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Matar barata, ter pena de abelha

20 de dezembro de 2017
3 min. de leitura
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Foto: Marcio de Almeida Bueno
Barata capturada em pote

Quando criança na escola, lembro daqueles exercícios de ligar figuras afins. A gata com os gatinhos, a cadela com os cachorrinhos, a vaca com um copo de leite, a abelha com um pote de mel. Nessas lições também se falava sobre animais úteis e animais nocivos. A diferenciação era clara, e tudo isso valia nota na hora da prova. Eu era um bom aluno.
Mais ou menos nessa época, lembro de um dia chegar em casa eufórico e contar para a minha mãe que eu tinha matado um louva-a-deus. Eu estava certo de que havia feito o bem, colaborado com a coletividade – tal como se devia matar aranhas, cobras, escorpiões. “Mas para que matar o louva-a-deus?”, questionou minha mãe, entre o espanto e a indignação. Eu fiquei sem resposta, a pergunta suspensa no ar antes de se espatifar no chão. Ninguém pisava nas formigas, e então o louva-a-deus também mereceria nosso respeito? Uma lição materna a mais.
Trinta anos depois, como ativista, brigo com o mundo para desconstruir preconceitos, e aqui o especismo. Seus tentáculos invisíveis envolvem as ‘pessoas de bem’, defensores de animais, protetores, vegetarianos, veganos e até a intelligentsia da causa animal. Seja no linguajar cheio de ‘porcaria, burrice, asneira, besteira, cachorrada, galinhagem’, seja na tolerância com o sofrimento alheio na hora das compras em supermercado ou na revolta seletiva contra esta violência, mas não contra aquela.
Abre parênteses. Ontem vi por acaso a foto da reunião natalina de um ‘grupo ativista’ famoso pelas posições bem-estaristas cheias de orgulho e amor. Na mesa, a lata de uma cerveja famosa por patrocinar tudo quanto é rodeio e vaquejada aqui neste país. Um brinde! Fecha parênteses.
Então a discussão antiespecista parece estar indo para o final da fila, nesta onda de vegetarianos-estritos-e-olhe-lá-que-usam-crachá-de-vegano. As redes sociais estão cheias deles.
E eu também ando cheio deles.
Sempre há baratas na cozinha aqui de casa. Capturo com um pote e jogo no jardim do prédio. Falar isso na Internet – essa terra de ninguém, onde todos manjam horrores sobre qualquer assunto – é abrir comportas para uma enxurrada de indagações, piadas, preconceitos, senso comum, palpites-de-vó-chata e estranhamento. E não me refiro a gente fora do círculo da causa animal, alheia a qualquer debate e dilemas éticos na nossa relação com os não-humanos. Me refiro a essa turma descolada, viajada, com tatuagens estratégicas, barba-padrão, óculos esquisito, vestido de Luluzinha e celular na mão, sendo conferido a cada instante. Vocês, jovens.
Então a pessoa não consome mel para não explorar as abelhas – esses insetos fofos! – mas dá risada de alguém que diz não matar baratas. Ou dá dica de uma boa fórmula caseira de veneno ecológico. Claro, precisamos nos preocupar com o planeta.
‘Ah mas eu tenho medo’, ‘ah mas elas voam no meu cabelo’, ‘ah mas elas passam doenças’, ‘é bicho do demonho’, ‘tem que dar chinelada e pronto’, e todas aquelas frases que o senso comum faz as pessoas repetirem, tal como aqueles marionetes sentados no colo do humorista. Até a voz caricata é parecida. Mas entre uma série do Netflix e outra, esse pessoal desdenha porque aprendeu firme a desdenhar, a relativizar a dor, a ser seletivo na compaixão com os não-humanos, a colocar o interesse das pessoas até mesmo dentro do veganismo antiespecista – que seria a única movimentação 100% em prol dos demais habitantes deste planeta.
Eu fui um bom aluno porque aprendi a ter o prazer de aprender coisas novas e desconstruir as lições ultrapassadas. Hoje sou vegano e não como mel. E não mato barata.

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