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Revendo mitos anti-animalistas: bem-estarismo e especismo disfarçados de justiça social

7 de dezembro de 2015
12 min. de leitura
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(resposta ao texto  “10 mitos de anti-humanistas sobre o veganismo interseccional”)

“Tanto a posição feminista pós-moderna quanto a posição neobem-estarista estão embebidas na ideologia do status quo. Ambas reforçam a nossa atual visão dos animais como propriedade e das mulheres como coisas cuja condição de pessoa está reduzida a qualquer parte do corpo, ou a qualquer imagem do corpo, que for fetiche para nós. Ambas as posições apenas colocam uma cara risonha em uma mensagem que é, essencialmente, muito reacionária.” (Gary Francione)

Deparar-me com essa citação de Francione no trabalho de uma ecofeminista há apenas cinco anos (veja aqui o texto na íntegra) em uma abordagem não especista, sem recortes e relativizações antropocêntricas, confesso, foi incentivo para escrever a respeito do Veganismo Interseccional (VI) do ponto de vista do Veganismo Abolicionista (VA), pois não é possível que em tão pouco tempo o ranço especista que os interseccionais destilam através de conceitos pós-modernos, baseados em subjetividades, vivências e relativismos morais, seja capaz de causar tamanha deformidade no movimento vegano e um prejuízo imensurável na compreensão dos humanos a respeito dos direitos inerentes às pessoas de outras espécies.
Quando aderi ao veganismo, costumava ler os textos desse blog para refutar falácias de consumidores de animais espalhadas na internet, para as quais dou ao autor o mérito da paciência de analisar ponto a ponto e por isso, mas também para contemplar os leitores do referido blog, vou contra-argumentar da mesma maneira, não sem antes prestar as devidas explicações necessárias a fim de evitar ou minimizar os ataques pessoais tão utilizados pelo autor para desqualificar seus oponentes.
O recurso mais usado pelo autor é acusar o veganismo abolicionista de cometer falácias do espantalho, coisa que faz nos acusando de anti-humanistas, recurso que por si só demonstra como seus argumentos são infundados: nortear-se pela ética da senciência não chega nem perto de ser anti-humanista*, apenas iguala interesses e direitos de todo indivíduo portador de senciência, seja ele o lobo de vida livre, o homem comum das grandes cidades, a mulher abusada da periferia ou a vaca escravizada em granjas de confinamento. Reconhecemos o direito à vida, à liberdade, à dignidade e à integridade física a todos os sencientes, mas atuamos em favor daqueles que vivem em condição de escravidão, alienados de qualquer direito protetivo, e considerando que essa condição é regra entre todas as outras espécies que não a humana, somos veganos abolicionistas.
Isso não é anti-humanismo ou misantropia como mecanismo de recusa de direitos aos humanos, isso é assumir um posicionamento claro e coerente de quem somos e o que fazemos enquanto movimento, nada diferente dos demais movimentos sociais não fosse o especismo impregnado em seus agentes que só conseguem dar importância ao VA caso contemple as demandas de seus opressores, conforme exposto adiante.
Portanto, antes de avançar no debate com os argumentos do VI, fica claro a farsa que é nos acusar de falácia do espantalho, ou ainda, “falácia da generalização apressada, com distorção de fato”, conforme define no item 5 do referido texto. Aliás, recorrer ao termo falácia constantemente sem provar porque determina a postura de seus opositores dessa maneira não comprova o engodo que pretende denunciar, mas como demonstrei acima, é comum entre veganos interseccionais, além da aplicação de rótulos sem conteúdo, termos sem conceituação (anti-humanismo, conforme demonstrei, é exemplo disso) e sem base na realidade, usar infinitas repetições de jargões injustificados e constantes ataques pessoais ou à postura ética de seus opositores – afinal, acusar de anti-humanismo é a forma “culta” de expressar os tão recorrentes “fascistes”, machistes”, “elitistes”, etc., disparados sem nenhum critério pelos veganos interseccionais quando confrontados sobre seu especismo.
Em recente resposta à “Trilogia Maldita” de Bruno Muller (partes I, II e III), nos acusam de não provarmos o que falamos, embora não hesitem em acusá-lo de elitismo, apontado inclusive sua dieta como inacessível aos pobres, nada mais calunioso, mais sem provas, que esse tipo de ataque pessoal. Pois bem, antes que receba o mesmo tipo de acusação por meus esclarecimentos (mentes pequenas preferem discutir pessoas ao invés de ideias), vale registrar a quem não conhece os veganos interseccionais como perpetuam o autoritarismo através do silenciamento: entre em qualquer dos grupos onde se reúnem e tente defender a ética baseada no critério da senciência que após meia dúzia de bordões facilmente refutáveis, virá uma dúzia de ofensas infundadas e antes de elaborar a próxima resposta adequada, você já estará banido. Por isso não temos com os veganos interseccionais debates abertos que deixem a critério de quem os acompanha decidir qual postura de fato representa os animais e também por isso não há veganos abolicionistas nesses grupos: foram todos achincalhados e banidos, mas os grupos ainda estão lá, quem duvida que faça a experiência.
Como alternativa ao exilío virtual imposto por esses defensores da liberdade e do fim das opressões, criamos páginas e debates abertos, provocativos, sobre o tema e o silêncio covarde foi sempre a única réplica, portanto a resposta a esse texto pretende ser uma resposta a todos os veganos interseccionais e seus duvidosos e escusos “lugares de fala” (outro recurso retórico e sem relevância para o veganismo abolicionista, já que baseados na teoria crítica dos direitos, entendemos que espaços se criam, se conquistam, se constroem e para que sejam promotores de mudanças devem agregar conflitos e contradições do tecido social, não cadeira cativa e inquestionável para vociferar vitimismo como forma de manutenção de práticas e idéias especistas). Após essa longa defesa, necessária mas lamentável, porque demonstra como o debate está muito mais baseado em ataques pessoais que em ideias, vamos ao texto, conforme proposto:

