As colunas que irei escrever aqui visam discutir questões éticas envolvendo animais não humanos. Contudo, as primeiras não abordarão especificamente o tema dos animais. Antes de discutirmos temas específicos da ética precisamos saber algo sobre a ética em si, e de que bases se deve partir para discutir questões de ética. Do contrário, corremos o risco de falar de algo que não fazemos a menor ideia do que seja. Antes de tudo, então, é preciso questionar alguns dogmas que impedem a discussão ética. Outra vantagem de discutirmos esses pontos primeiro é que eles se aplicam a qualquer questão ética, não apenas as que envolvam animais não humanos.
Todos que já participaram de um debate sobre alguma questão ética com certeza já escutaram (geralmente depois de vários argumentos terem sido discutidos): “Ah, mas isso tudo é relativo/subjetivo, nem adianta discutir”. A crença de que a ética é relativa a cada sociedade ou subjetiva a cada indivíduo é amplamente difundida. Muitas pessoas repetem essa alegação como se fosse uma verdade tão óbvia que não mereceria atenção qualquer posição que partisse do pressuposto de que a ética não é relativa ou subjetiva. Alguém que pretende defender que a ética pode ser discutida em bases objetivas certamente está, dizem eles, “tentando impor suas preferências pessoais aos outros”. Mas será que é realmente tão fácil assim sustentar essa afirmação sobre a natureza da ética (de que é relativa/subjetiva)? Com o curto espaço que possui essa coluna, pretendo mostrar que já é possível apontar inúmeros problemas graves nessas perspectivas que geralmente passam despercebidos, justamente por aquelas serem muitas vezes tomadas como “verdades óbvias”. Se o relativista/subjetivista pretende não ter a “cabeça fechada”, não pode deixar de questionar esses problemas.
Vejamos primeiro a perspectiva que afirma que o que é certo depende da sociedade em questão (relativismo ético). Deixaremos o subjetivismo para a próxima coluna. Quem defende essa perspectiva parte do fato verdadeiro de que há um relativismo cultural, ou seja, cada sociedade possui costumes diferentes – incluindo códigos morais diferentes. O que a tradição chinesa considera correto pode não ser o mesmo que a tradição esquimó, ou qualquer outra sociedade, por exemplo, considera. A partir desse fato, as pessoas concluem que não pode haver verdade universal em ética, pois, dizem essas pessoas, tudo o que podemos fazer é avaliar as coisas a partir do ponto de vista da sociedade na qual vivemos. Se fizermos isso, somos então considerados pelo relativista como arrogantes.
Mas será que, de um ponto de vista lógico, não há problema algum em concluir, a partir do fato de que culturas diferentes possuem códigos morais diferentes, que não há verdade objetiva em ética? O problema é que, mesmo que a premissa seja verdadeira (no caso, o fato de que existem códigos morais diferentes), a conclusão ainda pode ser falsa. Não podemos concluir do mero fato de que há discordância sobre um assunto, que não há verdade objetiva sobre tal assunto. Considere que discordamos sobre se tenho duas canetas na minha mochila ou uma só. Podemos concluir, desse mero fato de que há discordância, então que não existem nem duas nem uma caneta dentro da mochila? Não, porque uma das duas pessoas pode simplesmente estar enganada. Abrindo-se a mochila resolve-se esse problema. Alguém pode objetar que isso é válido para investigações sobre fatos físicos (os fatos físicos não são falsos ou verdadeiros de acordo com o que pensamos sobre eles) mas não para a ética. Mas, se for, então o argumento não pode simplesmente ser o de que há discordância na ética, já que, como vimos, o mero fato de haver discordância não é suficiente para afirmar que não há verdade objetiva sobre um assunto. Assim como no caso das canetas na mochila, é possível que na ética simplesmente algumas posições estejam erradas, mesmo que seja verdade que haja discordância. Assim, a conclusão não resulta da premissa, pois, caso haja verdade em ética, é possível que nem todos tenham conhecimento dela. Também, por outro lado, pode ser que o relativismo moral seja verdadeiro. Se for, outro argumento teria de ser endereçado que não meramente apontar o fato de que há discordância.
