O que é a amabilidade (praotés) para um grego da antiguidade? Acredito que o mesmo para nós atualmente: o contrário da violência, o antagonismo da dureza e da guerra. Praotés em grego também é mansidão, brandura.
A amabilidade designa a gentileza dos modos, a benevolência que garantimos para com o outro, humano ou não-humano. Em relação aos infortúnios dos vulneráveis, ela manifesta-se aproximando da generosidade ou da bondade. Uma disposição a receber o outro (seja da nossa espécie ou não, seja do mesmo sexo ou não, da mesma etnia ou não) como alguém a quem queremos bem.
Amabilidade é uma coragem sem violência, uma força sem dureza, é a virtude; logo, o contrário da guerra, da crueldade, da brutalidade, da agressividade… Por vezes atravessada de angústia e de sofrimento, noutros momentos, clareada pela alegria e pela gratidão, mas sempre desprovida de ódio, de dureza, e de insensibilidade.
A amabilidade, como toda virtude, é uma força, uma disposição da alma, e essa força é a que vem da tranquilidade. Os gregos usavam a palavra ‘praos’ (dócil, calmo, manso, brando) que reunia os valores que compõe essa amabilidade. Próxima à generosidade e a compaixão, mas não a ponto de confundir-se com elas, podemos dizer que enquanto a generosidade deseja fazer o bem ao outro, a amabilidade se recusa a lhe fazer o mal. Se o compassivo sofre com o sofrimento do outro, o amável se recusa a produzir ou aumentar o estado de sofrência/dorência alheia.
Recusar-se a fazer sofrer, a destruir, a devastar, de um lado; respeitar, proteger e beneficiar, do outro. Para Montaigne, benegnidade aos animais e as árvores. Mas não devemos confundir amabilidade com a caridade, que ordena amar ao próximo como a ti mesmo, pois toda a historia da humanidade já nos ensinou que podemos viver sem caridade, mas sem um mínimo de amabilidade, não. Aristóteles a colocará como uma virtude integral, como meio termo na cólera, entre os extremos que são a irascibilidade e a frouxidão: “as pessoas que se encolerizam por motivos justos e com as pessoas certas, e, além disso, como devem, quando devem e enquanto devem, são dignas de louvor. Estas, então, serão as pessoas amáveis, pois a amabilidade é louvável”.
O status de coisas, produtos, mercadorias dado aos animais não-humanos há séculos por uma Filosofia, Teologia, Direito e Ciências especistas, é motivo mais que justo para encolerizarmos. Tratar seres sencientes como coisas inanimadas é fruto de um preconceito tão absurdo quanto o que submeteu negros aos brancos, e mulheres aos homens; e isso, é motivo para encolerizarmos. Novamente com Aristóteles, “…as pessoas que não se encolerizam com as coisas que devem encolerizá-las são consideradas insensatas, tanto quanto as que não se encolerizam de maneira certa, no momento certo, ou com as pessoas certas; pensa-se, com efeito, que tais pessoas não têm sensibilidade nem sofrem diante de uma ofensa(…)”.
É necessário não confundir – como o fazem os veganofóbicos e os bem-estaristas –, sentimentalismo com ser empático, amável e benevolente. Montaigne, para responder àqueles que riam da simpatia e benevolência que ele demonstrava para com os animais, recorria a argumentos teológicos.
Nos dias atuais, o filósofo estadunidense Tom Regan, deixa claro em sua obra que não se trata de sentimentalismo quando se defende direitos morais para os animais não-humanos, mas do mais puro exercício de raciocínio ético. Cabe a partir dessa leitura, ao educador vegano pontuar para seu público que a luta contra as injustiças praticadas diariamente contra os animais deve ser travada com a mesma intensidade como quando as vítimas são humanas. Regan, no entanto, não nega a paixão por detrás de sua teoria, já que denominou a filosofia como uma disciplinada paixão. A disciplina vem das horas de intensa dedicação solitária aos exercícios filosóficos. “Quanto à paixão”, diz Regan:
“Por vezes, e não raramente. Lágrimas me vêm aos olhos ao ver, ler ou ouvir sobre a condição de desgraça no qual os animais se encontram nas mãos dos humanos. Sua dor, seu sofrimento, sua solidão, sua inocência, sua morte. Cólera. Fúria. Pena. Pesar. Desgosto. A criação inteira geme sob o peso do mal que nós humanos infligimos a essas criaturas mudas e impotentes. São nossos corações, não apenas nossas cabeças, que clamam por um fim. Tudo isso, que exigem de nós que superemos, por eles, os hábitos e forças por detrás da opressão sistemática que sofrem. Todos os grandes movimentos, está escrito, passam por três momentos: ridicularização, debate e adoção. É a realização deste terceiro estagio, adoção, que requer de nós, tanto paixão quanto disciplina, nossos corações e nossas cabeças. O destino dos animais está em nossas mãos (…)”.
No mesmo sentido que Regan fala sobre a paixão, Peter Singer, em sua obra mais conhecida na defesa ética dos animais, Libertação Animal, assim se expressa: “Toda a criação agoniza sob o peso do mal que nós humanos infligimos a esses pobres seres. É nosso coração, não somente as nossas mentes, que clamam para um fim de tudo isso; que demandam que superemos, em nome deles os arraigados hábitos e força que sustentam sua sistemática opressão”.
Muitos educadores veganos acreditam que seu ativismo politico-pedagógico esta no estágio do debate, com a esperança que sua argumentação leve seu interlocutor ao terceiro estágio: a adoção do modo de vida vegano. Mas e quando seu ativismo é numa unidade escolar, e seu público tem de 14 a 18 anos e diante de toda injustiça cometida aos animais (sequestro, confinação, tortura, estupro, mutilação, extermínio) não se sensibiliza, não sofre, ou seja, não se encoleriza, diante dessa ofensa? Pois é isso que o especismo é, uma ofensa. Uma ofensa a nossa racionalidade e a nossa animalidade.
Diante de um público que ainda está no primeiro estágio, o da ridicularização; que é insensível e insensato como diz Aristóteles, talvez a amabilidade, essa paz de espirito como virtude, se apresente como algo fundamental para que o educador vegano não desista de continuar lutando por justiça para além da nossa espécie.
Referências
ARISTÓTELES (1999). Ética a Nicómaco. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. (Ediciónbilingue: griego/castellano).
MONTAIGNE, Michel de (1972).Ensaios. São Paulo: Abril Cultural.
REGAN, Tom (1991). The Case for animal rights. In: BAIRD, R. M. & ROSENBAUM, S. E. Animal Experimentation: the moral issues. Amherst/New York: Prometheus Book. p. 77-88.