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Como salvar as alpacas das mudanças climáticas na altitude peruana

12 de fevereiro de 2022
9 min. de leitura
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Alina Surquislla Gomez segura uma alpaca-bebê. Sua família trabalha com o animal há três gerações e testemunha os impactos das mudanças climáticas nos rebanhos, que sofrem com estações chuvosas imprevisíveis e pastagens cada vez mais secas no Peru (Foto: Alessandro Cinque)

Rufino Quico se lembra de como era a vida quando o pasto onde está a sua propriedade ficava verde e, a cada mês de novembro, as chuvas da primavera na alta planície andina mantinham alimentado seu rebanho de 380 alpacas.

Nascido na própria Lagunillas, Quico vive na mesma casa de seus antepassados, na qual a família cria as alpacas, um mamífero típico do sul do Peru. Agora, aos 57 anos, ele não tem certeza de que seus filhos serão capazes de seguir seus passos – ou mesmo se seu querido povoado, localizado a mais de 4 mil metros acima do nível do mar e que abriga 56 famílias de pastores de alpaca, sobreviverá às próximas décadas à medida que as mudanças climáticas refazem a paisagem.

“Nossos pastos deveriam estar verdes, mas olhe para eles. Eles estão amarelos e têm pouca utilidade para o rebanho”, contou Quico, enquanto observava a vasta extensão de grama murchando sob sol intenso e céu azul cristalino de Puno, no sudeste do Peru.

As mudanças climáticas nos Andes reescreveram padrões que afetam as alpacas em todas as fases de sua vida — desde o aumento da mortalidade de recém-nascidos até o encolhimento das pastagens onde os rebanhos adultos se alimentam. As mudanças abruptas na precipitação, bem como o derretimento do gelo à medida que o frio dá uma trégua, impactam tanto a criação desses mamíferos, quanto as comunidades que os pastoreiam.

As terras altas peruanas não são exuberantes e registros históricos mostram que a precipitação de chuvas nunca foi abundante. Mas era o suficiente para sustentar as alpacas. Elas dão à luz apenas nos três primeiros meses do ano, durante o período chuvoso. Agora, essa estação outrora confiável, que modera as temperaturas, tornou-se errática. As alpacas são muito sensíveis ao frio, e às oscilações bruscas nas temperaturas, incluindo as estacas frias que mataram milhares delas, estão tornando os rebanhos vulneráveis a doenças e contribuindo para uma maior taxa de mortalidade entre animais recém-nascidos.

Rodolfo Marquina, chefe da Descosur (organização sem fins lucrativos que trabalha no desenvolvimento econômico no sul do Peru), disse que as mudanças climáticas “têm impactos para todos os aspectos da criação da alpaca”.

Complicando a situação está o retrocesso dos glaciares, que reduz os fluxos de córregos que, segundo especialistas, há muito tempo mantêm as altas pastagens e zonas úmidas durante a longa estação seca, entre abril e novembro. Um hectare de gramíneas densas, que crescem o ano todo, pode facilmente abrigar 25 alpacas, enquanto um hectare de pastagem regular é apenas suficiente para um animal sozinho pastar, diz Oscar Cárdenas, que lidera programas de estudo de alpaca para o Instituto Nacional de Inovação Agrária (Inia), um centro de pesquisa do governo.

“Os glaciares são a base”, conta Cárdenas. “Se os pântanos sumirem, as alpacas desaparecerão com eles.”

Oscar Vilca, responsável pelos glaciares do sul no Instituto Nacional de Pesquisa de Glaciares e Ecossistemas de Montanha do Peru, tem alertado sobre o assunto já há algum tempo.

De acordo com o instituto, a cobertura dos glaciares peruanos caiu de 2,4 mil quilômetros em 1962 para 1,1 mil quilômetros em 2016, último ano em que um inventário nacional de glaciares foi realizado. Os números representam uma redução de 53% em 54 anos. “As mudanças climáticas estão afetando o potencial hidrológico da região”, diz Vilca. “Isso tem um impacto nas alpacas, nas pessoas e também nas comunidades que dependem dela para sua subsistência.”

A história das alpacas no Peru

O Peru abriga cerca de quatro milhões de alpacas, mais de 70% da população mundial da espécie, de acordo com o Inia. A vizinha Bolívia tem a segunda maior população, menos de 10% do total. A Austrália, onde as alpacas foram introduzidas em 1980, ocupa o terceiro lugar.

Domesticado no Peru há pelo menos 6 mil anos, o animal é membro da família do camelo e parece robusto, diz Cárdenas. Mas considerar apenas uma variável, como o declínio de nutrientes em gramíneas de pastagem, pode dizimar rapidamente as populações restantes. No século 17, os rebanhos tendidos pelos incas foram todos exterminados depois que os conquistadores espanhóis chegaram, em 1532. Abatidas para servirem como alimento e expostas a doenças fatais — principalmente as transmitidas por ovelhas e cabras importadas por colonos europeus — as alpacas do Peru foram quase completamente eliminadas em um século. As populações de alpaca começaram a se expandir por volta de 1900, principalmente à medida que a demanda por lã crescia.

