A rivalidade de Tom Regan e Peter Singer no campo da filosofia moral que rege os direitos animais surgiu publicamente no início dos anos 1980. Mas foi em 1983 que os dois filósofos passaram a representar dois espectros consideravelmente distintos da discussão sobre os direitos animais. De um lado, Regan, autor de obras como “The Case for Animal Rights” e “Empty Cages”, com uma perspectiva mais próxima do que se entende hoje por abolicionismo animal, e “Peter Singer”, autor do clássico “Animal Liberation”, com um posicionamento utilitarista e pragmático que permite concessões no uso de animais em casos específicos.
Dois anos depois que Tom Regan lançou o seu primeiro clássico – “The Case for Animal Rights”, de 1983, Peter Singer publicou uma crítica ao trabalho de Regan no New York Reviews of Books. E desde então, os dois passaram formalmente a se posicionar cada vez mais publicamente sobre suas diferenças no entendimento dos direitos animais. Porém, apesar das disparidades, os dois nunca se viram ou se consideraram como inimigos. Muito pelo contrário, relegavam suas desconformidades apenas ao campo das ideias e da filosofia.
Exemplo emblemático e histórico dessa rivalidade é uma crítica de autoria de Tom Regan publicada no New York Review of Books em 25 de abril de 1985 em resposta ao artigo “Tem Years of Animal Liberation”, de 17 de janeiro de 1985, que comemorou os dez anos de lançamento do livro “Animal Liberation”, de Peter Singer. Na crítica, Regan relata que nos últimos dez anos ele e Peter Singer traçaram caminhos diferentes, aplicando teorias éticas diferentes a uma variedade de questões morais e sociais, incluindo o tratamento dado aos animais não humanos.
Regan registrou que Singer já se esforçava para apoiar seu argumento com base no que ele chama de “movimento de libertação animal” em cálculos utilitaristas: “No livro ‘The Case for Animal Rights’, que recebeu uma resenha de Singer nestas páginas, tentei estabelecer as bases teóricas para o que, em contraste com Singer, chamo de ‘o movimento pelos direitos animais’.”
Em uma discussão sobre a obra “The Case for Animal Rights”, Tom Regan e Peter Singer tiveram um impasse em 1985 sobre uma história hipotética envolvendo o caso de um bote salva-vidas em que alguns seres humanos dividem o espaço com um cão. Porém, para a sobrevivência da maioria, um deles deveria deixar o bote. O dilema baseado em um exemplo, que naturalmente não faz parte de uma realidade comum, acirrou ânimos, mas serviu para ilustrar convergências e divergências entre as perspectivas filosóficas de Regan e Singer na década de 1980:
Nas palavras de Tom Regan
Há mais do que uma diferença verbal aqui. É pelo apelo aos direitos animais que a visão de direitos, como chamo a posição desenvolvida em meu livro, emite sua condenação categórica da escravidão, por exemplo. Essa instituição está categoricamente errada, sejam quais forem as consequências, porque sistematicamente viola o direito dos seres humanos de serem tratados com respeito. A posição de Singer, no entanto – (supondo que os interesses iguais foram considerados igualmente) – é o de que a escravidão esteja errada por causa das consequências, uma posição que, por fazer com que o erro da instituição esteja sujeito consequências, claramente implica que a escravidão não seria errada se as consequências fossem otimistas [sic]. É difícil exagerar a diferença moral radical entre o utilitarismo de Singer e a visão de direitos.
Essa mesma diferença pode ser ilustrada quando consideramos o tratamento dos animais. A visão de direitos oferece uma condenação categórica do uso nocivo dos animais na ciência, por exemplo, exigindo sua total abolição. E faz isso independente dos apelos às consequências, repousando seu caso aqui, como no caso de sua condenação da escravidão, na violação sistemática dessa instituição do direito dos animais de serem tratados com respeito. Como um utilitarista, Singer não pode oferecer uma crítica que seja independente dos apelos às consequências; de fato, ele é obrigado a admitir – e ele tem admitido – que alguns usos nocivos dos animais em benefício da ciência podem ser moralmente permissíveis. A posição de Singer não é antivivissecionista. A visão dos direitos é. Mais uma vez, a diferença entre as duas posições não poderia ser mais clara.
“The Case for Animal Rights”, como a discussão anterior sobre as instituições da escravidão de bens móveis e o uso prejudicial de animais na ciência, pode sugerir uma preocupação com a oferta de uma base para avaliar práticas e políticas sociais em andamento. Isso é algo que um leitor da crítica de Singer pode perder, já que Singer concentra seu fogo crítico, não neste aspecto do livro, mas na minha breve discussão sobre um caso de salva-vidas: quatro humanos normais e adultos e um cachorro morrerão a menos que um dos humanos sacrifique sua vida; ou um dos humanos ou o cachorro seja jogado ao mar. Seria errado jogar o cachorro no mar nessas terríveis circunstâncias? Eu não acredito que seria, e eu argumento que a visão de direitos apoia este julgamento. Singer, por sua vez, “confessa ter alguma dificuldade em compreender” minha resposta, e pergunta se minha disposição em sacrificar o cão neste caso pode não ser inconsistente com minha oposição categórica ao uso nocivo de animais na ciência.
