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Abaixo o vegetarianismo pela saúde

22 de setembro de 2010
8 min. de leitura
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Semana passada tivemos o terceiro Congresso Vegetariano Brasileiro, na muy aprazível cidade de Porto Alegre. Como já escrevi antes, Porto Alegre tem um dos melhores ativismos do Brasil, em matéria de qualificação dos ativistas, qualidade das ações e visibilidade para a causa. Isso se manifesta numa cidade que, em pleno coração da terra do churrasco, é surpreendentemente amigável com os vegetarianos.

Isso se aufere, por exemplo, nas opções disponíveis. Não se trata apenas da quantidade, ou da qualidade, de restaurantes vegetarianos. Se trata da sua variedade, digamos até versatilidade. Há estabelecimentos para todos os públicos: o popular, o sofisticado, o alternativo, o jovem. Muito diferente do vegetarianismo careta do Rio de Janeiro, que só abre para o almoço e só está disponível da classe média, para cima.

Me surpreendeu positivamente, em Porto Alegre, a quantidade de vegetarianos éticos, veganos, ativistas. Com tantas pessoas descobrindo o vegetarianismo pelos animais, resta a dúvida: por que o vegetarianismo ético ainda é tão desconhecido do grande público?

A ideia do vegetarianismo natureba está tão incutida no nosso inconsciente coletivo, que para muitos chega a ser difícil conceber que ela seja, na verdade, a última das razões que tem levado, por toda história, as pessoas a se tornarem vegetarianas. Da Índia antiga à Inglaterra vitoriana, as pessoas têm se tornado vegetarianas por razões éticas – mesmo que uma ética espiritual. Se as motivações do vegetariano mudaram, portanto, é porque mudou alguma coisa na forma como o vegetarianismo é pensado e debatido.

E o que mudou foi que, de repente, começaram a surgir Sociedades Vegetarianas. E as Sociedades Vegetarianas fizeram a opção deliberada de esvaziar o conteúdo ético do vegetarianismo, na triste expectativa de assim torná-lo mais palatável ao grande público. Mascarando, escondendo sua face mais contestadora, mais socialmente perigosa, esperavam assim conquistar novos membros. E a imagem do vegetariano pela saúde, naturalmente, viraria a vedete desse movimento.

Em nossos tempos de hedonismo, materialismo, culto da imagem e do corpo, apelar ao desejo egoísta do corpo saudável e bonito parece uma estratégia certeira. Olhando para o contingente do Congresso Vegetariano Brasileiro, eu me pergunto aonde essa estratégia nos levou. Pois se mesmo fingindo que a opção pelo vegetarianismo não tem nada a ver com respeito pelos animais, temos tanto vegetarianos éticos, imagine se tivéssemos um movimento dedicado a divulgar com todo afinco essa opção não pelo egoísmo, mas pelo altruísmo.

Tendo isso em mente, eu concluo que o vegetarianismo pela saúde é antes fator de atraso que de avanço. Trata-se de um maquiavelismo que saiu pela culatra. O filósofo italiano Nicolau Maquiavel defendia que a ética do estadista era diferente daquela do cidadão. Para o príncipe, a mentira, a desfaçatez, a enganação, é uma virtude, pois só com ela ele consegue proteger o Estado dos perigos externos. Da mesma forma, o movimento vegetariano acredita que escamotear a realidade é a chave do sucesso. Mas isso é um tiro no pé. Elenco alguns motivos que me levam a essa conclusão:

1 – Quem pensa que o vegetarianismo é mesmo um bom apelo para o egoísmo alheio, deveria pensar duas vezes. Ser vegetariano requer renúncia. Ninguém irá renunciar aos prazeres da carne, e às limitações cotidianas impostas por essa decisão, apenas para ter um corpinho bonito – especialmente se dieta balanceada e 30 minutos de academia por dia solucionam o problema. Não se trata de dizer que ser vegetariano é difícil. É muito fácil. Difícil é abdicar das comodidades do mundo onívoro se não há um motivo forte para isso. Afinal, para que eu vou limitar tanto as minhas opções alimentares, se eu tenho outras formas menos radicais de ser bonito e saudável?

2 – Os vegetarianos pela saúde não estão nem aí pros animais. Isso é boa propaganda pra causa? Mesmo que achássemos que o vegetarianismo inofensivo é mais ajustado às expectativas da nossa sociedade, até onde ele pode nos levar? No máximo, até a dieta mesmo. Como fazê-lo ultrapassar esses limites? Por que deixar de usar couro, produtos testados? Daí já começamos a precisar de outros discursos. E daí começam a se acumular argumentos ambientais, de saúde pública, fome no mundo, indústrias farmacêuticas malvadas… Em vez desse ecletismo filosófico, não fica mais fácil ir direto ao ponto?

3 – Consequência disso tudo, vegetarianos pela saúde não têm compromisso com uma causa. Portanto, não criam um movimento, seja no sentido institucional, de organizar-se para divulgá-la, seja no sentido mais abstrato, de gerar uma onda, que difunde uma ideia, de modo semiespontâneo, na medida em que cada vegetariano engajado, mesmo sozinho, difunde seus princípios para seu círculo social, e desse círculo saem outros vegetarianos, que o difundem para seus próprios círculos sociais, e assim por diante.

