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Especismo

28 de junho de 2021
13 min. de leitura
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Este é o primeiro de uma série de textos da ONG Ética Animal em seção dedicada da ANDA

A Ética Animal foi formada para fornecer informações e promover discussões e debates sobre questões da ética animal, e para fornecer referências aos defensores dos animais.

Informações detalhadas sobre os dados a respeito da situação dos animais não humanos, assim como sobre os argumentos para defender os animais, não estão sempre disponíveis, e temos a intenção de fornecê-las a todas pessoas que queiram ajudá-los. Além disso, fazemos trabalhos de divulgação, não com o objetivo de parar formas particulares pelas quais os animais são prejudicados (o que outras organizações já estão abordando), mas de alcançar uma mudança de atitudes em relação ao especismo.

Nosso trabalho lida com a maneira em que os animais não humanos são considerados no dia a dia, e também com como eles são considerados em áreas que afetam atitudes e atividades humanas que são relevantes para os animais. Estas incluem a academia, áreas científicas e a lei. Observamos a maneira pela qual os animais não humanos são impactados por atividades humanas atuais, e como eles podem ser impactados por atividades humanas futuras, planejadas ou não. Isso envolve não apenas as maneiras nas quais é possível prejudicá-los, mas também como é possível ajudá-los mesmo quando a causa da sua situação não é a ação humana.

O campo da ética animal trata de por que devemos levar os animais não humanos em consideração em nossas decisões morais, e as maneiras nas quais devemos fazer isso. Isso tem consequências práticas tremendamente relevantes. Muitas pessoas atualmente têm pouca consideração pelos animais não humanos. Mas, mais frequentemente, as pessoas dão sim alguma consideração aos interesses dos animais, mas ainda têm uma atitude discriminatória em relação a eles. É possível considerar alguém moralmente, mas ainda discriminá-lo de uma maneira que o prejudique. É possível também discriminá-los de maneiras que não os prejudicam de nenhuma forma, como ajudar alguns indivíduos mais que outros, por razões que são injustas. A ética animal aborda essas questões, e é nosso objetivo lidar com elas.

Nosso primeiro post aborda o termo que denomina um tipo de discriminação contra a qual devemos nos opor como a qualquer outra forma de discriminação.

Desejamos a todas e a todos uma boa leitura e traremos novos textos diariamente aqui nesta seção da ANDA.

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Especismo

 

No mundo em que vivemos há muita discriminação, de muitos tipos diferentes. Uma discriminação ocorre quando alguém recebe uma consideração moral menor do que outros, ou é tratado pior do que outros devido a uma razão injustificada1. Há discriminação contra certos seres humanos baseada em seu sexo, cor da pele, orientação sexual, e por muitas outras razões.

 

Discriminação é uma consideração moral diferenciada sem justificativa

Quando damos consideração moral a alguém, isso significa simplesmente que nós levamos em conta a maneira pela qual serão afetados por nossas ações e omissões, atitudes e decisões. A consideração moral não precisa ser aplicada somente a criaturas sencientes (conscientes). Algumas pessoas dão consideração moral a coisas tais como ecossistemas ou espécies, embora geralmente a consideração moral só seja dada a seres conscientes. Podemos dar, e damos, maior ou menor consideração moral a uns seres que a outros. Especismo é dar consideração moral diferente a diferentes seres sencientes devido a razões injustas.

Discriminação e exploração

Aqueles que são discriminados são muitas vezes explorados. É possível discriminar os outros mas ainda assim tratá-los bem. Contudo, é discriminação tratar alguém não tão bem quanto tratamos os outros devido a razões arbitrárias, e portanto injustas, como cor da pele ou sexo.

Especismo é uma forma de discriminação — discriminação contra aqueles e aquelas que não pertencem a certa espécie. Na maioria das sociedades humanas é considerado completamente normal discriminar animais de outras espécies. As maneiras pelas quais essa discriminação ocorre e sua severidade variam de lugar para lugar, e certos animais são tratados de maneira pior em alguns lugares do que em outros. Por exemplo, cães, vacas e golfinhos são considerados de forma muito diferente dependendo da sociedade. Uma coisa que a maioria das sociedades têm em comum é que elas discriminam de maneira muito danosa pelo menos algumas espécies de animais.