Não há inconsistência aqui, entretanto, já que os dois casos diferem de maneira moralmente crucial. No caso do uso nocivo de animais na ciência, animais são coercitivamente colocados em risco, riscos que eles não correm de outra forma, para que outros possam se beneficiar. Dia após dia, eles são forçados a correr riscos por nós (e pelos outros), e assim são institucionalmente tratados como se existissem como meros recursos, cujo lugar no esquema moral das coisas é servir aos interesses de outros indivíduos. Essa transferência coercitiva de riscos, de outros para esses animais, quando os próprios animais não correm o risco de sofrer os danos que lhes são impostos é, como explicarei detalhadamente no caso, uma violação indefensável de seu direito de ser tratado com respeito.
O caso do bote salva-vidas é diferente. O risco de morte do cão é assumido como sendo o mesmo de cada um dos sobreviventes humanos. E ainda é assumido que ninguém corre esse risco por causa de violações precedentes de direito; por exemplo, ninguém foi forçado ou enganado a bordo. Os sobreviventes estão todos no bote salva-vidas porque, digamos, uma embarcação maior afundou ou o rio inundou.
Não há indício de inconsistência, portanto, em fazer julgamentos morais diferentes nos dois casos. É errado – categoricamente errado – coercitivamente colocar um animal em risco de dano, quando o animal não correria esse risco, para que outros pudessem se beneficiar; e é errado fazer isso em um contexto científico ou em qualquer outro contexto, porque tal tratamento viola o direito do animal de ser tratado com respeito, reduzindo o animal ao status de um mero recurso, um mero meio, uma coisa. No entanto, não é errado jogar o cão do bote salva-vidas ao mar se o cão corre o mesmo risco de morrer que os outros sobreviventes, se ninguém violar o direito do cão ao colocá-lo a bordo, e se todos a bordo do bote perecerão se continuarem em sua condição atual.
Dado que essas condições são satisfeitas, a escolha de quem deve ser salvo deve ser decidida pelo que chamo de princípio de dano. O espaço me impede de explicar esse princípio aqui (veja o livro “Case For the Animal Rights”, capítulos 3 e 8). É suficiente dizer que ninguém tem o direito de fazer com que o seu menor dano seja maior do que o maior dano do outro. Assim, se a morte seria um dano menor para o cão do que seria para qualquer um dos sobreviventes – (e esta é uma suposição que Singer não contesta) – então o direito do cão de não ser ferido não seria violado se ele fosse lançado ao mar. Nessas circunstâncias perigosas, suponho que nenhum direito de ser tratado com respeito tenha sido parte de sua criação, o direito individual do cão de não ser prejudicado deve ser ponderado de forma equitativa contra o mesmo direito individual de cada um dos sobreviventes humanos.
Ponderar esses direitos dessa maneira não é violar o direito de qualquer pessoa de ser tratada com respeito; exatamente o oposto é verdadeiro, e é por isso que os números não fazem diferença nesse caso. Dado que o que devemos fazer é pesar o dano enfrentado por qualquer indivíduo contra os danos enfrentados pelo outro indivíduo, em relação a um indivíduo, não em relação a uma base coletiva, então não faz diferença quantos indivíduos sofrerão menos, ou qual indivíduo sofrerá mais. Não seria errado lançar um milhão de cães ao mar para salvar os quatro sobreviventes humanos, supondo que o caso do bote salva-vidas fosse o mesmo. Mas também não seria errado lançar um milhão de humanos ao mar para salvar um sobrevivente canino, se o dano que a morte causaria aos humanos fosse, em cada caso, menor do que o dano que a morte causaria ao cão.
Tendo tentado aqui dissipar os fundamentos da confessa “dificuldade” de Singer em entender o meu tratamento do caso do bote salva-vidas, quero enfatizar novamente o meu ponto anterior, que “The Case” tenta oferecer uma base teórica para avaliar a ética das práticas sociais em cursos e instituições, e, no curso disso, atende à tarefa de lançar as bases do movimento dos direitos dos animais. Fazer muito da minha breve discussão sobre uma ocorrência isolada, bizarra e pouco comum – o caso do bote salva-vidas – é perder a maior parte do que “The Case” apresenta, seja [a obra] bem-sucedida ou não.
