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Como indígenas estão vivenciando as mudanças climáticas na Amazônia

9 de junho de 2020
11 min. de leitura
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Pixabay

Chuvas tardias, seca intensa, leitos secos, mais incêndios florestais, menos comida disponível – comunidades indígenas da Amazônia Brasileira sofrem transformações sociais através da mudança climática.

Povos indígenas acreditam que a mudança climática afetou a saúde física: Doenças controladas como sarampo e febre amarela têm inexplicavelmente reaparecido na floresta tropical. Até mesmo o ciclo menstrual das mulheres indígenas está começando em um período diferente.

Os povos indígenas descobriram várias formas de agir e diminuir os danos. Essas abordagens incluem a seleção e o cultivo de sementes mais resistentes à seca e ao calor, investindo em bombeiros da linha de frente e até mesmo um aplicativo que oferece informações sobre variações climáticas.

Na região do Bico do Papagaio, localizada ao norte do estado de Tocantins, Antonio Veríssimo Apinajé relembra sua vida enquanto menino na vila Taquari, na década de 1970. “Chovia sem parar por três ou quatro dias seguidos, de janeiro a junho. Os rios e nascentes se enchiam. A estação chuvosa costumava iniciar em outubro, quando minha família plantava mandioca, milho e arroz. Em junho, a estação seca vinha e durava até setembro.”

Não mais, diz o líder do povo Apinajé. “Existem anos em que as chuvas demoram muito para vir, às vezes só em novembro ou dezembro, até mesmo em janeiro. Só então podemos plantar. Em abril as chuvas já estão parando. Se não temos água, não podemos irrigar [nossas colheitas]. A mandioca está menor, o milho não “incha”. As chuvas diminuíram muito nos últimos anos.”

O líder Apinajé não está sozinho; Povos indígenas brasileiros vêm observando os impactos da mudança climática pela Amazônia e outras regiões, e reportando como esta transformação está afetando suas vidas cotidianas. Muitos dizem que a natureza está manifestando sinais de uma mudança massiva no clima em até 15 anos. E o mais terrível, dizem, é que as coisas parecem estar acelerando recentemente.

A comunidade científica, por meio de satélites e outros equipamentos, está de acordo: estudos recentes mostram que a Amazônia está secando e já alcançou, ou está muito perto de alcançar, um ponto de inflexão do bioma.

Ao menos metade da floresta tropical pode se tornar uma degradada savana nos próximos 50 anos, de acordo com algumas pesquisas, se a mudança climática global, o desmatamento brasileiro e os incêndios na Amazônia não forem reduzidos. E, como os povos indígenas notaram, o aquecimento global está acelerando seu ritmo e pode trazer um colapso ecológico muito mais rapidamente do que se pensava.

“Quando a água está baixa, é o primeiro sinal”, diz Antonio Veríssimo. Isso significa que as chuvas irão se atrasar – um fator que, junto com a seca intensa e prolongada, acaba prejudicando as lavouras e reduzindo a variedade de alimentos disponíveis nas aldeias. Mais uma vez, essa é uma afirmação com a qual cientistas, agricultores e construtores de barragens podem concordar.

Maria Leonice Tupari, chefe da AGIR, a Associação de Guerreiras Indígenas de Rondônia, diz que, em Sete de Setembro, o território indígena onde ela mora, “os rios frequentemente secam, e a água que sobra forma uma espécie de baía onde os peixes tentam sobreviver. Quando as chuvas retornam, o choque [térmico] da água fria da chuva com a água quente do rio, mata os pequenos peixes.

Como se a redução dos recursos naturais não fosse suficiente, Maria Leonice também está preocupada com o reaparecimento de doenças nas aldeias locais. “Doenças que já foram controladas estão voltando, como o sarampo e a febre amarela… Eu acredito que isso está relacionado com o clima, com a destruição da natureza. E então, um vírus veio nos mostrar o quão frágil nós somos, para nos fazer refletir sobres as coisas.”, disse ela, se referindo à chegada da Covid-19 dentro das comunidades indígenas. Na metade de maio o vírus já tinha infectado mais de 500 indígenas no Brasil.

Cientistas também concordam aqui, observando que a invasão por atacado da humanidade da Amazônia e em outras florestas tropicais está aumentando o risco de pandemias em todo o planeta e, também, de febre amarela.

