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Reflexões sobre a dor animal

8 de março de 2012
13 min. de leitura
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Este trabalho é, ao mesmo tempo, uma homenagem e um depoimento: este relato, com os valores, sentimentos e esperanças aqui traduzidos em palavras e acorrentados pela forma, é dedicado à égua Plataforma, morta no último rodeio do qual participei como Promotora de Justiça. Desesperada pela dor, já que acabara de ser montada, relutava em atender seu condutor e voltar para o brete. Este, porque não poderia atrasar a próxima montaria, puxava-a fortemente pelo reio e ela se esticava e balançava a cabeça, tentando fugir de seu algoz, até que, ao aproximar-se do brete, recusando-se a nele ingressar, forçando seu condutor a puxá-la com mais força para tentar submetê-la, acabou batendo a cabeça no ferro da estrutura. Imediatamente caiu na arena e ali ficou. Por um segundo, tudo silenciou. Por um segundo, não havia mais palhaços, peões, narradores, música alta, piada ao microfone, palmas. Por um segundo apenas, o véu da farsa que é o rodeio caiu junto com a égua Plataforma e pode-se ver, nua e cruamente, a cara da dor, do desespero, da aflição, da tortura, da selvageria humana que é o rodeio, da morte, enfim. Mas só por um segundo. Que o seu sacrifício, Plataforma, não tenha sido em vão…

Animal, ser humano, plantas, água, terra, ar, entre outros, são elementos da natureza e compõem o que chamamos de meio ambiente. A teia da vida, como afirma Fritjof Capra[1]·, é um emaranhado de redes em constante e evolutiva interação e comunicação. Há mesmo interdependência entre todos os elementos que formam a vida na Terra, que integram Gaia. Esta interdependência pressupõe e impõe equilíbrio entre todos esses elementos. E é a esse equilíbrio que a Constituição se refere ao tratar do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Desde que se tem notícia da existência dos humanos sobre a Terra, estamos de uma forma ou de outra, interagindo com os animais, buscando alimento, auxílio para transporte, trabalho e proteção.

Essa interação sofreu brusca ruptura depois da II Grande Guerra, que implicou o avanço da pesquisa e da indústria, incrementando a busca por alimentos. Exacerbou-se, então, o entendimento de que os animais seriam objeto de consumo, culminando com o estabelecimento de um mercado ávido por novidades e quantidades e de uma economia inescrupulosamente lucrativa.

De caça, nos primórdios da vida, o ser humano passou a caçador, predador e, mais recentemente, exterminador. Os cientistas têm divulgado cifras, estudos e prognósticos que dão conta de que já se ultrapassou a linha do equilíbrio, ou seja, o que estamos consumindo, há algum tempo, extrapola a capacidade de reposição natural da Terra. Estamos começando a matar a galinha dos ovos de ouro… Em boa parte, porque a realidade atual nos mostra insuficiência de limites para o consumo, para a busca de poder e dinheiro, para a ciência, para a política, para tudo…

Deixando de lado considerações filosóficas, parece inadmissível que nossos anseios e desejos possam ser satisfeitos ao preço do sofrimento alheio, especialmente se esse alheio for um animal, ser indefeso diante da indiferença e da cobiça humanas.

Felizmente, a reação a esse estado de coisas já se faz visível.

A título de exemplo, a partir deste ano não mais serão comercializados, na Comunidade Européia, cosméticos nos quais tenham sido utilizados animais, em qualquer fase de sua preparação. Anota-se, também, que a região da Catalunha, na Espanha, acabou de proibir a tourada, seguindo o exemplo de outras cidades espanholas.

Essa conscientização tem motivado inúmeras ações, em todo o mundo, em favor dos animais e contra as inúmeras formas de utilização e abuso a que são submetidos.

Em nosso país, multiplicam-se as ações judiciais visando justamente a proibição de maus tratos, com o escopo de conferir concretude ao comando constitucional que veda a prática de atos cruéis contra os animais. Felizmente, os juízes e tribunais pátrios têm, de forma reiterada, decidido ecologicamente, colocando os animais a salvo da selvageria e violência humanas.