Nas palavras de Peter Singer
Regan procura enfatizar as diferenças entre a sua visão e a minha. Ele diz que sua posição requer a abolição total do uso nocivo de animais na ciência, enquanto a minha não. É verdade que, numa visão utilitarista, poderia haver circunstâncias em que um experimento com um animal pudesse reduzir tanto o sofrimento, que seria permissível realizá-lo mesmo que envolvesse algum dano ao animal. (Isso poderia ser verdade, aliás, mesmo se o animal fosse um ser humano). Mas se concentrarmos na prática social da experimentação, uma posição utilitarista exige que procuremos acabar com esses trágicos conflitos de interesses, desenvolvendo métodos de pesquisa que não envolvem o uso nocivo de criaturas sencientes. A abolição de todos os usos nocivos dos animais na ciência é, portanto, tanto o objetivo do meu ponto de vista quanto o de Regan.
Mas, Regan protestaria, pois o utilitarismo é apenas um objetivo final; na visão de direitos é um requisito imediato. De fato – pensando ainda na prática social da experimentação como um todo, e não em casos individuais, bons argumentos utilitaristas poderiam ser oferecidos para a imediata abolição da experimentação animal. Seria imensa a quantidade de animais poupados do sofrimento; os benefícios perdidos na melhor das hipóteses seriam incertos; haveria um incentivo que proporcionasse o rápido desenvolvimento de meios alternativos de condução de pesquisas, as mais poderosas imagináveis.
Se, por outro lado, desviarmos nossa atenção da prática social existente de experimentação para casos hipotéticos, então a visão de Regan também não pode consistentemente implicar a abolição total de todos os usos nocivos de animais na ciência. Em minha análise, sugeri que, dado o que ele diz sobre o caso do bote salva-vidas, ele não pode negar consistentemente que seria permissível sacrificar um número ilimitado de cães para salvar uma vida humana. Ele agora responde que o caso do bote salva-vidas é diferente da experimentação animal, porque os animais no bote salva-vidas não foram coagiados à situação em que correm risco de sofrer danos. Essa diferença, no entanto, não distingue a situação do barco salva-vidas de todas as circunstâncias possíveis em que os animais são usados em experiências.
Suponha, por exemplo, que um vírus novo e fatal afete os cães e os seres humanos. Cientistas acreditam que a única maneira de salvar as vidas de qualquer um dos afetados é realizar experimentos com alguns deles. Os sujeitos dos experimentos morrerão, mas o conhecimento adquirido significará que outros afetados pela doença viverão. Nesta situação, os cães e os seres humanos estão em perigo igual, e o perigo não é resultado de coerção. Se Regan acha que um cão deve ser expulso do bote salva-vidas para que os seres humanos possam ser salvos, ele não pode consistentemente negar que devemos usar um cão doente para salvar humanos doentes.
Isso não é tudo. Desde que Regan diz que nesses casos os números não contam, e um milhão de cães deve ser jogado ao mar para salvar um único ser humano, ele teria que dizer que seria melhor realizar o experimento em um milhão de cães do que realizar em um único humano. Aqui podemos ver as extraordinárias consequências da recusa em tomar conhecimento dos números: nas circunstâncias descritas, a suposta visão “totalmente abolicionista” de Regan permite muito mais – na verdade, literalmente e infinitamente mais – experimentação animal do que a visão utilitária que acrescenta que até o dano sofrido pelos cães em algum ponto é muito maior do que o dano que seria sofrido por um único ser humano.
Independentemente dessa consequência infeliz da visão de Regan, parece errado sustentar que o que podemos fazer a um cão em um bote salva-vidas depende de como o cão passou a estar no bote salva-vidas em primeiro lugar. O ponto é bem feito em um artigo não publicado por Dale Jemieson, um filósofo da Universidade do Colorado. Como Jamieson argumenta, dificilmente parece apropriado perguntar, antes de decidirmos colocá-los em nosso bote salva-vidas, se os animais ou pessoas que afogam estão na água porque foram empurrados (o que presumivelmente seria uma violação de seus direitos), ou porque caíram (o que não seria). Portanto, Regan não conseguiu conciliar o que ele diz sobre o caso do barco salva-vidas com seu apoio declarado à abolição total da experimentação animal. Concordo inteiramente, entretanto, que tais casos hipotéticos bizarros não têm nenhum significado prático. O valor prático do livro de Regan está em seus ataques às nossas práticas sociais de usar animais como ferramentas de pesquisa e como meros pedaços de carne viva e palatável. Sobre essas questões práticas, Regan e eu estamos em total concordância. Vista da perspectiva de uma sociedade que continua a aceitar essas práticas, as diferenças filosóficas entre nós pouco importam.
Referência
Regan, Tom; Singer, Peter. The Dog in the Lifeboat: An Exchange. The New York Review of Books (25 de abril de 1985).