O aquecimento climático pode estar alterando também o corpo das mulheres Kiriri no nordeste do estado da Bahia, que reportaram a situação para o Sinea do Vale, coordenador do meio ambiente do CIR, o Concelho Indígena de Roraima. “As mulheres Kiriri acreditam que o extremo calor está causando tensão pré-menstrual em adolescentes indígenas mais novas.” Neste caso, a Mongabay não pôde localizar nenhuma prova científica, mesmo após uma longa pesquisa bibliográfica. No entanto, um estudo de 2018 descobriu que a poluição do ar pode resultar em “variação do ciclo menstrual,” e é plausível que a fuligem resultante das queimadas da Amazônia – agravadas pela mudança climática – possa estar causando o problema observado, apesar de mais estudos serem necessários.

Mudanças climáticas traz mais incêndios e fumaça afeta vilarejos

A combinação entre calor crescente e clima seco resulta em um maior número de intensas queimadas na Amazônia – ainda mais à medida que grileiros desmatam a floresta tropical, ou os fazendeiro usam a terra para plantio – gerando também impactos negativos nas reservas indígenas, especialmente naquelas localizadas no tão chamado “Arco do Desmatamento”, se estendendo do estado de Rondônia, no oeste do Brasil, até o Pará, ao leste.

O mesmo acontece com Território Indígena Sete de Setembro onde Maria Leonice Tupari mora. É a terra ancestral do povo Saruí Paiter, ao longo da divisa entre os estados de Rondônia e Mato Grosso. “Hoje a reserva é rodeada por fazendas de gado. Os fazendeiros gostam de queimar as faixas de terra para limpar os pastos. Ano passado, qualquer coisinha podia começar um incêndio, de bituca de cigarro até garrafas de vidro (por intensificar os raios solares no mato). Era uma ninhada de caminhões jogados ao longo das rodovias,” servindo como instigadores, ela reporta.

De acordo com a líder das Guerreiras de Rondônia, queimadas deram abertura para outro grave problema em 2019, um dos piores anos em relação ao fogo na Amazônia: “A fumaça das queimadas deixou muitas pessoas doentes, com fortes dores de cabeça, irritação nos olhos e problemas respiratórios. A fumaça era terrível. Especialmente as crianças e os mais velhos precisaram ser levados para hospitais da região, que já estavam lotados com as pessoas da cidade que também foram atingidas.” É cientificamente comprovado que as partículas das queimadas e outras poluições são a maior causa de morte e de doença globalmente, de acordo com a Organização Mundial de Saúde.

Seiscentos quilômetros daí, na ponta do Rio Tocantins , Antonio Apinajé compartilha do mesmo medo: “A gente se preocupa quando tem queimadas na região porque, dependendo da hora do dia e da força do vento, as queimadas podem voar. Nós moramos perto da floresta e da vegetação do Cerrado; é assustador até mesmo pensar sobre isso. A fumaça pesada fica no ar por dois ou três meses”, diz o líder Apinajé.

Para reduzir o dano na Amazônia e na vegetação do Cerrado, a agência ambiental brasileira, IBAMA sob seu Centro de Prevenção e Combate ao Fogo (Prevfogo), contrata povos indígenas durante a temporada de fogo para atuar como bombeiros nas terras onde vivem. “Eles conhecem o território melhor do que ninguém, eles sabem onde a vegetação é mais propensa a queimar, onde as queimadas tendem a iniciar e como se espalha,” explica o diretor da Prevfogo Gabriel Constantino Zacharias.

A iniciativa do IBAMA começou em 2013 com 400 bombeiros indígenas – um terço do número de bombeiros disponíveis na época – e tem crescido ao longo dos anos. Mas, em 2019, sob a administração do Bolsonaro, os números caíram pela primeira vez: havia 750 bombeiros indígenas em campo, 20 a menos que no ano anterior.

“O primeiro ano de administração geralmente envolve restrições de orçamento”, Zacharias sobre a política administrativa de Bolsonaro. Em agosto do ano passado, a Alemanha e a Noruega suspenderam as contribuições para o Fundo da Amazônia devido o aumento do desmatamento no Brasil. Uma parte desses fundos costumava financiar as roupas e as botas dos bombeiros. Entre 2014 e 2018, o fundo investiu US$4 milhões de dólares para as atividades do Prevfogo em nove estados da Amazônia.

Casa de Sementes

Em Tocantins, o povo Apinajé está se adaptando à mudança climática dedicando seu tempo em pesquisar sementes que são mais resistentes à seca, altas temperaturas e períodos de crescimento mais curtos.

