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Globo News promove touradas

30 de setembro de 2010
Paula Brügger
6 min. de leitura
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Causou-me perplexidade e indignação a matéria intitulada “Proibição de touradas gera polêmica em todo o mundo”, veiculada no programa Sem Fronteiras, da Globo News. Não é preciso ter estudado análise de conteúdo para perceber o lamentável viés que prevaleceu nessa peça jornalística, dando muito mais voz aos defensores da prática covarde e abjeta em questão – a tauromaquia – em comparação com aqueles que se opõem a tais espetáculos sinistros, convenientemente tratados como “tradição” em vários momentos da matéria. De fato, a própria chamada para o programa já acenava na direção dos simpatizantes das touradas quando questionava: “Por que fecha-se o cerco contra um dos maiores símbolos da Espanha?”

Sob o manto da neutralidade, a matéria enaltece as touradas ao associar ideias ou frases como  “ser toureiro é ser valente, famoso, é correr perigo de morte” a ícones da cultura mundial como Ernest Heminway (autor da frase), Garcia Lorca, Goya e Picasso “que celebraram os touros”… Se houvesse um mínimo de isenção, e a intenção fosse mesmo a de associar as touradas a pessoas de notório saber, ou excelência nas artes, a matéria teria feito menção a nomes como o “Nobel” José Saramago, que condenava essa chacina (1).

O caráter tendencioso da reportagem também fica evidente quando esta reforça, em inúmeros depoimentos, a possibilidade de a proibição das touradas na Catalunha se dever a motivos de ordem política, e não aos direitos dos animais:  “A Catalunha quer fazer uma limpeza de identidade, uma limpeza de seus traços e símbolos espanhóis”, diz um entrevistado.

A matéria macula o bom jornalismo ao privilegiar, também de forma sub-reptícia, a visão de mundo especista que marca nossa cultura. Isso fica patente em passagens como “no século XVI, o papa Pio V proibiu as touradas porque, quando o touro não era morto, podia ser usado de novo, em outros espetáculos e, como aprendia as ‘manhas’, muitos toureiros eram mortos”. Ou seja, trata-se de uma preocupação de natureza totalmente antropocêntrica e especista.

Em outros depoimentos da reportagem, “lamenta-se que os jovens não sejam educados para apreciar as touradas”, e que “a população do país Basco também esteja sendo ‘cutucada’ pelas ideias abolicionistas”. Um entrevistado  associou de forma implícita a proibição das touradas ao nazifascismo, ao dizer que esse tipo de rebeldia pode resultar em um grande problema, pois  (como naquele contexto) “busca uma pureza na História”. Já outro entrevistado, diz abertamente que “proibir uma coisa é fascismo”.

Mas talvez o depoimento mais especista e perverso seja o do escritor Edward Levine, que inicia sua fala relatando alguns danos causados pelos touros aos “matadores”  (toureiros) e dali em diante exalta, muito entusiasmado, o suposto glamour e beleza das touradas. Num tom clean, o escritor glorifica friamente o aspecto de “dança entre o animal e o homem, num cenário sem  propaganda, e com uma banda tocando ao fundo”. “Se as touradas se acabarem, destaca ele, os touros que são criados para isso também se acabarão, porque não haverá mais razão para criá-los. Isso é lamentável, pois eles são lindos… Há sangue, mas, paradoxalmente, se não houver violência, o espetáculo não será tão belo e emocionante” (sic).  A reportagem atinge aqui o seu auge em termos de pseudoneutralidade: não se trata mais apenas de festas, alegria, ou acrobacias na arena, mas de elegância, arte, erudição. A tauromaquia é definitivamente associada à expressão do ser humano em diversos contextos artísticos como a arquitetura, a música e a dança. Para piorar o “pacote de maldades”, ainda são mencionados os interesses econômicos envolvidos, sobretudo os turísticos.

Como pode um bom jornalismo fazer tal apologia à barbárie? Não se sensibilizaram os jornalistas que fizeram essa matéria com as cenas em que as pobres bestas subjugadas aparecem arfando aterrorizadas, e implodem sob seus membros trêmulos, diante dos urros da multidão ensandecida? Não perceberam o olhar de medo e doçura dos animais, sua natureza pacata, e seu desespero para tentar escapar do seu calvário? Não se deram conta de que, longe de um ato de bravura, o matador e seus numerosos “asseclas” se atiram sobre um animal que já entra na arena intimidado, psicologicamente debilitado e geralmente ferido, tal como no combate entre o gladiador Maximus e Commodus (2)? Cruel pão e circo!

A matéria é finalizada com uma reflexão sobre a famigerada farra do boi, que ocorre no litoral catarinense. Mais uma vez, sob a pretensa fachada de tratar o assunto de forma neutra, a matéria premia depoimentos de moradores da cidade de Governador Celso Ramos – “terra da farra do boi” – entre outros, que identificam a “farra” com as festas populares, com tradição, e com a alegria do povo (sic), ou seja, transmite-se efetivamente a ideia de que ser contra a farra é ser contra o povo e sua alegria (re-sic!). Exemplos de argumentos patéticos são: “A farra é menos violenta do que os rodeios, que não são proibidos no país” (dentro dessa lógica talvez seja o caso de liberar o estupro, desde que não seguido de morte, não é mesmo?); ou “a farra se tornou violenta depois da lei que a proíbe”. Esse último argumento enfureceu muitas pessoas que residem em Santa Catarina, nativas ou não, que, como eu, conhecem muito bem tal realidade e sabem que os animais sempre sofreram todos os tipos de abusos e danos físicos e psicológicos, e jamais foram consultados sobre se queriam participar ou não da violência que chamam eufemisticamente de “brincadeira”.

Vale questionar a serviço de quem, ou o quê, encontra-se tamanha ausência de isenção? Aos que lucram com os rodeios?

O bom jornalismo deveria abordar, com o máximo grau de isenção possível, os mais diversos aspectos que envolvem qualquer temática. Mesmo sabendo que a neutralidade é impossível, a boa prática procura equilibrar opiniões e depoimentos, o que não foi feito nessa matéria.

Já ouviram falar em abolicionismo animal, ou nos movimentos antiespecistas que crescem em todo o mundo? Sugiro que, numa próxima matéria que envolva o sofrimento de animais não humanos, não permitam que ideias como “festa, sem touro, não é festa”, e palavras como tradição e arte, inundem suas reportagens de forma acrítica. Em vez disso, incluam os termos apontados no início deste parágrafo e seu ideário correspondente. Ouçam e gravem os depoimentos dos defensores dos direitos dos animais. Os argumentos dessas pessoas certamente têm muito a contribuir no que tange a uma ética altruísta, à compaixão e outros valores imprescindíveis para a construção de um mundo melhor. Finalmente, como  professora, gostaria de lembrar aos jornalistas a responsabilidade que têm como educadores. E que o ideário dos velhos de idade e de espírito que defendem touradas e outras práticas igualmente vis contra seres sencientes faz parte do mesmo paradigma responsável pela destruição do planeta. Se a Catalunha não quer mais “pegar o touro à unha” (3), louvemos essa nova conduta ética.

A matéria pode ser acessada em:
http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1619342-17665-320,00.html

Notas:
(1) Com relação a José Saramago, visite:
http://matportugal.blogspot.com/2010/06/jose-saramago.htmlhttp://caderno.josesaramago.org/2009/06/29/espanha-negra/
(2) Referência ao filme Gladiador, de Ridley Scott, e à cena de combate numa arena entre Maximus (Russel Crowe) e Commodus (Joaquin Phoenix).
(3) Referência à música “Toureiro de Madrid”, de Braguinha.

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