Antes de decidir se deita na sacadinha ou se se enrosca nos meus pés, a cachorrinha me olha à espera de um sinal que convide para a proximidade ou que aprove a escolha da nesga de sol que ainda bate fora. Como não respondo, dá quatro voltas sobre um eixo imaginário e se deixa cair na almofada que é antes propriedade dos gatos. Não a conheço muito ainda, e ela tampouco sabe como sou e das manias da casa. Recolhi-a há menos de uma semana e, como o estado fosse muito deplorável, levei-a ao veterinário, onde ficou por alguns dias até ter alguma coisa parecida com alta. Os ossos ainda espetam o couro, e o pelo é malhado pelas falhas. Tem todos os pendores para concorrer em algum macabro concurso de cão mais feio ou cão mais debilitado ou cão mais assustador ou, por fim, o que me comoveu, cão mais necessitado. Não há parte desse corpo que não precise de algum cuidado. A parte da orelha que estava pendurada, resultado da bicheira que comeu-lhe alguns pedaços, foi amputada. Olhos e nariz secretam coisas misteirosas. Alheia à sua estética e talvez a suas dores, ela agora se esparramou na almofada e puxou o suspiro mais longo que essas paredes já ouviram.
Os gatos não são assim: se chegam a um estado tão horripilante, se escondem. Não sabemos deles, voltam às penumbras, misturam-se aos seres das sombras nos bueiros até morrerem de vergonha ou de fome.
A cachorrinha exibia sua feiúra e sua moribundice entre muitas pernas na rua mais movimentada da cidade. Ser chutada não era motivo para não insistir em mostrar-se, em querer disputar um resto de comida, em tentar encarar os algozes na esperança de que algum mudasse de ideia.
Depois de examinar na sua volta se não teria por tutor algum humano tão maldito quanto ela – e também porque precisasse fazer hora até a consulta-, passei a segui-la. Fora os momentos em que precisava desesperadamente se coçar, andava muito rápido, parecendo ter certeza de para onde deveria ir. Mas não havia esta certeza, ela já dera voltas, entrara em becos, voltara pelo mesmo beco depois de cheirar à direita e à esquerda. Não, ela não tinha tutor, não tinha certezas, não tinha para onde ir. Mas eu tinha. Nem tutor nem certezas, apenas aonde ir.
Foi, porém, a primeira vez em que faltei à consulta. Não sou do tipo de desmarcar, nem deixar esperando, nem mesmo me atrasar.
Não era exatamente receptiva a companhia na sala de espera do veterinário. As senhoras boas, bem vestidas e aflitas não estavam acostumadas ao espetáculo que oferecemos eu e a cachorrinha. Apesar de ser a mais desafortunada, só ela parecia feliz contra a parede em que, ornando nossas cabeças, um grande pôster continha imagens de mais de 50 exemplares de animais de raça, seus nomes estrangeiros, e por isso importantes, abaixo das fotos. De vez em quando se mexia no meu colo e me olhava. Ao me reconhecer, Maurício abriu um sorriso que logo desmanchou ao ver as marcas de sangue na minha blusa e, mais abaixo, a coisa feia. Nesse momento, quis desesperadamente lembrar um nome para poder me referir à cachorrinha superando sua condição de ser genérico. Em seguida, lá estava ela furando a fila das schnauzers e das poodles, escarrapachada na mesa gelada do meu senhorio de tempos passados. Ela já não estava muito feliz, embora nos olhasse sempre com muito agradecimento. Rabo para enfiar no meio das pernas já não tinha, mas ficava curva como se ele, o fantasma do rabo, estivesse ali grudado na barriga. Quando me despedi dela, ficaria internada para as cirurgias mais emergentes, saiu um espontâneo tchau, Paloma.
Mas foi só um momento de inspiração não confirmada. Não há nada de Paloma na mancha marrom cuja respiração relaxada sobe e desce na almofada dos gatos na sacada. Não posso gastar o tempo que gostaria vendo seu sono, nem buscar na memória afetiva um nome que combine com ela. Tenho coisas a fazer, e são tantas que uma súbita confusão mental se apossa da minha razão. Deito um instante para pôr ordem nas ideias e caio no sono.
Vou acordar apenas quando as batidas na porta me pareceram exageradas para uma ocasião normal. Na hora não me ocorre que as batidas que ouvi não eram as primeiras, nem as segundas, talvez fossem as últimas vigésimas. (a história continua, só que em outra mídia). Aqui fica um apelo a quem teve a generosidade de chegar a este fim: adote um animal de rua. Não compre animais, não seja racista, não deixe morrer e não faça parte da morte de animais, sejam cães, gatos ou de qualquer espécie.