Introdução
A discussão acerca da proposta da Sociedade Vegana de um novo conceito, o “protovegetarianismo” e de uma definição mais rigorosa, e etimologicamente mais correta, do conceito de vegetarianismo, tem suscitado bastante polêmica no meio do movimento vegetariano e de defesa animal.
Acompanhando as discussões, tenho percebido uma linha argumentativa de objeções à nova proposta que afirma basicamente o seguinte: trata-se um “revisionismo”, que questiona uma definição já consagrada de vegetarianismo, de pouca implicação prática para a causa, excludente da ampla “comunidade” vegetariana que não se enquadra na nova definição, sendo, portanto, uma proposta de viés autoritário baseada num preciosismo conceitual. Essa releitura autoritária e excludente estaria sendo promovida por uma “elite” com vistas a impor sua visão ortodoxa, monolítica, menosprezando a “diversidade” existente no movimento vegetariano.
O próprio conceito de “revisionismo” tem em si mesmo uma carga pejorativa, associado, por exemplo, às interpretações reformistas do marxismo, uma doutrina política revolucionária; e à negação da existência do Holocausto perpetrada pelo regime nazista. Ao “revisionismo” marxista geralmente se contrapunha a acusação do “marxismo ortodoxo”, dogmático e autoritário.
Como se vê, os defensores da nova terminologia acabaram enquadrados no pior dos dois mundos: revisionistas e ortodoxos. Afora a contradição dessa dupla acusação, veremos que nenhuma das duas se sustenta. Por fim, acrescento que, longe de um preciosismo nascido do amor à teoria, a proposta de um novo conceito é de importância política e estratégica para o movimento.
Revisionismo ou resgate?
Em primeiro lugar, não consiste a proposta da Sociedade Vegana em revisionismo, mas antes em um resgate do sentido original, e etimologicamente mais preciso, do conceito de vegetarianismo.
Originariamente, o termo vegetariano se referia a uma dieta estritamente baseada em vegetais, como já apontado no texto fundamental da Sociedade Vegana sobre o protovegetarianismo, e como também pode ser consultado em diversos documentos disponíveis da seção de história da página da International Vegetarian Union na internet. Sua criação antecede a da Sociedade Vegetariana, na Inglaterra, e era definida como uma “dieta vegetal”. Não é por outro motivo que foram cunhados termos como “lactovegetariano” e “ovolactovegetariano”. Fosse “vegetariano” sinônimo de abstinência apenas de carne, esses termos seriam simplesmente redundantes.
Desse modo, se há alguma vertente “revisionista” do movimento, esta é aquela que associou vegetarianismo a uma dieta que inclua ovos e leite (o que eu chamo de “ovolactismo”, dado o apego e a centralidade desses alimentos para essa vertente). Esta é a vertente que vem se impondo no movimento desde a criação da Sociedade Vegetariana na Inglaterra, em 1847, que foi também aquela que propagou o mito de que o termo deriva do latim vegetus (forte, vigoroso), e não de “vegetal”. A pesquisa com textos de época, entretanto, desmente essa versão. A confusão foi tamanha que se propôs que a Sociedade Vegetariana passasse a se autodenominar Sociedade pela Reforma Alimentar, e sua dieta, definida como VEM (vegetais, ovos e leite, nas iniciais em inglês).
Com o passar dos anos, entretanto, a posição da Sociedade Vegetariana prevaleceu, e a confusão se impôs. E isso não teve implicações negligenciáveis. Ela perpetuou e propagou uma visão equivocada e deficiente sobre as implicações éticas de uma dieta que inclua ovos, leite, mel e outros subprodutos de animais, mesmo que não diretamente derivados de sua morte. A cegueira da sociedade, e mesmo de muitos vegetarianos, quanto a essas implicações éticas está diretamente ligada ao fato de a definição hegemônica de vegetarianismo não confrontá-las. E, como tenho defendido, não há como separar o vegetarianismo de um fundamento ético. De modo que, tanto do ponto de vista etimológico, quanto do ponto de vista ético, não faz sentido falar numa dieta vegetariana que não seja estritamente baseada em vegetais.
