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10 mitos sobre o veganismo interseccional

8 de dezembro de 2015
8 min. de leitura
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Como reação conservadora à notoriedade crescente do veganismo interseccional (VI), algumas pessoas do próprio meio vegano têm feito contrapropaganda para depreciá-lo, divulgando supostos pontos negativos dessa vertente vegano-abolicionista. Só que essas alegadas características absurdas do VI são nada mais do que mitos – ou, para ser mais específico, falácias do espantalho.
Tendo em vista a quantidade de mitos que vêm sendo difundidos por pessoas que preferem atacar o VI a ouvir os vegans interseccionais, faço uma refutação a dez mitos muito comuns, mais um bônus. Afinal, as pessoas que não entendem o que é o VI precisam saber o que ele realmente é, ao invés de serem enganadas por quem não aceita a intersecção inteligente e empática entre a libertação animal e a libertação humana.
 
1. Interseccionais são especistas!
Em momento nenhum o VI defende que os seres humanos são “superiores” aos não humanos. Muito pelo contrário, sua luta visa amadurecer o vegano-abolicionismo, induzir por maneiras diplomáticas – como reconhecer o lugar de fala de quem realmente tem o poder de fala para intervir no seio de suas próprias culturas, como vegans negros afrorreligiosos – a superação de tradições de exploração animal, levar o veganismo às classes populares da periferia e peitar politicamente aqueles que são os maiores exploradores de animais no planeta – pecuaristas, empresários da pesca, políticos ruralistas, corporações do setor lacto-frigorífico etc. –, entre outros meios de ação.
Além disso, alerto para o erro de opositores do VI de confundir a diplomacia, o diálogo de saberes e o respeito ao lugar de fala das minorias políticas, ao se tratar de questões como o sacrifício animal em religiões historicamente discriminadas, com a “aceitação” da perpetuação do uso de animais em rituais religiosos.
 
2. Os interseccionais defendem “seres humanos em primeiro lugar” e colocam os animais não humanos em último plano. São defensores do “Humans First”.
Muito pelo contrário. O VI leva muito a sério os valores dos Direitos Animais, desde a luta contra o especismo até o respeito ético a todos os seres humanos. E é na intersecção entre as lutas pela libertação humana e a defesa da libertação animal que o ativismo pela igualdade moral entre os animais humanos e não humanos se torna mais forte e eficaz.
Enxergar “relativização” do especismo em estratégias simplesmente diferentes de atuação pelos animais é de uma notável leviandade.
 
3. Os interseccionais não são abolicionistas. Eles relativizam e aceitam o especismo das minorias políticas.
A crença de que nós interseccionais “não somos abolicionistas” é um outro mito, advindo da confusão entre o uso de métodos não violentos e não simplistas para se tratar da inferiorização dos animais não humanos por pessoas não veganas de minorias políticas e a mera tolerância a essa exploração. O que defendemos de verdade é que pessoas veganas dessas minorias tenham respeitado seu lugar de fala e reconhecido seu poder de influenciar mudanças internas em seu círculo social – como, por exemplo, quando um vegano aderente do Candomblé Verde debate com seus irmãos de religião sobre a vontade dos Orixás acerca do sacrifício animal.
Isso não é relativização do especismo, mas sim uma maneira inteligente, diplomática e culturalmente respeitosa de se promover a mudança em prol dos animais. Tende a ser muito mais benéfico à causa da libertação animal do que, por exemplo, impor leis que punem com multa e/ou prisão realizadores de rituais com sacrifício de animais. É a rejeição ao simplismo – o qual muitas vezes leva a posturas racistas, xenófobas, misóginas e intolerantes-religiosas – na luta pela abolição da exploração animal.
 
4. Os interseccionais acreditam que o sacrifício animal em religiões de matriz africana deve ser aceito e perpetuado.
Como foi abordado nos pontos anteriores, o que mais se defende em relação ao sacrifício animal no candomblé e na quimbanda é que os próprios vegans negros afrorreligiosos sejam os agentes da revisão e reforma das tradições dessas religiões. Isso está longe de ser uma aceitação da perpetuação desse tipo de prática ritual.
 
5. Os interseccionais são intolerantes a discordâncias e respondem a quem os questiona com xingamentos de “fascistas”, “elitistas”, “reaças”, “machistas”, “racistas” etc.
Isso é uma falácia de generalização apressada, com distorção de fato. Reações agressivas só acontecem em reação a determinadas falas, encaradas por vegans interseccionais como abusivas, imprudentes, antiempáticas e preconceituosas.
É quando, por exemplo, mulheres negras veganas adeptas do VI reagem revoltadamente contra um homem branco anti-humanista vegano que lhes veio falar do que não entende e lhes tentou ditar que “deveriam” aceitar comparações cruas e irresponsáveis entre mulheres negras escravizadas no passado e a exploração de vacas na pecuária leiteira. Ou então quando uma página social divulgadora do veganismo compartilha um desenho de mulheres sendo exploradas para a produção de leite – o que aciona traumas em mulheres vítimas de violência sexual – e, diante de reações negativas, chama as reclamantes de “histéricas”.
Rebaixar essa revolta a algo similar a um “mimimi agressivo cheio de adjetivos” é algo muito leviano, e também uma falsa simetria que tenta igualar a reação das pessoas discriminadas à violência dos discriminadores.
 