São sinais de evolução. Não mais se admite ignorar o sofrimento e a dor de um ser comprovadamente senciente.

Especificamente em relação aos rodeios, mesmo naquelas oportunidades em que foi possível proibir o uso do sedém, das esporas pontiagudas, dos choques elétricos e de outros instrumentos de tortura, é possível verificar que os maus tratos continuam, em decorrência de manuseio inadequado, quedas, ferimentos e mortes nos animais utilizados nas montarias e nas demais provas que integram o rodeio completo.

Não se pretende, aqui, afirmar que festas de peão de boiadeiro, ou simplesmente, os rodeios, devam ser proibidos. Pretende-se, sim, evitar o sofrimento que invariavelmente recai sobre os indefesos animais submetidos à crueldade das montarias e das demais provas, sendo certo que, para tanto, não basta proibir a utilização de subterfúgios como o sedém e as esporas. Deve ser proibida a exibição desses animais.

O espetáculo do rodeio nada mais é do que uma farsa, pois numa simulação de doma, os peões fazem crer ao público que estão montando animais bravios, quando, na verdade, são animais mansos, mas que corcoveiam em razão do desespero em desvencilharem-se dos instrumentos que neles são colocados e que lhes causam dor e desconforto.

E à farsa da “reprodução da doma”, como demonstração de cultura popular, soma-se a farsa de que o público acorre aos rodeios para presenciar o espetáculo apresentado pelos animais. Na verdade, o público ali comparece para ver a apresentação do artista, do cantor famoso que, estrategicamente, sobe ao palco assim que termina o espetáculo cruel de montaria.

Por fim, constata-se também ser uma farsa a alegação de que os eventos dessa espécie contribuem para a divulgação da cultura popular e constituem entretenimento para a população.  Na verdade, durante o período de realização da “festa” aumenta consideravelmente o registro de ocorrências policiais, especialmente de agressões físicas, furtos e roubos de veículos e casas, para dizer o menos.

O lucro visado pelos organizadores desses eventos subverte a ordem legal, porque o comando Constitucional que veda a prática de atos cruéis contra os animais é relegado a segundo plano. Além disso, é baseado na tortura e crueldade contra indefesos animais; e, lastimavelmente, ainda hoje se apoia na ignorância da população, que, se conhecesse a verdade dessa farsa criminosa, recusar-se-ia a presenciar tamanha e covarde selvageria.

É da lavra do ilustre Professor José Henrique Pierangelli[2] a constatação de que a proteção aos animais, como seres viventes capazes de sofrer, faz parte da educação civil, devendo ser evitados exemplos de crueldade que levam o ser humano à dureza e à insensibilidade pela dor alheia.

Vale recordar que o nobre advogado Dr. J. Nascimento Franco[3] já afirmava que “não é demais insistir em que o sofrimento do animal num rodeio não pode ser mensurado pela sensibilidade do peão, ou do empresário, porque o primeiro fala em função do seu exibicionismo retrógrado e o segundo (se não ambos), com os olhos postos no produto da bilheteria”.

Também a ilustre causídica Vania Rall Daró teve oportunidade de posicionar-se a respeito: “Na verdade, não existe argumento de ordem moral que possa justificar esse tipo de evento. A omissão diante da dor de um ser vivo é algo extremamente desonroso. Pior ainda é provocá-la com o intuito de lucro ou de simples entretenimento”.[4]

A Dra. Irvênia Luíza de Santis Prada[5] descreve de forma pormenorizada a constituição nervosa e cerebral dos animais, concluindo ser impossível provar que não sentem dor física ou não tenham sofrimento mental quando submetidos aos procedimentos do rodeio.

Porque há identidade de organização morfofuncional entre o sistema nervoso do homem e dos animais, os estímulos experimentados por eles são transmitidos por meio dos nervos espinhais e cranianos e chegam à região do encéfalo, permitindo-lhes processar e avaliar o que está ocorrendo, experimentando sensações de pressão, medo, pavor, dor e desespero.

