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Um presente de aniversário

30 de outubro de 2013
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Poucas horas antes do dia 25 de outubro, uma quinta-feira em São Paulo, recebi um telefonema próximo das duas horas da tarde anunciando que três chimpanzés do grupo de Noel tinham fugido do seu recinto no santuário de Sorocaba. Aquele dia São Paulo estava sitiada pelo tráfego e acidentes nas marginais, uma carreta tinha tombado na Marginal Pinheiros e, desde cedo quilômetros de congestionamento se acumulavam.

Sair da cidade era tão complicado como convencer os três chimpanzés jovens, atléticos, cheios de curiosidade, de que deviam voltar para sua casa. Os tratadores mais antigos – René, sua esposa, Nana, e Jurema acompanharam seu desenvolvimento durante anos e conseguiram ficar perto deles em sua  aventura daquela quinta-feira, 24 de outubro.

Carlos (Foto: Divulgação)
Carlos (Foto: Divulgação)

Dois anos atrás, uma fuga parecida tinha acontecido durante uma tempestade com muito vento, em que uma árvore tinha encostado no muro e eles conseguiram fazer o trabalho restante, para convertê-la em escada e escapar.

O recinto deles é muito grande, nele cabem dois ZOONITS – Zoológico de Niterói – fechado pelo IBAMA poucos anos atrás. Nós mantemos os galhos cortados, mas tinha um setor com eucaliptos de quase 20 metros de altura, que, numa ventania como a última, não resistiu e se curvou para o recinto deles.

O primeiro contato do grupo – Noel (16 anos), Carlos (13 anos) e Cláudio (12 anos), todos criados por nós no Santuário desde bebês – foi no que os  chamamos à Escolinha, que é o dormitório do grupo de Guga. As duas tratadoras estavam limpando o túnel e Noel pegou na perna da Jurema. Quando percebeu quem era, começou a correria. Elas entraram na Escolinha, mas como a porta externa estava aberta, Cláudio já tinha entrado por ela e deu de frente com ele. Em nenhum momento o grupo tentou agredir os tratadores; eles queriam evitar de serem capturados queriam fazer sua bagunça. Nana e Jurema conseguiram entrar na casa, que está toda conectada com a Escolinha, alertaram os outros funcionários e refugiaram uma funcionária mais nova no  “quarto de pânico”, que é meu dormitório.

Noel (Foto: Divulgação)
Noel (Foto: Divulgação)

Nana avisou René por celular, que estava limpando um recinto, e ele foi ver Tião, o quarto do grupo, que ainda não tinha fugido. Quando ia tentar, René o chamou, lhe ofereceu uma Coca-Cola e conseguiu prendê-lo. Tião é mais complicado, já que é perturbado mental por ter morado uma parte de sua adolescência em circo.

Enquanto tudo isto acontecia, eu tentava sair de São Paulo, vencendo o trânsito infernal. Os chimpanzés visitaram todos os recintos próximos da casa, arrumando encrencas com os que estavam lá dentro, que não gostavam do assédio de Noel e seu grupo. Num momento, chegaram ao recinto das bebês. Jimmy, o pai adotivo, estava desesperado. Ele nunca imaginou ter que se ver  com três chimpanzés jovens, fortes e desconhecidos, que só enxergava à distância. Noel queria talvez pegar Suzi (2 anos), que estava numa das janelas, em sua inocência. Jurema estava no corredor, saiu para desviar a atenção de Noel, que foi atrás dela e se esqueceu de Suzi. Ela se trancou no recinto e chamou as bebês para que saíssem das janelas. Noel, furioso, quebrou dois vidros com uma pedra, porém, sem conseguir entrar.

Cláudio (Foto: Divulgação)
Cláudio (Foto: Divulgação)

René que está com eles desde pequenos os acompanhou em sua visita ao Santuário, mas eles não avançaram muito; só ficaram na área ao redor da casa, dos recintos que eles conheciam e dos animais pequenos. Num momento Noel sentou frente a um recinto de saguis e tentou abrí-lo para soltá-los, mas não conseguiu arrombar o cadeado.

Noel era o líder da turma. A veterinária Camila conseguiu por uma janela  jogar um dardo em Cláudio, porém ele o arrancou e a anestesia teve pouco efeito.

Quando cheguei, Jurema e Nana tinham convencido Noel a entrar na cerca elétrica que Guga usa, que estava livre, e saíram correndo por outra porta.Nesse momento, eu abri a casa, já que esse era o chamariz. Todos eles passaram pela casa quando bebês. Carlos não me reconheceu de imediato, porque eu estava com roupa social, mas quando falei com ele, me identificou.Ele sentou, eu o abracei e o levei para casa. Aí apareceu Claúdio, que também me abraçou. Abri várias portas e ambos entraram na casa. Depois as fechei e fiquei com eles lá dentro. Os levei para o meu quarto, que é o do “pânico” e que tem uma passagem para os recintos de Guga.

Porém, percebi que tinha alguém dentro. Marisa, uma funcionária nova e que estava lá refugiada e eles não a conheciam. Ai pedi para Jurema que entrasse por dentro dos recintos e a tirasse de lá, para eu poder entrar com os chimpanzés e foi o que aconteceu. Eles não fizeram nenhuma bagunça na casa enquanto esperávamos para entrar na passagem da Escolinha.

Noel continuava na cerca elétrica, aí entrei com ele, pedi para abrir o túnel, que dá acesso à Escolinha e ele entrou. Essa noite eles dormiram na Escolinha, já que no dia seguinte devíamos fazer algumas operações, a fim de levá-los por dentro do recinto de Guga aos seus recintos originais.

Nunca foi necessário aplicar o Plano Alternativo, que seria atirar anestésico à distância com pistola ou espingarda. Só precisávamos ganhar tempo até eu chegar e poder convencê-los a voltar, como aconteceu. Durante todo tempo da fuga, o resto dos funcionários ficaram em recintos seguros. O importante é que os chimpanzés não encontrem pessoas estranhas e possam se sentir ameaçados, já que aí podem reagir.

Eles são espertos, em nenhum momento foram ao setor dos felinos nem dos ursos, nem ao setor do Santuário onde estão os chimpanzés mais perturbados, que eles não conhecem. Eles só ficaram em território conhecido. Afinal, quando eram bebês, andaram por tudo aquilo diariamente e que hoje está cheio de construções.

Não pensem que uma experiência dessas não afeta ninguém. Depois um dá risadas do acontecido e das reações das pessoas e animais. Tivemos que trancar os cachorros e os gatos se livraram de ser pegos por conta própria. Esse presente de aniversário que Noel e seu grupo me deram será o mais  inesquecível, possivelmente, de minha vida. Não acho que em 74 anos de vida, nos quais já
vi muita coisa inusitada, uma emoção superior a esta exista.

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