  • Interseccionais são especistas.

Sob o falso pretexto de divulgar o veganismo aos indivíduos marginalizados da espécie humana, o autor propõe romper o especismo por duas estratégias distintas: uma delas consiste em promover ações bem-estaristas e reducionistas ao atuar não demonstrando que TODO uso dos animais constitui um abuso e que a exploração promovida por frigoríficos e grandes corporações – porque exploram em massa, visando lucro dentro do capitalismo e portanto explorando animais humanos – é mais objetável que a perpetuada por tradições e religiões de grupos humanos oprimidos.
Oras, como podemos considerar algum uso menos objetável se entendemos os animais de outras espécies como pessoas? Só há uma justificativa para isso: ESPECISMO e as medidas bem-estaristas que o contemplam, especismo que segundo ele é falácia do espantalho quando demonstrado pelos veganos abolicionistas… muito fácil defender uma afirmação dispensando argumentos razoáveis que a sustentem!
A segunda estratégia supostamente engajada em combater o especismo é o respeito ao “lugar de fala”, que se traduz no “protagonismo” do indivíduo oprimido falar sem ser questionado em suas crenças e práticas aprendidas em uma cultura extremamente violenta e especista, dentro do movimento que o representa. Agora pergunto: qual o “lugar de fala” dos animais dentro do veganismo? Como vamos criar essa fantasiosa empatia proposta pelos veganos interseccionais em relação aos “protagonistas” do veganismo se aqueles que os representam são sistematicamente rechaçados por não pertencer aos “lugares de fala” tão idolatrados pelo discurso pós-moderno?
Isso sim é um recurso não apenas falacioso em relação aos sujeitos do veganismo (vale lembrar, devido às confusões interseccionais, sujeitos do veganismo são os animais não humanos até hoje completamente desprovidos de qualquer direito enquanto pessoas), como ainda por cima covarde, visto que desabilita a defesa dos animais por características pessoais arbitrariamente imputadas aos seus defensores, atitude tão reacionária que se enquadra na mesma cultura política que legitima as ações dos “cidadãos de bem”. Cheira e transpira a fascismo sob roupagem pós-moderna.

  • Veganos interseccionais são sabiamente definidos como “humans first” (primeiro humanos).

O autor refuta essa alegação defendendo que a intersecção entre “libertação humana, libertação animal” irá criar um sistema de igualdades a todas as espécies. Bem, o jargão “libertação humana, libertação animal” (temo jargões, quem fala nunca sabe o que o outro está ouvindo) já encerra a dualidade “nós e eles” (não trata a todos como pessoas sencientes e iguais em direitos fundamentais que são), que para os abolicionistas é claramente entendido como “escravizadores e escravos”, “portadores de direitos e objetos para fins humanos”, resultado de séculos de produção de direitos especistas, antropocêntricos, baseados nos interesses do explorador, o animal humano, por mais oprimido que seja por sua própria espécie.
Em relação às pessoas de outras espécies, não há igualdade de opressões como falsamente tentam afirmar os veganos interseccionais, mas há relação direta de poder e violência: como esperar um veganismo pelos animais que contemple igualmente seus opressores, contando que isso seja justo com aqueles que sequer têm direito à própria vida? Isso não é abolicionismo, é bem-estarismo, fingir defender os animais para manter o status quo humano sobre eles (foi por tanto praticá-la que os interseccionais incorporaram com tamanha naturalidade em seus discursos o termo “falácia”).

  • Os interseccionais não são abolicionistas.

Neste tópico, conclui de forma sábia e muito coerente que não ser especista dentro do VI é esperar que indivíduos dos grupos humanos oprimidos venham aderir ao abolicionismo para somente então, a partir do “lugar de fala” que ocupam “desconstruir” o especismo de seus iguais, tudo muito belo e harmonioso, uma fé (ou má-fé?) que lembra mais religião que movimento social. Ah, por respeito a isso também não devemos propor leis que punam práticas especistas, uma das bases de ação do VA.
Soa tão ridículo que fica até difícil contra-argumentar sem ser agressiva, pois é tão reacionário quanto dizer que feministas devem esperar que os pobres operários desconstruam seu machismo antes de exigirem igualdade de gênero, que negros esperem que os pobres homossexuais desconstruam seu racismo antes de reivindicar essa prática como o ato criminoso que é; enfim, um disparate tão absurdo que somente mentes dotadas de excelente filtro especista poderiam promover como método de abolição da escravidão animal.