Assevera aquela autoridade médica, ainda, que a virilha (ou região inguinal), em ambos os sexos e nas duas espécies (humana e animal), é particularmente sensível pela presença de estruturas relacionadas à autopreservação (sobrevivência) e à perpetuação da espécie (reprodução).

Para determinar a experiência da dor – e ainda com base no fato de haver similitude de organização morfofuncional entre os seres humanos e os animais (particularmente os mamíferos) –, a ciência utiliza-se do princípio da homologia como parâmetro, recomendando àquele que irá interagir com o animal colocar-se no lugar dele. “Em caso de dúvida, a opção mais coerente com a Ética é a de se poupar o ser que está nos servindo, da possibilidade de vivenciar dor/sofrimento, o que é válido para todas as situações em que se utilizem animais, sejam elas experimentais em ciências, didática, de obtenção dos chamados produtos de origem animal, de trabalho, esportivas ou de lazer”.

Dentre os sinais físicos da dor, verifica-se a midríase (observada tanto nos animais de rodeio, quanto nos animais que se encontram no corredor do abate), a aceleração do ritmo cardíaco, o aumento da pressão arterial etc. Além desses sinais fisiológicos, os animais expressam a dor através de comportamentos sugestivos, tais como a flexão e extensão dos membros, além de outros movimentos tendentes a retirar do corpo o agente agressor.

Ainda na senda dos ensinamentos da professora Irvênia, assim se explicam os coices, pulos, contorções do corpo e, por vezes, emissão de sons característicos, observados nos animais submetidos às provas do rodeio completo, que inclui as montarias.

Esclarece a destacada cientista que um dos conceitos básicos de metodologia da ciência atesta que “a ausência de evidência não significa a evidência da ausência”. Ou seja, a ausência de lesões corporais, tanto nos animais humanos, quanto nos não humanos, por si só, não é prova de que não tenha havido sofrimento ou maus tratos. “O sofrimento de um indivíduo – ser humano ou animal – pode surgir pelas sensações de se sentir acuado, perseguido, amedrontado ou incomodado”.

Esse conceito guarda relação com o princípio da precaução, que informa todo o direito ambiental brasileiro e, em linhas gerais, determina que na dúvida entre causar, ou não, conduta danosa ao meio ambiente (e maus tratos a animais é dano ambiental), a solução legal será abster-se de agir.

Esses princípios devem ser conjugados com o princípio constitucional da eficiência, que por sua vez, orienta a conduta dos administradores públicos, exigindo que, entre as formas de atingir determinado fim, seja eleita a ótima sob qualquer ótica, não apenas a econômica.

Assim, mesmo que alguma dúvida restasse após essa explanação, se a exibição de animais nas festas de rodeio causa-lhes profundo e cruel sofrimento físico e mental, caracterizando a prática criminosa de maus tratos, a solução coerente com os princípios e regras legais ambientais seria – como é – a proibição de tais exibições. Mais ainda, os administradores públicos, em suas esferas de atribuições, deveriam proibir a exibição de animais em tais espetáculos.

Da mesma forma que esses cultos articulistas, Capra[6] critica o modelo reducionista de ciência, ao relatar experiência realizada com bebês chimpanzés “adotados” por famílias de humanos e tratados e educados como humanos, comunicando-se por meio da linguagem dos sinais. Relata o sucesso da experiência e a constatação de que aqueles animais não apenas aprenderam a comunicar-se, demonstrando emoções em relação aos “pais adotivos”, como também transmitiram tal conhecimento para os filhotes. A partir de então, verificou-se que havia intensa comunicação entre eles, fazendo com que “mais de um cético reconsiderasse sua empedernida noção de que os animais são incapazes de pensar e de falar” (p. 71).