A discriminação especista é tão comum que a maioria das pessoas não pensa questioná-la exceto em casos onde o tipo ou o grau de discriminação é incomum. Como resultado, seres humanos exploram animais não humanos ao longo do dia a dia, utilizando-os como recursos. Isso acontece de diversas maneiras. Os animais não humanos são consumidos como comida, utilizados para vestimenta, atormentados e assassinados para entretenimento, explorados para trabalhar, e criados e assassinados para que as partes de seus corpos possam ser utilizadas como matéria-prima de cosméticos e outros produtos de consumo. Eles são, essencialmente, escravos.

Mesmo quando os animais não são explorados, ainda assim são discriminados porque eles não são levados em consideração de maneira séria2. Humanos têm uma variedade de atitudes para com os animais. Existem alguns que não tratam os animais com respeito algum. Uma minoria de pessoas não possui preocupação alguma com a maneira pela qual os animais são tratados e não está preocupada nem mesmo quando os animais são torturados inutilmente. Uma versão menos extrema desse ponto de vista é apresentada por pessoas que se opõem a torturar animais de maneiras incomuns ou meramente por diversão, mas ainda assim não pensam que importe muito que os animais sofram devido à maneira que os humanos os tratam, desde que os humanos se beneficiem disso.

Existem outros que tratam os animais com algum respeito, mas, ainda assim, os discriminam e arbitrariamente os tratam pior porque não são membros da espécie humana. A mesma coisa pode ser vista em atitudes racistas: é possível alguém ser contra a escravidão humana mas, ainda assim, ser racista3.

É geralmente pensado que apenas seres humanos merecem consideração moral plena. Muitas vezes, é considerado aceitável prejudicar um animal se fazê-lo trouxer algum benefício a humanos — não importa o quão pequeno seja o benefício. E muito embora seja considerada uma coisa boa socorrer humanos em necessidade, quando animais não humanos necessitam de ajuda eles muitas vezes são abandonados à própria sorte. Isso acontece em particular no caso dos animais não humanos que vivem na natureza.

Não é necessário que se odeie ou que se queira prejudicar alguém para discriminá-lo, nem é necessário que se tenha um caráter sádico4. A discriminação contra os animais não humanos é simplesmente uma questão de não dar importância aos danos ou benefícios que poderiam ocorrer a eles como consequência de nosso comportamento para com deles, enquanto levaríamos tais danos e benefícios em consideração diante de humanos. Além disso, certos animais são discriminados não em comparação a seres humanos, mas em comparação a outros animais não humanos. Por exemplo, é possível que alguém tenha mais respeito por cães que por porcos, ou por mamíferos que por outros animais, mesmo em situações em que o animal menos respeitado for prejudicado como resultado. Por exemplo, é possível que alguém rejeite o uso de cães e gatos como comida (uma prática aceitável em alguns países) mas aceite o consumo de, digamos, galinhas e peixes5. Isso também é uma forma de discriminação especista, dado que todos os animais sencientes possuem um interesse em não serem prejudicados independentemente da espécie a qual eles pertençam.

Uma forma comum de especismo que muitas vezes passa despercebida é a discriminação contra animais muito pequenos. Em geral, temos uma disposição psicológica a nos importarmos menos com animais pequenos. Muitas pessoas consideram um cavalo muito mais merecedor de consideração do que, por exemplo, um rato, simplesmente devido aos seus tamanhos relativos6. Temos uma tendência para pensar que animais menores são menos conscientes, sendo que isso não é necessariamente assim.

É possível justificar o especismo?

Nos dias atuais, o racismo e o sexismo são ainda defendidos por algumas pessoas. Contudo, muitos de nós os rejeitamos por serem discriminações arbitrárias. A questão é: como podemos nos opor ao racismo e sexismo mas aceitar o especismo7?

