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Quem tiver olhos de ver, que veja

19 de março de 2012
4 min. de leitura
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Por Ana Cardilho
em colaboração para a ANDA

(Foto: Reprodução/Care 2)

Vamos fazer um acordo? Você me conta, descreve com detalhes, uma cena importante da sua vida. Pode ser um dia de sol, na praia, no campo, dentro do mar ou nas águas de um rio. Você também pode falar sobre um dia de chuva, de neve, quem sabe? Ou talvez uma noite de natal da sua infância… Mas, você deve descrever todos os detalhes para eu conseguir imaginar a cena dentro da minha escuridão, certo?

E, em troca, eu explico para você como é nascer e viver sem olhos, sem a visão.

Mas, veja, não me queixo. Se você acha que sou uma gata reclamona, mau humorada, infeliz, está redondamente enganado. Começando que, nós felinos, somos seres naturalmente leves, alegres, sem estresse. Afinal, temos 7 vidas, não é? Um privilégio e tanto.

Então, vamos lá? Eu começo. Minha primeira vida começou quando nasci com vários irmãozinhos. Nossa mãe me lambeu bastante, com especial atenção para meu rosto. Ela passava a língua áspera sobre o local onde seriam meus olhos. Digo “seriam” porque, na verdade, eles nunca foram. Nasci com uma diferença genética, meus olhos não se formaram. Não sei explicar. Minha mãe lambeu, lambeu, e não ficou satisfeita com o resultado. Percebeu que eu era diferente do restante da ninhada. E por isso, acabei um pouco mais mimada que meus irmãos. Nós fomos crescendo, eles logo foram adotados, e eu fiquei com minha mãe, na casa de nossa tutora.

Quando cheguei à adolescência, meus hormônios gritaram… Eu queria ganhar as ruas, conhecer a vida lá fora. Dei muitos beijos na minha mãe, agradeci de coração à tutora que havia cuidado de nós, mas peguei a estrada. Pelo cheiro, já que não enxergo. A falta de um sentido aguça os demais. Conquistei minha liberdade concentrando-me na audição, por exemplo. Afiando meus ouvidos pude escapar de todos os perigos que andam sobre rodas, motorizados ou não. Senti, absorvi, engoli, alimentei-me de todos os cheiros, de todos os perfumes que pude captar. Depois de um tempo nas ruas, eu já sabia a diferença entre uma grama fresca, molhada de orvalho, e um asfalto recém colocado. Eu podia imaginar as cores das plantas, das flores, usando meu super tato, meu ultra olfato. Andei, corri, pulei, coçei as costas em muitos jardins. Percebi que os humanos podem ser cruéis, e desses eu fugia antes de ter problemas… Sentia neles um cheiro ruim, cheiro de maldade. Mas, também descobri que há humanos que cheiram muito bem, algo docinho, parecido com cheiro de fruta, gostoso da gente sentir. Desses eu podia me aproximar e garantir com eles um pouco de água fresca, uma comidinha, um carinho. E fui vivendo. Quando completei 2 anos, decidi conquistar um porto seguro. Já tinha visto, ops, já tinha sentido de tudo, cheirado de tudo, provado de tudo… agora sim, poderia ter um endereço fixo, um tutor, uma casa pra chamar de minha.

Foi então que conheci minha atual tutora. Ela chegou devagar. Percebi no ar que ela estava comovida por eu não ter olhos. Gostei do tom da voz dela, algo manso, algo que me trouxe paz, vontade de me aproximar. Quando ela me carregou, gostei do colo. A pele dela exalava um perfume de alfazema. Gente boa. Resolvi adotá-la. Apesar de ela já ser tutora de um cachorro, achei que podia me dar bem com o au, au. Ele me lambeu de cara, na cara… Você sabe como são os cães, né? Mas, gostei do cheiro do pelo dele, do nariz molhado, do gosto da saliva que ele espalha pela casa enquanto brincamos. Peguei rapidamente o jeito da casa. Sei, mesmo sem olhos, desviar de uma mesinha no caminho. Minha tutora é boa demais, fica tentando antecipar meus passos e retirar as coisas do caminho. Mas, nem precisa. Posso saltar das escadas, sobre tudo, pular do sofá e ainda pegar uma carona no dorso do meu irmão que late. Nossa vida é muito boa. Ganhei um nome legal. De menino, mas eu sou uma gata evoluída e não me apego a essas tolices de gênero. Meu nome é Stevie Wonder. Isso porque minha tutora disse que eu tenho um miado doce, musical.

É isso. Já contei a você como é viver com 5 sentidos: olfato, paladar, tato, audição e intuição. Agora é sua vez. Conte alguma coisa bem legal da sua vida. Afinal, você tem 6 sentidos, né? Não pode reclamar de nada, deve ser muito feliz.

E se não for… Puxa, não perca mais seu tempo! Mude, vá viver algo intenso, e depois volte para me contar a história. Eu espero. Como já lhe disse, tenho 7 vidas…

Ana Cardilho é escritora e jornalista. Com um olho na realidade e outro na prosa imaginária conta com mais de 20 anos de experiência em rádio e TV, tendo feito reportagens, edição e fechamento de telejornais e programas, e é ficcionista.

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