“Ao invés de usar arroz, que precisa de cinco a seis meses para amadurecer, nós estamos plantando agora uma variedade de plantas de curta duração que amadurecem em apenas três meses”, diz Antonio Apinajé. “Nós também encontramos uma espécie de mandioca que cresce em sete meses, em comparação com a que a gente plantava antes que, geralmente, precisava de 1 ano.”

A disponibilidade de água influencia equitativamente na escolha do que plantar, ele diz. “Mandioca e feijão não precisam de muita chuva, mas arroz, abóbora, milho e banana precisam. Por isso estamos plantando menos dessas culturas.”

Um pouco mais de um ano atrás, o povo Apinajé – 2 800 indivíduos espalhados entre 42 vilarejos dentro do território indígena que carrega o nome deles – criaram a Casa de Sementes, um banco para armazenar sementes dessas culturas que são mais produtivas e resistentes ao calor. O plano do povo Apinajé é ampliar a variedade da coleção por meio da troca de sementes e conhecimentos com outros povos indígenas, pequenos fazendeiros e famílias afro-brasileiras tradicionais.

A iniciativa vem sendo adaptada em outros estados da Amazônia: em Roraima por exemplo, líderes estão formando uma rede de informações entre várias regiões e territórios indígenas. “O projeto está parado por causa da Covid-19, mas nós vamos reiniciá-lo o mais cedo possível,” disse Sineia do Vale, representante do povo Wapichana do Conselho Indígena de Roraima.

Em agosto passado, o Conselho promoveu a organização de um banco de sementes no Território Indígena Raimundão, no município Alto Alegre. Ele também promoveu o cultivo de resistentes à seca e ao calor como milho, mandioca e sementes de pimenta em dois hectares. Esses são os alimentos mais consumidos pela comunidade local e, se o esforço inicial der certo, as sementes poderão ser distribuídas para outras comunidades.

Entrevistas são conduzidas por mais de 200 Agentes Territoriais e Ambientais Indígenas (ATAIS), levando à publicação do livro titulado Amazad Pana’adinhan – A Percepção da Mudança climática pela Comunidade Indígena – Região da Serra da Lua em Roraima.
Desconsiderado por pesquisadores até recentemente, “o conhecimento ancestral está sendo discutido por cientistas em muitas partes do mundo para ajudar a entender os problemas da mudança climática”, disse o líder Wapichana.

Combatendo fogo com celulares

Uma colaboração entre o conhecimento indígena e científico levou à criação de ferramentas tecnológicas como o Alerta Climático Indígena, desenvolvido pelo IPAM (o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). Esse aplicativo proporciona dados das concentrações de calor, risco de seca e desmatamento, para ajudar povos indígenas a monitorar seu território e regiões próximas. A informação pode ser acessada mesmo quando não há conexão de celular.

Povos indígenas podem inclusive usar o aplicativo para compartilhar alertas sobre queimadas e atividades ilegais em suas terras, incluindo desmatamento ilegal, caça, pesca e extração de madeira.

“De um lado, povos indígenas desempenham um enorme papel na atenuação das alterações climáticas, mas do outro lado, eles vivem diretamente com essas alterações e são, portanto, os mais afetados”, diz Martha Fellows Dourado, pesquisadora do IPAM. “O Alerta Climático surgiu como um instrumento de apoio à gestão territorial dentro dos territórios indígenas no ponto zero – dentro das próprias comunidades”.

O aplicativo está ativo hoje nos estados de Roraima, Maranhão e Mato Grosso, e a meta é que ele esteja disponível e seja utilizado em todas as reservas indígenas demarcadas. Nos próximos meses, o Alerta Climático Indígena terá uma nova regra diante da Pandemia causada pela Covid-19: os usuários serão capazes de acompanhar a propagação do vírus nas cidades e vilarejos.

Através da tecnologia, Leonice Tupari invoca a espiritualidade dos povos da floresta como uma forma de adaptação às mudanças radicais que estão por vir: “Nós precisamos respeitar a natureza e nos conectar com ela. Somos espíritos aqui na terra, encarnados de forma material, conectados com o fogo, a terra, o vento – com tudo o que existe. As pessoas se distanciaram dela. Elas não caminham mais na terra, nem sentem a brisa. Nós devemos sentir a água, e eu não falo da água que sai do chuveiro. Nossa espiritualidade está conectada com a natureza”.


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