Nenhuma das razões oferecidas para defender o especismo pode realmente justificá-lo. Algumas vezes é mantido que podemos discriminar animais não humanos simplesmente porque eles não são humanos. Mas isso é meramente uma circunstância biológica, tal como nascer com um sexo ou outro, ou com esta ou aquela cor da pele. É completamente arbitrário, e não pode justificar a discriminação. Às vezes, é dito que os humanos sentem mais simpatia por outros humanos do que por animais não humanos. Mas essa não é uma razão que justifica a discriminação contra os animais não humanos. Pessoas racistas e xenofóbicas sentem mais simpatia por certos humanos do que por outros. Mas isso não justifica a sua atitude.

Outros alegam que podemos discriminar os outros animais porque suas inteligências não são similares à inteligência humana. Mas isso não leva em conta o fato de muitos humanos não possuírem o mesmo tipo ou grau de inteligência. Crianças pequenas e aqueles que são cognitivamente deficientes, por exemplo, não possuem o que geralmente imaginamos quando pensamos em “inteligência humana”. Felizmente, a maioria das pessoas se opõe à discriminação contra humanos por esses motivos. Mas se a inteligência não pode ser uma razão para justificar tratar alguns humanos pior que os outros, também não pode ser uma razão para justificar tratar os animais não humanos pior que os humanos.

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Quando o que está em questão é respeitar os outros, o que deveríamos levar em conta é sua capacidade para ter experiências positivas e negativas, tais como desfrute, satisfação, e sofrimento. Logo, se os animais não humanos podem experimentar sofrimento e desfrute, nós deveríamos respeitá-los e tentar não prejudicá-los. Negar respeito a eles porque eles não pertencem à nossa espécie, ou porque eles não possuem uma inteligência similar à nossa, é uma discriminação arbitrária. Se somos realmente imparciais rejeitaremos todas as discriminações, incluindo aquelas baseadas em espécie.

Por que a grande maioria dos humanos ou ignora ou defende a discriminação contra os animais não humanos? As razões são simples. Primeiro, fomos ensinados desde a infância a acreditar que os animais de outras espécies são seres inferiores que não merecem muita consideração. Segundo, nos beneficiamos da exploração dos animais não humanos, particularmente em consumir os seus corpos e fluídos como comida. Assim, temos pouco incentivo para desafiar essas crenças. Nossas crenças fazem parecer aceitável explorar os outros animais, e os benefícios que nós obtemos de sua exploração motivam nossas crenças. É conveniente aceitar a opinião recebida de que os outros animais são inferiores e aceitar isso como algo “óbvio”. Mas tal ponto de vista não pode ser justificado.

Nos links a seguir os argumentos contra o especismo brevemente apresentados aqui são explicados em mais detalhes:

Argumentos contra o especismo

O argumento da sobreposição de espécies

O argumento da relevância

O argumento da imparcialidade

Petição de princípio

 

Fonte: Ética Animal


Leituras adicionais

Arneson, R. J. (1999) “What, if anything, renders all humans morally equal”, em Jamieson, D. (ed.) Singer and his critics, Oxford: Blackwell, pp. 103-128.

Caviola, L.; Everett, J. A. & Faber, N. S. (2019) “The moral standing of animals: Towards a psychology of speciesism”, Journal of Personality and Social Psychology, 116, pp. 1011-1029.

Cushing, S. (2003) “Against ‘humanism’: Speciesism, personhood and preference”, Journal of Social Philosophy, 34, pp. 556-571.

DeGrazia, D. (1996) Taking animals seriously: Mental life and moral status, Cambridge: Cambridge University Press.

Faria, C. & Paez, E. (2014) “Anthropocentrism and speciesism: Conceptual and normative issues”, Revista de Bioética y Derecho, 32, pp. 95-103 [acessado em 23 de janeiro de 2016].

Gompertz, L. (1992 [1824]) Moral inquiries on the situation of man and of brutes, London: Open Gate.

Horta, O. (2010) “What is speciesism?”, Journal of Agricultural and Environmental Ethics, 23, pp. 243-266 [acessado em 28 de junho de 2013].