Geralmente os defensores do relativismo alegam que uma posição ética objetiva pode resultar em danos terríveis, como assassinar todos aqueles que discordam de sua posição. Contudo, além de haver o problema de que, ao afirmarem isso, abandonam o relativismo e adotam um padrão universal de julgamento (“o assassinato é ruim”), não percebem que é o relativismo que poderia tolerar práticas terrivelmente danosas. Eis algumas consequências da adoção do relativismo: (1) não poderíamos mais criticar o fato de algumas sociedades fazerem guerras, manterem escravidão, que tivesse ideais nazistas etc. Todas essas práticas seriam igualmente boas a qualquer outra; (2) não poderíamos mais questionar o código moral de nenhuma sociedade, inclusive a nossa (já que o relativismo implica que o correto é o que a sociedade afirma que é). Se o relativismo for verdadeiro, então todo código moral é perfeito; (3) se todo código moral for perfeito, então não podemos mais aprender algo com outras culturas, que, ironicamente, é umas das preocupações comuns entre muitos defensores do relativismo; (4) não poderíamos mais pensar que certas mudanças são para melhor. Não poderíamos dizer, por exemplo, que numa sociedade onde havia escravidão, e agora, todas as outras coisas continuam iguais exceto que não há escravidão, então algo melhorou – já que o relativismo diria que é um erro julgar uma prática de uma época de acordo com os padrões de outra; (5) teríamos de dizer que é sempre errado tentar mudar a sociedade em que se vive. Como o filósofo Peter Singer apontou, na crítica que faz ao ralativismo: o reformador, dentro dessa perspectiva se encontra numa posição difícil: “quando pretendem modificar as perspectivas éticas dos seus concidadãos, estão necessariamente errados; só quando conseguem conquistar a maioria da sociedade passam as suas opiniões a estar certas” (SINGER, Ética Prática, p. 14). Por isso, de acordo com o relativismo, seria correto tentar reformar nossa sociedade apenas se ela tivesse se afastando de seu código moral estabelecido. Poder-se-ia, aqui, objetar que a ética é relativa não à sociedade como um todo, mas ao grupo (classe social, por exemplo) dentro do qual alguém se insere dentro de uma sociedade. Essa mudança na definição de relativismo, embora conserte até certo ponto o problema de, aceito o relativismo, não fazer mais sentido questionar a sociedade, acaba criando o mesmo problema dentro dos grupos: aceito o relativismo de grupo, não faz mais sentido questionar as normas do grupo. Portanto, essa “solução” apenas transfere o problema para outra esfera, mas não o resolve. Assim, longe de ser uma perspectiva “cabeça aberta”, o relativismo é tudo o que um conservador extremo (seja das normas da sociedade, do grupo ou de qualquer outra coisa) gostaria para defender sua posição.
Outro argumento que tenta provar a validade do relativismo consiste em afirmar que todos os nossos padrões de certo/errado nada mais fazem do que refletir o código moral de nossa sociedade: “como podemos ter uma base neutra para julgar, se é assim? Mesmo se houver a verdade em ética, jamais poderemos sabê-la, então”. O problema com esse argumento é que não é verdade que todos os nossos juízos refletem o código moral de nossa sociedade. Se assim fosse, ninguém tentaria mudar nada na sociedade em que vive. Quando dizemos “a escravidão é errada”, não parece que estamos dizendo a mesma coisa que “minha sociedade condena a escravidão”; parece que estamos dizendo que a escravidão não deveria existir, independentemente do que o restante da sociedade pensa. O relativista pode objetar que as pessoas só tentam isso porque entraram em contato com outras sociedades, com padrões morais diferentes. Mas essa objeção perde, de fato que, mesmo se isso for verdade (e não temos evidências de que é), as pessoas ainda podem escolher qual código preferem seguir. E saber o que a sociedade acha que devemos fazer não ajuda. Ainda temos que tomar a decisão nós mesmos. O relativista poderia responder que as pessoas não são livres, e sim, determinadas, não podendo escolher coisa alguma. Mas aí não faria mais sentido reclamar quando elas afirmam que o relativismo não é verdadeiro.
O relativista ainda pode argumentar: “veja, a ética não é objetiva, dado que num contexto pode ser correto fazer algo e em outro não; pode ser errado mentir geralmente, mas não é errado mentir para enganar um terrorista e impedir que ele mate vários inocentes”. Ora, esse argumento não diz que a ética é relativa. Está apenas dizendo que às vezes as regras não cumprem o ideal a que se destinam (no caso, garantir benefício a inocentes), o que justifica quebrá-las nessas situações. Por exemplo, tal exceção à regra de mentir poderia ser justificada em qualquer sociedade, onde quer que aquele contexto aparecesse e poderia estar baseada, por exemplo, num padrão objetivo como “proteger inocentes”.
Quando alguém defende uma prática de uma outra sociedade apontando os benefícios que tal prática causa aos afetados por ela, então deixa de ser relativista. Se alguém defende que o infanticídio praticado por esquimós se justifica porque, apesar de tudo, essa é a saída para o problema que causa menor dano dentre todas as outras disponíveis, então não pode simplesmente dizer que alguém que é contra a mesma prática por argumentar que existe outra saída menos danosa está arrogantemente impondo os padrões de sua sociedade. Ao fazerem isso, adotam um padrão independente de julgamento, que é o benefício aos atingidos.
Assim, embora o relativismo traga a importante contribuição de colocar sob suspeita os valores de nossa sociedade (eles são um código moral entre muitos, portanto, podem estar, sob muitos aspectos, errados), apontando que aquilo que muitos sentem como verdades morais óbvias podem ser meros preconceitos culturais, isso não é o suficiente para fornecer um argumento que sustente a conclusão de que, então, a ética é relativa.
O relativismo parte do fato verdadeiro de que há discordância entre diferentes códigos morais de diferentes sociedades e salta para uma conclusão metaética, afirmando que a ética é relativa. Como vimos acima, o mero fato de haver discordância não é suficiente para provar essa conclusão e nenhum outro argumento é endereçado para cobrir essa lacuna. Portanto, a divergências entre diversos códigos morais não implica um relativismo ético. A ética não é relativa.
Diante dessas dificuldades, muitas pessoas abandonam o relativismo e adotam o subjetivismo ético (a visão de que o certo/errado depende não da sociedade, mas do que cada um acha). Uma análise dessa visão será o tema da próxima coluna.