Cárdenas explica que as mudanças climáticas podem não provocar a morte em massa, mas uma consequência imediata é a alteração nos chamados “casacos dos animais”, tornando seu pelo menos valioso. Existem duas variedades de alpaca: a huacaya, que possui pelos curtos, e a suri, que tem fios longos. Cerca de 80% das alpacas no Peru são huacayas e 12% suris – o resto é fruto de reprodução cruzada com lhamas e vicunhas, um primo não-domesticado da família do camelo.

Os rebanhos de alpaca do Peru produzem cerca de 7,6 mil toneladas de lã anualmente. Os adultos, que podem pesar cerca de 140 kg, produzem 4,5 kg de lã ao ano. O pelo é categorizado por cor e qualidade: existem 22 tons de lã, mas o branco é o mais comum e também o mais procurado. Ele possui sete categorias de texturas, que vão desde o superfino, de preço mais valorizado, até o curto e grosso, que costuma ser descartado.

O pelo é usado principalmente em vestuário, mas também em cobertores e utensílios domésticos. O Peru exportou o equivalente a cerca de R$ 651 milhões em lã de alpaca nos primeiros sete meses de 2021, número semelhante aos pré-pandemia; em 2020, a pandemia causou uma queda na indústria dessa matéria-prima. As exportações vão, principalmente, para  China,  Itália e  Estados Unidos.

Projetos para salvar as alpacas

 

Alguns criadores de alpacas chegam a migrar seus rebanhos para cima e para baixo nas montanhas quatro vezes por ano, à medida que as mudanças climáticas dificultam encontrar comida boa para os animais. Elas podem se deslocar por até três meses durante os movimentos sazonais (Foto: Alessandro Cinque)

Nos últimos anos, uma variedade de cientistas, pastores e ativistas começaram a testar soluções para reforçar a sobrevivência das alpacas, o que, por sua vez, ajudará a salvar as comunidades que as criam, como Lagunillas. No Centro de Pesquisa e Produção Quimsachata do Inia, em cuja sede fica na maior reserva genética de raças de alpaca, a equipe de Cárdenas trabalha em um projeto com genes. Ele usa aproximadamente 3,2 mil animais para preservar os genes das alpacas coloridas, a fim de garantir que as cores não desapareçam. O centro também está focado no desenvolvimento de métodos para ajudar as alpacas a se adaptarem ao aumento das temperaturas em grandes altitudes e a prosperarem em terras mais baixas.

“O clima está louco – instável – e isso traz inúmeros problemas. Além dos desafios nutricionais causados por pastagens mais fracas, estamos lidando com questões parasitárias por causa das mudanças climáticas. Vemos um aumento de sarna, piolhos e ácaros em altitudes onde antes não existiam”, afirma Cárdenas.

As alpacas podem sobreviver em planícies, que é como os rebanhos se expandiram em lugares como a Austrália e os Estados Unidos, mas seus casacos crescem grossos. Nesse caso, o pelo pode ser usado para chapéus e luvas, ou cobertores e tapetes, mas não pode ser fiado em fios finos para roupas de alta qualidade. Em temperaturas mais quentes, as alpacas também sofrem de doenças que não ocorrem em áreas altas, exigindo medicamentos caros e difíceis de se obter – e os quais podem afetar a qualidade do pelo.

O Inia também trabalha com comunidades para desenvolver soluções com alguma tecnologia, incluindo a construção de barracas que podem abrigar rebanhos, ou incentivando o cultivo de forrageiras mais resistentes, como o trevo, que podem complementar as dietas dos animais durante a estação seca. O Ministério da Agricultura peruano lançou, em 2020, um programa de três anos para instalar 2,3 mil barracas de gado em comunidades andinas altas.

Os próprios criadores de alpaca também trabalham em soluções. Aqueles com terras amplas são capazes de mover rebanhos em busca de pastos, por exemplo. Alina Surquislla, 35 anos, cuida de 500 alpacas em um pedaço de terra acidentado na região de Apurimac, a oeste de Puno. Ela e sua família deixam o rebanho em elevações mais baixas, em torno de 4,2 mil metros de altitude, durante a estação chuvosa, movendo-os gradualmente para lugares mais altos à medida que as chuvas terminam e os pastos começam a amarelar. Surquislla leva as alpacas para acima de 5 mil metros de altitude para procurar pastos. A família, que a acompanha, também perfura poços onde para buscar água.

Em Lagunillas, Cristina Condori, de 49 anos, dependeu da precipitação durante a estação chuvosa para manter suas 200 alpacas. Agora, Condori e sua família recorreram à tecnologias pré-colombianas para construir canais de barro a fim de prender água em pequenos reservatórios forrados com plástico e evitar que a água se infiltre no solo. Eles também têm perfurado poços onde podem.

“Minha família tem tentado encontrar soluções, porque esse é o nosso sustento e é o que temos feito há gerações”, diz ela.

Tradicionalmente, as alpacas vagam livremente pelos prados. Agora, contou Quico, a comunidade está construindo cercas pela primeira vez. Tudo para gerenciar melhor onde os rebanhos pastam e dar aos pastos a chance de se recuperar. De pé nos degraus da pequena igreja do vilarejo, ele olha os picos estéreis à distância, agora descobertos de seu gelo glacial.

“As mudanças climáticas são alarmantes”, diz. “Mas estamos fazendo o que podemos para nos adaptar. Estamos constantemente procurando as melhores soluções.”

Esta história foi produzida em parceria com o Pulitzer Center.

Fonte: National Geographic

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