6. Os interseccionais exigem que todos os vegans se dediquem ativamente também a lutas como a feminista, a do movimento negro, a das LGBTs, a operária etc., senão lhes cassam a carteirinha de vegan e os chamam de diversos impropérios, como “fascistas”, “machistas” e “racistas”.
Essa é outra falácia do espantalho. Ninguém no movimento vegano interseccional exige que todos os vegans se dediquem, com o mesmo investimento de tempo e esforço que é reservado ao veganismo, a outras lutas. O que se quer, na verdade, é a solidariedade, ou pelo menos o respeito, a elas.
Em outras palavras, não é que queiramos que todo vegan seja membro ativo ou apoiador intensivo dos outros movimentos sociais. Mas sim que respeite as minorias pelas quais os mesmos lutam, abstendo-se de promover machismo e misoginia, racismo, heterossexismo, transfobia, elitismo, intolerância religiosa, xenofobia etc.
E não há nenhuma pretensão nossa de “cassar carteirinhas de vegans”. O que fazemos é mostrar que o veganismo de uma pessoa que vive promovendo preconceito contra minorias políticas e/ou declarando ódio à humanidade é algo inócuo e autofágico em seus princípios éticos. É provar que o anti-humanismo de alguns vegans é equivalente ao especismo de reacionários antiveganos.
Sobre os tais impropérios, a resposta ao mito anterior já falou.
 
7. Para os interseccionais, ou a pessoa defende ao mesmo tempo e com a mesma força os Direitos Animais e todas as causas humanas possíveis, ou não é vegana de verdade.
A resposta ao mito anterior também responde a este. E vale dizer que quem está excluindo pessoas do atributo de “vegan de verdade” por critérios político-ideológicos têm sido os próprios depreciadores do veganismo interseccional.
 
8. Os interseccionais negligenciam a contribuição de carroceiros, afrorreligiosos que promovem sacrifício e peões para a exploração animal, e isso é gravíssimo.
É um equívoco acreditar nisso. Em primeiro lugar, a exploração animal por pessoas em situação de vulnerabilidade social (por pobreza e/ou discriminação) é tratada com o já mencionado reconhecimento e respeito do lugar de fala de pessoas daquelas minorias políticas com as quais se quer debater, por exemplo, o uso de animais “de tração” e o sacrifício religioso de animais. O VI lida com esses tipos de exploração com diálogo de saberes e empoderamento político dos vegans dessas categorias sociais.
E em segundo, não se deve confundir essa postura diplomática e o foco combativo nos reais grandes exploradores de animais (pecuaristas, empresários dos rodeios e vaquejadas, patrões das indústrias lacto-frigorífica e pesqueira etc.) com negligência a quem explora animais em menor número.
 
9. Os interseccionais são contra fazer comparações entre a exploração animal e a opressão humana porque consideram que seres humanos são diferentes e superiores em relação aos animais não humanos.
Aviso: Esta resposta contém conteúdo traumático para mulheres e pessoas negras vítimas de violência misógina e/ou racista.
Esse mito é uma distorção do fato de que comparações desse tipo são criticadas e evitadas pelo VI porque acionam traumas em pessoas vítimas de violência racista, misógina, antissemita etc. É o que acontece quando, por exemplo, um negro que sofreu muito com xingamentos racistas remetentes à escravidão na infância dá de cara com uma imagem comparando um negro escravizado com um boi no corredor do matadouro. Ou, num segundo exemplo, quando uma mulher vítima de estupro vê aparecer no seu feed de notícias no Facebook uma imagem que compara mulheres sofrendo violência sexual com vacas sendo artificialmente inseminadas.
Isso não tem nada a ver com acreditar que os seres humanos são “diferentes” dos demais animais e “superiores” a eles. Acreditar nisso é cair em mais uma falácia do espantalho anti-interseccional.
 
10. No final das contas, os animais só saem perdendo com esse movimento interseccional.
Muito pelo contrário. O VI representa a continuidade da evolução amadurecedora do movimento defensor dos Direitos Animais. É por ele que adquirimos a consciência de que não haverá libertação animal sem libertação humana simultânea.
É pelo VI que percebemos que ser misantropo, machista, racista, xenófobo etc. não é nada compatível com a ética vegano-abolicionista. E também notamos que a postura de intransigência e má vontade para o diálogo por parte de muitos vegans para com não vegans de movimentos sociais só prejudica, travando e desmpoderando, a causa vegana. A mesma crítica é feita para o elitismo de muitos que insistem em dar foco prioritário ou exclusivo a pessoas que podem pagar regularmente por pratos veganos caros.
 
Bônus: Interseccionais defendem o bem-estarismo sob a roupagem bonitinha da justiça social.
Nada, nada mesmo, no VI aponta para a defesa do bem-estarismo como “solução” para problemas de exploração animal entre minorias políticas. Como foi dito, não se deve confundir o reconhecimento do lugar de fala às pessoas dessas minorias e do seu poder de influenciar internamente mudanças em prol dos animais com a suposta “relativização” desses problemas.

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