Noutro capítulo, após analisar a dimensão da mente humana, Capra conclui que “a visão unificada, pós-cartesiana, da mente, da matéria e da vida também implica uma reavaliação radical da relação entre os seres humanos e os animais. Os estudos de comunicação com chimpanzés demonstraram de maneiras dramáticas a falácia dessa crença. Deixam claro que entre a vida cognitiva e emocional dos seres humanos e a dos animais só há uma diferença de grau; que a vida é um todo sem solução de continuidade, no qual as diferenças entre as espécies são gradativas e evolucionárias. A lingüística cognitiva confirmou plenamente essa concepção evolutiva da natureza humana. Nas palavras de Lakoff e Johnson “A razão, mesmo em suas formas mais abstratas, não transcende a nossa natureza animal, mas faz uso dela. (…) Assim, a razão não é uma essência que nos separa dos outros animais; antes, coloca-nos no mesmo nível deles” (p. 79).

“Assim como Pitágoras, Plutarco e Voltaire, o filósofo Arthur Schopenhauer devotava louvável compaixão pelos animais todos, os quais, reconhecem, merecem ser poupados de injustos sofrimentos: “A piedade é um fato incontestável da consciência do homem: é-lhe essencialmente própria e não depende de noções anteriores, de idéias´a priori´, religiões, dogmas, mitos, educação e cultura; é o produto espontâneo, imediato, inalienável da natureza, resiste a todas as provas e mostra-se em todos os tempos em todos os países (…) Como princípio de toda a moralidade, a piedade toma também os animais sob sua proteção …”[7]

Também Piero Martinetti e Cesare Goretti sustentavam que o animal, ao contrário da preconceituosa visão humana produto do antropocentrismo judaico-cristão, é um ser inteligente, cuja vida interior difere somente em grau, não em natureza, quando comparada com a vida do homem.

As revistas especializadas trazem constantemente notícias acerca da complexidade da natureza dos animais, revelando facetas de comportamento só conhecido entre humanos, até então. Recentemente a “Current Biology” publicou pesquisas que mostravam que um chimpanzé é capaz de entender o conhecimento e a percepção que outro chimpanzé tem do ambiente, que eles têm consciência da morte.

A revista britânica “Proceedings of the Royal Society” divulgou que os chimpanzés têm “consciência de si mesmos” e, como os seres humanos, esta capacidade está ligada à capacidade de antecipar os efeitos das próprias ações sobre seu entorno.

Vê-se, portanto, que a filosofia, os estudos da ciência moderna e da bioética caminham no sentido oposto aos usos e abusos a que são submetidos os animais nos rodeios ou festas de peão que, por outro lado, configuram a crueldade proibida expressamente na nossa Constituição Federal e tipificada como crime no artigo 32, da Lei 9.605/98.

A consciência acerca da necessidade de proteger os animais já está se instalando no cotidiano das pessoas; e, embora essa proteção ainda continue a ser considerada como dever humano, espera-se que um dia venha a merecer o status de direito do animal, pois animal humano e animal não-humano, embora sejam diferentes em muitos aspectos, têm em comum a sensação do sofrimento.

 

 


[1] As conexões ocultas – Ciência para uma vida sustentável. Cultrix – Amana-Key.2002

[2] Maus-tratos contra animais. RT/fasc.Pen., v. 7654, p. 481/498

[3] Parecer emitido em 1º de julho de 1996, a pedido do Ministério Público de Cravinhos/SP, sobre livro de sua autoria e, na época, no prelo, intitulado O direito dos animais à proteção humana.

[4] Vânia Rall Daró, Consciências mortas, artigo publicado no “Jornal da Cidade” (Bauru), em 20.11.1999

[5] Professora Titular Emérita de Anatomia da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo – Artigo: Rodeio – diversão humana e sofrimento animal.

[6] Obra citada.

[7] Dores do Mundo, Rio de Janeiro, Ediouro, p. 122, citada por Laerte Fernando Levai e Vanessa Ibarreche, Promotores de Justiça, em ação civil pública ambiental proposta em julho de 2002 na Comarca de São José dos Campos/SP.

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