Se existe uma elite e uma ortodoxia no movimento vegetariano e de defesa animal, este está materializado em entidades como a Sociedade Vegetariana britânica, a WSPA e a PETA: de um lado, o ovolactismo, de outro, o bem-estarismo. São essas as ideologias hegemônicas no movimento desde sua origem, no ocidente. Esse é o dogma, a ortodoxia: aquele que legitima o uso e a exploração de animais. É contra este dogma que o veganismo tem se levantado, desde a década de 1940. Já era tempo de esta ortodoxia ser desafiada também no Brasil. É com este objetivo que surgiu a Sociedade Vegana.
Portanto, a proposta da Sociedade Vegana não é revisar um conceito e adequá-lo à sua visão do mundo, mas sim resgatar seu sentido original, e revitalizá-lo com o devido rigor ético e etimológico.
Da importância dos conceitos
E este debate vai muito além do preciosismo conceitual. Conceitos são parâmetros que orientam a comunicação, transmitem ideias e definem o horizonte de pensamento daqueles que os aplicam. A existência ou ausência de um conceito é reveladora do contexto histórico, político, social e até geográfico de um povo. A definição de um conceito tem uma importância política e estratégica, como o estudo dos movimentos políticos demonstra. Esta hipótese pode ser verificada com dois exemplos.
Em primeiro lugar, toda palavra é um conceito. Copo, vaso, garrafa, frasco e tubo são todos recipientes de líquidos. Contudo, não são conceitos intercambiáveis. Eles comunicam o contexto e o propósito com que um determinado recipiente recebe um determinado tipo de líquido. Para atestar a importância dessa diferenciação, basta pensar na enorme diferença que faz um líquido como a estricnina estar contido num frasco ou num copo.
Uma evidência da importância política dos conceitos pode ser apresentada por meio de duas inovações da Revolução Francesa: o sistema métrico decimal e o calendário revolucionário. O calendário passou a fazer referência às estações do ano (Brumário, o mês das neblinas; Termidor, o mês mais quente do verão; Germinal, o mês da germinação, e assim por diante). A semana continha dez dias – assim, deixava de existir o domingo, sem o qual os cultos cristãos deixariam de pautar a vida pública, tornando-se um culto privado, e no longo prazo perderiam sua influência. A dificuldade de manter dois calendários paralelos poria o próprio culto em perigo, mesmo na vida privada.
Da mesma forma, o sistema métrico decimal, que acabou consagrado, oferecia um sistema de medidas universal, simétrico e perfeitamente racional, diferente das medidas locais, arbitrárias, e até mesmo baseadas em medidas do corpo do rei (daí medidas como “pé” e “polegada”), que prevaleciam até então. O sistema métrico decimal e o calendário foram duas expressões do pensamento iluminista – racionalista, universalista e secular – que inspirou a Revolução Francesa. O triunfo de suas inovações seria o triunfo de suas ideias.
Todo conceito é limitado e limitante, é verdade. Daí muitas pessoas preferirem se esconder sob o discurso pseudocrítico da oposição aos “rótulos”, noutra forma de referência pejorativa. Isso nada mais é do que o medo ou indisposição de assumir compromissos, de tomar uma posição, de fazer escolhas. Coisas que, claro, são impossíveis na vida em sociedade.
Conceitos são importantes, como sabe qualquer cientista ou filósofo. Sem eles, a comunicação se torna confusa, senão impossível. E as ideias que eles comunicam são aquelas que irão pautar nossas ações. Por isso as discussões filosóficas, teóricas e conceituais não constituem mera divagação intelectual. Elas definem os parâmetros e o objetivo de um movimento. Se existe um movimento pelo vegetarianismo, faz uma enorme diferença se esse movimento advoga apenas a abstenção de carne ou a abstenção de todo alimento extraído de um animal. Essa definição também nos informa sobre o que, afinal, leva as pessoas a se tornarem vegetarianas: saúde? religião? ética? Ser vegetariano ético implica apenas se abster de matar? Ou igualmente se abster de explorar? São todas essas questões que começam a ser respondidas a partir do momento em que nós esclarecemos o que entendemos por “vegetarianismo”.
O sentido político e estratégico do vegetarianismo
Daí, então, chegamos à questão central por trás do debate sobre a definição do vegetarianismo: o sentido político e estratégico do resgate do conceito original.