  • Veganos interseccionais justificam e perpetuam sacrifício animal em religiões de matriz africana.

Sim, fazem isso descaradamente, conforme exposto até agora, hierarquizando o inaceitável e justificando o injustificável. Mas em caso de dúvida, sugiro entrar em um dos grupos citados e propor o tema, a comprovação é muito simples.

  • Sobre os interseccionais serem intolerantes com seus opositores através de rótulos preconceituosos e muitas vezes infundados, há argumentos suficientes na justificativa desta resposta, deixo o hábito da repetição à Humanagente.
  • Sobre veganos interseccionais cassarem carteirinha de quem não se dedica ativamente em outros movimentos.

Aqui, cabe esclarecimento: não faz diferença a atuação política, em direitos humanos, de seus opositores para os veganos interseccionais, importa apenas a adesão à sua proposta (como se fosse a única forma de atuação possível em favor da justiça social, coisa que duvido que agreguem). E eles não cassam sua carteirinha de vegano, mas te colocam no balaio dos veganos “anti-humanistas” (ou ainda, “fascistes”, “machistes”, “racistes”, entre tantos outros rearranjos da língua portuguesa) que justifica a cruzada que empreendem pelos oprimidos em detrimento dos animais não humanos num movimento que deveria representá-los. Depois ainda querem reivindicar protagonismo…

  • Aqui, tenta refutar que o VI não prioriza humanos, mas não apresenta argumentos e a exposição dos itens anteriores dispensa maiores justificativas.
  • Mais um item onde procura minimizar a exploração animal por seres humanos em situação de vulnerabilidade, como se escravidão de pessoas entre pobres fosse moralmente mais aceitável que a promovida por grandes corporações e como se o interesse do veganismo fosse o explorador e não o explorado. Nada além de mais especismo travestido de humanismo.
  • Sobre o especismo que os veganos interseccionais promovem ao refutar as comparações entre as formas de exploração humana (escravidão, holocausto, estupro, etc.) e as mesmas práticas impostas até hoje de forma legal e massiva ás espécies exploradas pelos seres humanos.

Neste tópico, o especismo é tão evidente que há um aviso sobre conter “conteúdo traumático para mulheres e pessoas negras vítimas de violência misógina e/ou racista”, sendo este conteúdo as comparações citadas.
Quando existe um “trauma” promovido porque comparamos situações de opressão e violência exatamente iguais (com exceção que os animais humanos hoje desfrutam de uma gama de direitos protetivos enquanto as pessoas de outras espécies permanecem em situação de absoluta vulnerabilidade), salta aos olhos que a ofensa não vem porque a comparação seja falaciosa (contemplando termo tão caro aos interseccionais), mas porque reconhecer-se no outro de outra espécie o diminui e inferioriza em sua mente especista – como esse “protagonista” vai ocupar qualquer “lugar de fala” em favor dos animais se sequer confrontá-lo com o próprio especismo é permitido? Que justiça há para os animais nesse tipo de intersecção?
VI, a perpetuação do engodo.

  • A causa animal só sai perdendo no VI.

Quando os direitos animais forem contemplados porque discutimos opressão humana para dar aval a práticas especistas responsáveis por perpetuar aos animais a condição de objeto para uso humano, condição em que permanecem até hoje, após mais de 200 anos de evolução dos direitos humanos, o VI será uma possibilidade no horizonte dos interesses animais (ou seja, nunca!). Até lá, esse respeito às verdades relativas tão acariciadas por esses sujeitos humanos veneradores de suas misérias em detrimento dos escravos que exploram só servirá de lastro e fôlego ao especismo humanista que perpetua a violência humana contra as demais espécies deste planeta, o que significa dizer que sim, a causa animal só sai perdendo ao adotar a abordagem interseccional.
Como bônus, sugiro ao autor repensar a cientificidade do método empírico que tanto reclama em seus debates (está superado desde o positivismo), bem como essa abordagem antropológica pós-moderna promotora de tudo que há de mais reacionário e especista no humanismo antropocêntrico que tanto veneram através da proposta interseccional, nada mais diametralmente oposto à filosofia crítica que contempla a visão abolicionista, baseada na ética da senciência para defesa dos animais não humanos contra o regime de escravidão e massacre imposto por nossa espécie.
Ou como dizem os grupos que o apoiam, para que tá feie!
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*embora possamos afirmar que a postura dos interseccionais é humanista, visto que se baseia em princípios antropocêntricos nascidos do berço judaico-cristão da Renascença, portanto reacionários do ponto de vista do abolicionismo animalista, não é correto dizer que os abolicionistas sejam anti-humanistas, já que não baseamos nossas preocupações na natureza, no ambiente, em detrimento do ser humano, mas nos baseamos na ética da senciência, portanto somos animalistas, não anti-humanistas (sobre o conceito, este artigo referencia autores e ideias que norteiam o debate proposto mas não exposto pelo blogueiro).

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