4 – Sem uma causa que lhe mova, o vegetariano pela saúde não tem realmente nenhum motivo para se manter vegetariano. Ele faz concessões quando a ocasião pede, para não ser “chato” ou mal-educado, ou simplesmente quando dá vontade. E, por fim, ele acaba deixando o vegetarianismo na primeira dificuldade com que se depara. Basta aquela clássica anemia, seguida da bronca do médico, e lá estará ele comendo o indigesto mas necessário bife de fígado. Depois, vêm as desculpas: “ah, mas é só de vez em quando”; “como um peixinho quando meu organismo pede”; “tentei, mas não consegui”; “passava muito tempo na rua, não tinha opções”, “como gelatina porque tem colágeno”, e blá-blá-blá. Ou será “buá-buá-buá”?. Sempre a mesma choradeira. A verdade é que, como já disse em outras ocasiões, em toda minha vida conheci muitos “vegetarianos” pela saúde. Não conheci um sequer que tenha persistido. Isso quando chegaram a ser realmente vegetarianos, mesmo segundo as definições clássicas, hoje obsoletas, que incluem os ovinhos e o leitinho.

5 – Enfim, pensando nisso tudo, o vegetariano pela saúde, na verdade, não quer ter nada a ver com os vegetarianos. Ele odeia ser associado a esse bando de fanáticos religiosos, protonazistas, histéricos, sentimentaloides. Quando aparece um vegano ético na vida dele, ele não perde tempo em se dissociar de qualquer relação com tamanha figura desagradável. É o “vegetariano fofinho”: agradável, gente boa, que não recusa convites para churrascos, supersociável. Eu já fui um vegetariano fofinho. Não por falta de convicções éticas, e sim por medo de assumi-las. Lembro de um ex-amigo falando de mim: “O Bruno não, o Bruno não é vegetariano por peninha dos animais”. Eu poderia ser medroso, mas não era mentiroso. Timidamente, contestei a afirmação, para passar as horas seguintes, como qualquer vegetariano, a ser sabatinado (e sacaneado) pelos “amigos” onívoros. É geralmente quando o vegetariano pela saúde intervém, dizendo que realmente isso tudo é uma bobagem, e que, se o médico mandar, ele come bicho mesmo – carne, ovo, leite, o que for necessário. De fato, uma bela forma de propagar o vegetarianismo.

É por esses e outros motivos que quero propor um novo movimento: o movimento “Abaixo o vegetarianismo pela saúde”. Abaixo os cuidados com a saúde e alimentação. Vamos comer muita batata frita, hamburguer de soja, açúcar e pão de farinha branca. Vamos engordar 20 kg, nem que seja só para deixar claro que somos vegetarianos éticos, e não pessoas obcecadas com a boa aparência. Chega de balela. Os animais não precisam de vegetarianos naturebas. Eles não contribuem em nada, a não ser em relativismo, idiotice e covardia. Três qualidades que já abundam o suficiente em nosso movimento (e que, infelizmente, não se restringem aos naturebas).

Mais importante, o vegetarianismo pela saúde é absolutamente incapaz de conduzir ao passo realmente decisivo: o veganismo, que não se limita à dieta. Antes um vegano ético que cem vegetarianos pela saúde, relativistas, fofinhos, coniventes e coparticipantes da exploração animal, com seus acessórios de couro, casacos de lã e dieta rica em ovos e leite. Nada mais são que onívoros disfarçados. Para ir além da dieta, é preciso ir além dos motivos dietéticos. Portanto, continuar a divulgar o vegetarianismo pela saúde é um desserviço à causa.

Os animais não precisam de associações dietéticas. E as associações dietéticas não precisam, sequer, ser. Muitas pessoas não gostam de cebola. Em quase todos os restaurantes, quase todos os pratos são temperados com cebola. É um grande incômodo para quem não aprecia o ingrediente. Ainda assim, alguém conhece alguma Sociedade dos Não Comedores de Cebola? Hoje em dia há cada vez mais celíacos, alérgicos a glúten, que também têm, por isso, muitas restrições alimentares. E, no entanto, onde está a Sociedade Celíaca? E a Sociedade Frutariana ou Sociedade Respiratoriana, por que não existem? É porque elas não têm razão de ser. A razão de ser do vegetarianismo é o respeito pelos animais. Sempre foi assim. Se hoje não é tanto, é por culpa de ninguém mais que não os próprios vegetarianos.

É chegada a hora de reverter esse quadro. Seja do ponto de vista ético, seja do estratégico, está claro que o vegetarianismo pela saúde é limitado, no seu alcance e seu conteúdo. Se precisamos de Congressos Vegetarianos, é porque ao menos numa coisa concordamos: na vontade de difundir o vegetarianismo. E, se vamos difundir o vegetarianismo, que seja pelos motivos verdadeiros. E que seja pelos motivos completos: aqueles que nos levam além do vegetarianismo, rumo ao veganismo.

OBS: esse texto traduz parte do que foi minha exposição no Congresso Vegetariano. As considerações mais extensas e, digamos, acadêmicas, levantadas por essa exposição, serão publicadas nas próximas semanas. No próximo texto, falarei de outro vegetarianismo muito comum: o holístico-esotérico.

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