EnglishEspañolPortuguês

PESQUISA

Macacos-prego também usam ferramentas como os humanos

Graduando em Ciências Biológicas, Lucca Fanti destaca os possíveis impactos das mudanças climáticas e da ação humana na cultura de uso de ferramentas dos macacos-prego que vivem no Parque Nacional Serra da Capivara

13 de junho de 2022
4 min. de leitura
A-
A+
Macaco-prego utilizando pedra como ferramenta (Foto: Arquivo pessoal / UFRGS)

Um dos mais interessantes exemplos de primata com habilidades cognitivas que permitiram o surgimento de uma cultura inovadora, dinâmica e estável encontra-se no Brasil. Os macacos-prego da espécie Sapajus libidinosus são capazes de utilizar ferramentas em ambiente natural. Habitante do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC, reserva dentro do bioma semiárido da Caatinga), a espécie destaca-se por apresentar um repertório amplo e uma história antiga de utilização de ferramentas. Nosso grupo de pesquisa, composto por membros do Laboratório de Evolução Humana e Molecular (LEHM) da UFRGS – coordenado pela professora Maria Cátira Bortolini – junto com colaboradores, têm contribuído com análises genéticas, ecológicas e evolutivas desses macacos-prego. Somam-se a esse trabalho vários anos de observação de campo e estudos comportamentais liderados pelo pesquisador Tiago Falótico, da USP, e sua equipe.

Durante longo tempo, a existência de uma cultura de uso de ferramentas era vista pelos cientistas como característica inerentemente humana. A utilização de ferramentas – que requer inovação e sofisticado aprendizado social através das gerações – foi vista até mesmo por Darwin como característica definidora da humanidade, uma peça-chave capaz de nos separar dos demais animais. Na década de 1960, entretanto, a jovem primatóloga britânica Jane Goodall partiu para a Tanzânia, na África, para observar chimpanzés em seu habitat natural. Ela observou que os chimpanzés fabricavam e utilizavam ferramentas, como gravetos modificados para capturar formigas. Os mais jovens observavam os adultos e tentavam reproduzir seu comportamento, indicando que esses primatas não humanos eram plenamente capazes de utilizar ferramentas, pois conseguiam inovar e aprender observando o comportamento alheio. A descoberta de Goodall quebrou um paradigma: a utilização de ferramentas não poderia mais ser uma característica definidora da humanidade. Outros grandes símios (grupo de primatas que inclui humanos, chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos) também eram capazes de utilizar ferramentas em ambientes naturais.

No caso brasileiro, os macacos-prego (Sapajus libidinosus) do PNSC selecionam e utilizam pedras, por exemplo, como marreta e bigorna para abrir e consumir frutos ou sementes de casca dura ou para escavar raízes comestíveis. Além disso, esses macacos podem preparar alguns gravetos, que são enfiados nas frestas de paredões rochosos para retirar pequenos lagartos de seus esconderijos, que então são capturados e consumidos. Até mesmo a demonstração de interesse por um parceiro sexual pode ser feita utilizando pedras; nesse caso, as fêmeas jogam pedras no chão próximo do macho que lhes chamou atenção – este comportamento inovador começou com uma única fêmea e em pouco tempo as demais a imitaram.

O aprendizado social é notável entre esses macacos! Os jovens se aproximam e observam com curiosidade os adultos que utilizam as ferramentas habilmente. Por sua vez, os adultos permitem, com muita tolerância, a aproximação dos jovens, garantindo que a cultura seja transmitida para as próximas gerações. Escavações arqueológicas conduzidas no PNSC indicam que a população de macacos-prego da região utiliza ferramentas em seu cotidiano há pelo menos 3.000 anos, uma cultura de antiguidade impressionante.

A descoberta desta cultura de utilização de ferramentas entre macacos-prego do PNSC quebrou outro paradigma: primatas com parentesco muito mais distante dos humanos também seriam capazes de utilizar ferramentas, apresentando um repertório de técnicas no uso de pedras ainda mais amplo do que o observado entre chimpanzés. Algumas décadas atrás seria impensável sugerir que macacos-prego tivessem uma cultura de utilização de ferramentas tão complexa e antiga.

A cultura desses macacos está fortemente vinculada a algumas plantas com frutos ou sementes com cascas duras que são quebrados para acessar o conteúdo nutritivo. Nossos estudos genéticos, ecológicos e evolutivos, ainda não publicados, mostram que a população do PNSC expandiu durante o surgimento do semiárido da Caatinga. Nossas análises de projeções de distribuição geográfica indicam, ainda, que os tipos de plantas mencionados estavam disponíveis no mesmo período, apontando para seu papel-chave na história evolutiva desses macacos.

Entretanto, ações humanas e mudanças climáticas ameaçam a Caatinga de desertificação, e essas espécies de plantas, tão importantes para os macacos-prego, podem desaparecer.

Em projeções geradas com dados de nosso trabalho, podemos observar que duas espécies vegetais consumidas pelos macacos com auxílio de ferramentas terão sua distribuição drasticamente afetada no ano de 2050. As sementes de Manihot dichotoma e os coquinhos de Attalea speciosa são quebrados com pedras pelos macacos antes de serem consumidos. A redução da disponibilidade dessas plantas no futuro impactará a cultura de uso de ferramentas de Sapajus libidinosus, já que parte de suas práticas pode perder o sentido ou a importância com a ausência desses recursos. Em outras palavras, podemos predizer que há risco de empobrecimento (ou mesmo de eliminação) do rico repertório cultural do uso de ferramentas dessa população de macacos-prego.

Nosso grupo de pesquisa, composto por membros do LEHM juntamente com pesquisadores colaboradores, tem-se dedicado à missão de resgatar a história evolutiva e as origens e características da cultura inovadora, dinâmica e estável desses macacos-prego, revelando, inclusive, informações cruciais para melhor compreender possíveis ameaças de sua extinção. Isso acende um alerta que nos faz perguntar: podemos estar, enquanto humanidade, ameaçando a cultura autóctone de Sapajus libidinosus?

 

Fonte: UFRGS

Você viu?

Ir para o topo