-se uma ação agressiva que, por desrespeitar e agredir o outro ser, merece ser rechaçada pelas leis e pela sociedade.”
O ponto de vista do Dr. Laerte Levai é compartilhado pelo Dr. Guido Palomba, um dos psiquiatras forenses mais respeitados do país. “Práticas usadas em treinamentos de sobrevivência são condenadas da mesma forma que as experimentações com animais em universidades. Porque existem métodos alternativos e mais efetivos,” ele diz.
Ele acrescenta que submeter uma criança ou adolescente a esse tipo de situação é uma dupla violência, contra a criança e/ou adolescente e contra o animal.
“Isso pode causar traumas e, dependendo do indivíduo, causar danos psicológicos permanentes. Além disso, pais zelosos não exporiam filhos a uma situação de sofrimento ou de violência”, alerta o psiquiatra.
Baden-Powell
Segundo informações na Wikipedia, o escotismo foi fundado pelo militar britânico Lorde Robert Stephenson Smyth Baden-Powell em 1907. A enciclopédia descreve o escotismo como “um movimento mundial, educacional, voluntariado, apartidário, sem fins lucrativos. A sua proposta é o desenvolvimento do jovem, por meio de um sistema de valores que prioriza a honra, baseado na Promessa e na Lei escoteira, e através da prática do trabalho em equipe e da vida ao ar livre, fazer com que o jovem assuma seu próprio crescimento, tornar-se um exemplo de fraternidade, lealdade, altruísmo, responsabilidade, respeito e disciplina”. O website diz também que o primeiro comprometimento de um escoteiro é com Deus.
Uma breve pesquisa da biografia de Baden Powell (1857-1941) revela fatos de sua formação como militar e defensor do imperialismo britânico. Ele ganhou o troféu desportivo “mais desejado de toda a Índia”, o troféu de ‘sangrar o porco’, caça ao javali selvagem, a cavalo, tendo como única arma uma lança curta”, diz a Wikipedia. Em 1887, ele participou da campanha contra os Zulus na África e ordenou a execução de um chefe negro na Rodésia. Baden Powell criou uma reputação assustadora entre os negros da África que ele atacava em nome dos invasores britânicos colonialistas.
Também falou favoravelmente do livro Mein Kampf de Hitler, onde o ditador explicava sua ideologia: “Um livro maravilhoso, com boas ideias sobre educação, saúde, propaganda, organização etc. e ideais que o próprio Hitler não pratica”, ainda segundo a enciclopédia virtual.
Hoje o escotismo está espalhado em 216 países e territórios com cerca de 28 milhões de membros. Segundo a União dos Escoteiros do Brasil (UEB), sua rede de afiliados é de 60 mil pessoas. A organização está presente no país desde 1924.
A Redação da ANDA entrou em contato no dia 14 de junho com a assessoria de imprensa da União dos Escoteiros do Brasil (UEB), mas nenhum representante da organização respondeu às nossas perguntas em relação às declarações da atriz Adriana Birolli na TV e às políticas internas atuais da organização. Mas, segundo informações passadas à ANDA por monitores de uma patrulha de escoteiros, exercícios com técnicas de sobrevivência envolvendo animais foram feitos pelo grupo da Barra Funda (SP) em abril de 2009. Alguns monitores mataram galinhas. O que parece indicar que essa é uma metodologia de treinamento ainda, mesmo que rara, vigente no escotismo.