Esse debate tem um efeito direto sobre o movimento pelos direitos animais. Pois aquelas pessoas que hoje conhecem o vegetarianismo como uma dieta frequentemente desvinculada de qualquer ideologia e, quando vinculada, uma ideologia reformista e bem-estarista, no futuro conhecerão um vegetarianismo alicerçado sobre o abolicionismo e os direitos animais. Um vegetarianismo que não mais legitima o uso e a exploração de animais para fins de alimentação, que expressa a dimensão dietética de uma visão de mundo mais ampla, o veganismo.
Isso significa que o ponto de partida da difusão do vegetarianismo não terá mais a ambiguidade que hoje carrega. E, desse modo, o movimento dito de defesa animal terá de enfrentar com mais clareza suas próprias contradições. Perceberá com maior nitidez a distinção entre aqueles que defendem as reformas bem-estaristas e legitimam o uso dos animais, e aqueles que de fato defendem os direitos animais, isto é, o respeito pela vida, liberdade e integridade desses animais, e a rejeição inequívoca de sua exploração para fins humanos.
Não partimos do pressuposto, como tem sido aventado, de que aqueles que nós chamamos de “protovegetarianos”, porque ainda consomem alimentos derivados de animais, irão adaptar sua dieta para continuarem a ser “merecedores” do título de “vegetarianos”. Muitos não o farão.
Nossa proposta não tem esse caráter imediatista. Ela é de médio e longo prazo, de importância vital não para alguns indivíduos, mas para os rumos de todo um movimento. Queremos suscitar o debate, levantar um questionamento amplo, que envolva não apenas os protovegetarianos, mas o movimento de defesa dos animais e do vegetarianismo, e da sociedade como um todo.
Nos protovegetarianos, esperamos provocar a reflexão sobre os limites éticos de sua dieta. No movimento pelos animais e pelo vegetarianismo, esperamos provocar a reflexão sobre quais são, afinal, seus objetivos, e até onde podemos ir na defesa dos animais sem abdicar do falso direito de explorá-los. Da sociedade como um todo, esperamos que ela tenha contato com uma concepção coerente de vegetarianismo, e que essa concepção também a desafie a questionar o especismo e antropocentrismo nela arraigados, a naturalização da exploração animal e o estatuto moral e legal dos animais.
Conclusão
O debate já está em andamento. Isso quer dizer que a proposta está cumprindo seu papel. Esperamos que desse debate saiamos com um movimento fortalecido, de propósitos claros.
Essa mudança conceitual terá um efeito direto e fundamental sobre toda a causa. O movimento em favor dos animais ganhará clareza e coerência. E a partir do momento em que a sociedade em geral entender “vegetarianismo” como dieta estritamente baseada em fontes vegetais, as pessoas que despertarem para o problema irão ver o consumo de ovos e leite como os protovegetarianos de hoje veem o consumo de peixe, isto é, incompatível com o conceito de vegetarianismo e a racionalidade por trás dele. Logo, elas não vão parar na abstenção da carne.
Claro que o vegetarianismo, nos dias atuais, não está sempre vinculado a uma objeção ética quanto à exploração animal, e assim continuará sendo, mesmo que o termo deixe de ser vinculado ao consumo de subprodutos de animais. Entretanto, para que a sua dimensão ética volte ao centro do debate, a separação conceitual entre vegetarianismo e regimes alimentares que perpetuam a exploração animal se torna inevitável.
Questionar ideias consagradas é a base de toda transformação social. O que define o caráter “autoritário” de um movimento são seus métodos e objetivos. Nós, da Sociedade Vegana, defendemos um movimento pelos direitos animais fundado sobre o método da não violência e o objetivo da abolição da exploração animal. Não há nada mais distante do autoritarismo do que esses princípios.
Por fim, em resposta àqueles que nos acusam de desconsiderar a diversidade do movimento, cabe ressaltar que a diversidade não é um fim em si mesmo. Ela deve estar condicionada ao grau de justiça e emancipação que confere à sociedade. Práticas que violam os direitos mais fundamentais dos indivíduos não podem se legitimar sobre um suposto respeito à diversidade de pensamento e costumes. Nesse sentido, um movimento vegetariano que perpetua e é conivente com a exploração animal não é legítimo. Ele o será apenas na medida em que contribua para a emancipação dos animais e sua plena inclusão na comunidade de direitos.