Kaufman, F. (1998) “Speciesism and the argument from misfortune”, Journal of Applied Philosophy, 15, pp. 155-163.

LaFollette, H. & Shanks, N. (1996) “The origin of speciesism”, Philosophy, 71, pp. 41-61.

Persson, I. (1993) “A basis for (interspecies) equality”, em Cavalieri, P. & Singer, P. (eds.) The Great Ape Project, New York: St. Martin’s Press, pp. 183-193.

Pluhar, E. (1996) Beyond prejudice: The moral significance of human and nonhuman animals, Durham: Duke University Press.

Regan, T. (1979) “An examination and defense of one argument concerning animal rights”, Inquiry, 22, pp. 189-219.

Ryder, R. D. (2011) Speciesism, painism and happiness: A morality for the twenty-first century, Exeter: Imprint Academic, pp. 38-61.

Sapontzis, S. F. (1987) Morals, reason, and animals, Philadelphia: Temple University Press.

Sapontzis, S. F. (1990) “The meaning of speciesism and the forms of animal suffering”, Behavioral and Brain Sciences, 13, pp. 35-36.

Singer, P. (2010 [1975]) Libertação animal, São Paolo: Martins.

Vallentyne, P. (2005) “Of mice and men: Equality and animals”, Journal of Ethics, 9, pp. 403-433.

Wilson, S. D. (2005) “The species-norm account of moral status”, Between the Species, 13 (5) [acessado em 27 de agosto de 2012].


Notas

1 Ver Boxill, B. R. (1991) “Equality, discrimination and preferential treatment”, em Singer, P. (ed.) Companion to ethics, Oxford: Blackwell, pp. 333-343; Horta, O. (2010) “Discrimination in terms of moral exclusion”, Theoria: Swedish Journal of Philosophy, 76, pp. 346-364 [acesssado em 15 de fevereiro de 2014]; Lippert-Rasmussen, K. (2006) “Private discrimination: A prioritarian, desert-accommodating account”, San Diego Law Review, 43, pp. 817-856; Lippert-Rasmussen, K. (2007) “Discrimination”, em Ryberg, J. ; Petersen, T. S. & Wolf, C. (eds.) New waves in applied ethics, Basingstoke: Palgrave Macmillan, pp. 51-72; Wasserman, D. (1998) “Discrimination, Concept of”, em Chadwick, R. (ed.) Encyclopedia of applied ethics, San Diego: Academic Press, pp. 805-814.

2 Um exemplo de uma posição que é contrária à exploração animal mas defende o especismo pode ser encontrada neste livro: Zamir, T. (2007) Ethics and the beast: A speciesist argument for animal rights, Princeton: Princeton University Press.

3 Sobre isso, ver Graft, D. (1997) “Against strong speciesism”, Journal of Applied Philosophy, 14, pp. 107-118; Holland, A. J. (1984) “On behalf of moderate speciesism”, Journal of Applied Philosophy, 20, pp. 281-291.

4 Mason, J. (1998) “Misothery”, em Bekoff, M. & Meaney, C. A. (eds.) Encyclopedia of animal rights and animal welfare, Chicago: Fitzroy Dearborn, p. 245.

5 Sobre isso ver Burgess-Jackson, K. (1998) “Doing right by our animal companions”, Journal of Ethics, 2, pp. 159-185.

6 Ver Morton, D. B. (1998) “Sizeism”, in Bekoff, M. & Meaney, C. (eds.) Encyclopedia of animal rights and animal welfare, op. cit.,, p. 318.

7 Uma comparação entre especismo e racismo pode ser encontrada em Patterson, C. (2002) Eternal Treblinka: Our treatment of animals and the Holocaust, New York: Lantern; Sztybel, D. (2006) “Can the treatment of animals be compared to the Holocaust?”, Journal of Agricultural and Environmental Ethics, 11, pp. 97-132. Uma comparação entre a escravidão racista e a escravidão especista pode ser encontrada em Spiegel, M. (1988) The dreaded comparison: Human and animal slavery, London: Heretic Books.

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